31 Agosto 2016
"Esperamos sentados a um processo que transforma afastamento temporário em cativeiro, e permite a interinos mudarem tudo para que tudo fique como está". O comentário é de Matheus Pichonelli, jornalista e cientista social, em artigo publicado por CartaCapital, 30-08-2016.
Eis o artigo.
Passava da hora do almoço. Estávamos na estrada e vimos de longe uma churrascaria dessas que se entra andando e sai rolando após pagar um valor fixo e comer à vontade.
A casa estava lotada. De dentro da imensa porta de vidro, uma funcionária avisou que eu não poderia entrar com a cachorra. Prometeu, em contrapartida, preparar uma mesa a um canto com sombra onde, ela jurou, a cada 30 segundos um garçom chegaria com um pedaço de carne espetada e sangrando.
Nessa época do ano a umidade do ar lembra que ainda estamos no inverno, mas a temperatura tenta esticar alguns passos até o verão. O calor do sol a pino se desenhava na paisagem ao redor. Tudo o que avistava eram casas, pastos, securas. Pouco ventava e tudo parecia parado naquela imagem desde que o mundo era mundo.
Entre um gole e outro de uma jarra de suco de laranja atolada de gelo, via as pessoas, espécie de elite local, entrarem e saírem com uma pompa que me chamava a atenção. Alguns casais faziam selfies naquele estacionamento que começava a fritar os juízos.
As garotas chegavam de vestido; os rapazes, quase sempre mal diagramados perto delas, tinham cabelos espetados, camisas polo do cavalão e os ombros que denotavam duas atividades básicas por ali: o excesso patológico ou a ausência completa de exercícios.
Uma cerveja antes do almoço é bom pra ficar pensando melhor, ensinava Chico Science, e eu, sóbrio como aquela jarra atolada de gelo que derretia, me perguntava que diabo teria a dizer no dia seguinte, quando o mundo parasse para ouvir o recado da presidenta afastada à nação.
Conclui que poderia baixar o espírito do padre Antônio Vieira em Dilma Rousseff que ainda assim tudo continuaria como estava naquela paisagem no domingo seguinte, que repetiria o anterior, e o outro, e o outro, como aquela pastagem seca em torno daquele oásis de ar condicionado e proteína animal.
A vida, diferentemente do que nos dizem, é longa, longa demais, e todos estariam ocupados em matar o tempo ao sair dali em coma de tanto comer, desmaiar à tarde num braço de sofá e cair de rir com a ajuda dos programas de auditório que prometiam aliviar nossas misérias gastrointestinais com histórias incríveis na TV.
Eis a expectativa na véspera do que se desenhava como um dia histórico naquele pedaço de mundo, igual a tantos outros na miséria e na fartura: nenhuma.
Há alguns meses diziam que o país estava em ebulição. Colunistas iam ao jornal contar como adaptavam as técnicas de combate a vilões imaginários dos seriados japoneses à luta contra uma ditadura que se abatera sobre nós.
A jurista responsável por transformar em argumento técnico o que os comentaristas de portal defendiam com outras palavras chorava abraçada à Constituição dizendo que os brasileirinhos deveriam ter naquele livrinho uma razão para lutar por seus sonhinhos.
Movimentos que se apropriavam das palavras ruas e liberdade definiam por critérios próprios a lista de quem, no Congresso, estava contra ou a favor do Brasil. Um colunista chegou a criar um índex de autores comunistas que deveriam ser boicotados pelos súditos. Outro falava em fuzilamento do ex-presidente que já não carregava o mito em sua alcunha.
Cem dias depois, tudo o que, por motivos justos, pesava contra o governo afastado servia como uma bela carapuça aos gestores interinos, prestes a obterem um mandato efetivo: pouca clareza do que querem, propostas de cunho hesitante, oferta de apoio em troca de boquinha (não tinha acabado?), envolvimento nos mesmos esquemas contra os quais a população se mobilizava em fúria, e o vazamento de uma articulação para que tudo permanecesse como estava.
A diferença é que a equipe econômica, segundo os entendidos, dessa vez sabe o que faz, embora o que pretende fazer não durasse dois minutos de exposição numa campanha eleitoral, quando os rumos agora vendidos como remédios amargos, inevitáveis e prescritos por especialistas, sem direito a contrapontos da maioria (que nem sempre tem razão, ensina um editorial) deveriam ser debatidos.
Michel Temer é a figura perfeita para emplacar as mudanças que ninguém debateu a não ser em círculos restritos: ele não tem, ou jura não ter, ambições políticas depois de implementar o que outros não tiveram coragem ou a desfaçatez de levar adiante, embora a presidenta afastada tenha se arriscado a fazer antes de cair em desgraça. Mudanças justamente no livrinho sobre o qual a jurista chorava abraçada em nome dos brasileirinhos – um documento que, agora, ficou velho e antiquado.
Ponte para o futuro e modernização parecem expressões estranhas a quem sobreviveu a tantos governos e ainda não sabe enviar mensagem de voz em aplicativo de mensagem instantânea.
Pouco importa: quem está prestes a ganhar o título de mandatário não manda, é mandado, e ai se não obedecer.
Quem teve um segundo de vaia não sobrevive a dias seguidos de editoriais, o que talvez explique os tantos tira-põe-e-deixa ficar nesses primeiros cem dias de decisões desautorizadas, revogadas e testadas como balões de ensaio sobre o desmonte do Estado num momento em que todos miram os desvios na Petrobras e se esquecem dos desvios nada simbólicos das aventuras sem a regulação necessária de empreendimentos como a Samarco ou as operadoras de celular.
Temos leis demais, ao que parece, e fechados a esse argumento esquecemos de tudo o que nos falta em normatização para eliminar nossas assimetrias, a começar pela concentração de poderes midiáticos.
Esperamos, assim, sentados alguém levantar o dedo e dizer que acha estranho um processo que transforma afastamento temporário em cativeiro, permite a governos interinos mudar tudo para que tudo fique como está pelos próximos 20 anos, emposse e exonere conforme acordos de ocasião mesmo sob risco de perder votos e deixar o barco caso a decisão do Senado seja outra.
A distância entre o afastamento temporário e a expulsão definitiva parece servir a esse fim: cansa, arrefece e desmobiliza. Transforma 14 horas de defesa em mera formalidade incapaz de alterar um único voto já definido por outros acordos.
Quem pensou nesse sistema pode ser um gênio, mas ou não tem ideia de logística ou fez de Brasília um navio de Fitzcarraldo, filme de Werner Herzog de 1982.
Assimilamos, assim, bizarrices que dificilmente serão perdoadas por quem se dispuser a estudar esse período. A começar pela ascensão de grupos que podem ser tudo, menos democráticos, em tempos de crise – e que têm no apreço ao contraditório a delicadeza de um coturno.
Mas na vida cotidiana espalhada Brasil afora tudo seguia nos conformes e a sensação de normalidade àquela altura transformava todos nós em sujeitos e objetos de um matadouro – não estivesse dopado apenas de vitamina C poderia jurar que vi homens com feições bovinas servindo e sendo servidos por carne humana.
Estava quente demais para pensar em muita coisa, e afastei a imagem lembrando do deserto de Pedro Paramo, de Juan Rulfo, espécie de precursor do nosso realismo latino fantástico: “Aqui ninguém diz o que pensa. Já faz tempo que se acabou nossa vontade de falar. Acabou-se com o calor. Qualquer um conversaria muito à vontade em outra parte, mas aqui dá trabalho. A gente conversa aqui e as palavras se esquentam na boca com o calor de fora, e ressecam a língua da gente até que acabam com o fôlego. As coisas aqui são assim. Por isso ninguém fala.”
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Do êxtase à apatia: o silêncio do 'Brasil real' ao longo do julgamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU