21 Março 2022
"O papa insere a prática piedosa nas iniciativas tomadas para responder à guerra, solicitando aos fiéis que rezem pela paz. Desta forma, recupera um ato religioso há muito tempo terreno privilegiado da propaganda dos setores católicos anticonciliares e do uso político inescrupuloso dos cultos de populistas de direita. Trazendo-a de volta ao seu significado original de súplica da paz, ele a retira da ideologização a que foi submetida nas últimas décadas", escreve Daniele Menozzi, historiador do cristianismo e professor emérito da Normale di Pisa, em artigo publicado por Settimana News, 20-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 15 de março, a Sala de Imprensa da Santa Sé anunciou que em 25 de março, dia da Anunciação do Senhor, o Papa Francisco realizará a consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria durante o rito de penitência por ele presidido na Basílica de São Pedro.
Para ressaltar o nexo da cerimônia com a mariofania de Fátima, naquele dia o mesmo ato será celebrado no santuário português pelo esmoleiro pontifício, cardeal Konrad Krajewski.
A decisão pontifícia constitui a resposta de Roma a um pedido do episcopado ucraniano.
Em 2014, no momento da intervenção militar da Rússia nas regiões do sudeste do país, os bispos greco-católicos haviam feito ao papa um pedido inicial de consagração da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria.
O pedido foi repetido nos dias da recente invasão russa e repetido ao Card. Krajewski durante sua visita ao país como enviado especial do papa. Além disso, é conhecida a devoção mariana da Igreja ucraniana: uma consagração à Virgem do Estado nacional, nascido em 1991 após a dissolução da URSS, foi realizada em 1995 e repetida em 2014.
Bergoglio, ao atender ao pedido, o reformulou - consagração da Rússia e da Ucrânia - com a evidente intenção de vincular a prática piedosa à impetração da paz em um território onde a guerra, afetando a população civil de forma cada vez mais massiva, revela sua verdadeira e única face: produzir uma dramática catástrofe humanitária.
Mas obviamente serão as palavras do rito que esclarecerão mais precisamente os objetivos que Francisco pretende alcançar. Enquanto isso, algumas indicações podem ser extraídas da história dessa forma de piedade.
Reconhecida por Roma no início do século XIX, a devoção ao Imaculado Coração de Maria pretendia vincular o privilégio exclusivo com que a Virgem foi agraciada (concepção sem pecado original) com referência à sua bondade especial (o coração é seu símbolo por excelência).
Acreditava-se que um ato cultual em que esses títulos marianos particulares fossem honrados, acentuando a honra prestada à Virgem, favoreceria a ativação de sua capacidade de intercessão. Trata-se, portanto, de uma devoção ligada ao pedido de proteção em momentos e situações de particular dificuldade.
Não é por acaso que seus primeiros sucessos populares, nas primeiras décadas do século XIX, são registrados em contextos em que os católicos olham com grande preocupação para a propagação de revoluções liberais marcadas por fortes traços anticlericais.
Mas a afirmação da prática piedosa ocorre com as aparições de Fátima em julho de 1917.
Seu conteúdo assume várias formulações ao longo do tempo. Afinal, a menina analfabeta de dez anos Lúcia dos Santos - a única das três crianças que vê, ouve e fala com Nossa Senhora - obviamente não tem os meios de expressão da culta Irmã Lúcia que, nas décadas seguintes, manteve relações com teólogos, bispos, cardeais e papas.
Para nos limitarmos aqui exclusivamente ao aspecto cultual da mensagem de Fátima que se tornou pública (não levamos em consideração, portanto, o tema dos "segredos"), um elemento deve ser ressaltado. Depois de algumas oscilações iniciais, nas quais aparece também a consagração ao Sagrado Coração de Jesus, o texto das revelações indica constantemente a consagração ao Imaculado Coração de Maria como remédio capaz de remediar os males de um mundo que se distancia da Igreja, obtendo a conversão ao catolicismo de homens contemporâneos desviados.
A identificação concreta desses males, porém, varia conforme os tempos e os interlocutores que expõem as revelações.
A este respeito, um aspecto é muitas vezes esquecido. Nos momentos de aurora da divulgação da mensagem de Fátima, a prática piedosa é recomendada para assegurar a paz, pondo fim à carnificina da Grande Guerra.
Logo, porém, o estabelecimento da paz foi substituído por outro objetivo, do qual a atitude repressiva em relação ao novo culto mariano da anticlerical República Portuguesa determinou o surgimento: a formação de um estado confessional.
Quando se afirma a ditadura de Salazar, que derruba a política dos governos anteriores em relação à Igreja, o episcopado português não tem dúvidas: a consagração de Portugal ao Imaculado Coração de Maria é o caminho que permite, graças à instauração do regime nacional-católico, de evitar ao país aquele comunismo que está revirando a vizinha Espanha com a guerra civil.
Enquanto isso, o bispo de Leiria, diocese de Fátima, começa a enviar pedidos a Roma para consagrar também a Rússia, a fim de evitar que o mal supremo do comunismo se espalhe pelo mundo inteiro.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Pio XII aderiu ao convite, mas deu-lhe um novo significado. Em 1942 consagra o mundo (não a Rússia!) ao Imaculado Coração de Maria, com uma fórmula na qual vincula o ato religioso a uma paz a ser alcançada mediante a derrota simultânea do comunismo e do nazismo.
A guerra fria o induz a redefinir o objeto da consagração: o rito de 1952 consagra os povos da Rússia para obter, com o colapso do comunismo, o retorno a uma vida fraterna sob a liderança de Roma. A chave anticomunista será a tônica da consagração da Itália em 1959.
Paulo VI, na conclusão da terceira sessão do Concílio Vaticano II, decide renovar o ato, mas consagra toda a humanidade para impetrar o dom da paz "que se baseia na verdade, na justiça, na liberdade e no amor".
A partir desse momento, a história da consagração ao Imaculado Coração de Maria entra no debate que atravessa o mundo católico pós-conciliar. Torna-se a bandeira dos tradicionalistas, que identificam na abertura da Igreja ao mundo moderno o mal supremo que a prática piedosa é chamada a remediar.
Os repetidos atos de João Paulo II de consagração de todos os povos ao Imaculado Coração de Maria não reabsorvem completamente esta leitura da consagração. Aliás, no terceiro milênio, o ato religioso assume uma nova cor política.
Os líderes do populismo de direita - de Bolsonaro, que invoca a consagração do Brasil, a Salvini que, voltando de Fátima, propõe aquela da Itália - identificam nesta forma de piedade o caminho para obter o consenso eleitoral, ligando-a à necessidade generalizada de proteção contra a ameaça da globalização e a uma legitimação religiosa dos impulsos identitários nacionais.
Este percurso histórico ajuda a lançar alguma luz sobre a decisão de Francisco. O papa insere a prática piedosa nas iniciativas tomadas para responder à guerra, solicitando aos fiéis que rezem pela paz. Desta forma, recupera um ato religioso há muito tempo terreno privilegiado da propaganda dos setores católicos anticonciliares e do uso político inescrupuloso dos cultos de populistas de direita. Trazendo-a de volta ao seu significado original de súplica da paz, ele a retira da ideologização a que foi submetida nas últimas décadas.
Trata-se de um significado que emergiu rapsodicamente ao longo da história da prática piedosa; mas sua conotação mais consistente ainda parece ser uma forte politização com vistas à restauração do regime de cristandade.
Somente o discurso público do papa nos permitirá entender se esse pesado legado do culto realmente ainda está sobre os nossos ombros.
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Recorrer ao Imaculado Coração de Maria? Artigo de Daniele Menozzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU