Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio: as formações da história da literatura no Brasil. Entrevista especial com Luís Augusto Fischer

Em sua conferência no IHU ideias, o professor e pesquisador mostra como a maneira pela qual compreendemos o que é literatura, especialmente literatura brasileira, foi se modificando ao longo dos últimos séculos

Foto: Public Domain

Por: Edição: Ricardo Machado | 25 Outubro 2021

 

Um país é constituído em termos mais concretos e pragmáticos por sua forma política, sua moeda, suas leis, a demarcação do território etc. Mas também pela incontornável constituição de sua cultura – ainda que múltipla – na qual a literatura ocupa papel fundamental. Em um país colossal como o nosso, a história da literatura é formada por muitas experiências e cada uma delas corresponde a realidades relativamente particulares, mas que, de algum modo, tentam conformar o que significa o Brasil e o brasileiro.

 

“Mesmo uma obra de ficção, como é Macunaíma, é uma tentativa de dizer o que é o brasileiro. É um herói sem nenhum caráter, mas, ao mesmo tempo, um indígena, que nasce negro e migra para São Paulo em busca da muiraquitã, depois fica branco etc”, propõe Luís Augusto Fischer, durante sua conferência Duas formações da história literária do Brasil. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio. O evento integrou a programação do IHU ideias. “Monocultura, latifúndio, escravidão e exportação. Isso é o que caracteriza a plantation. O Caio Prado dizia que o Brasil, até o século XIX, era isso, e o resto era paisagem, era algo irrelevante, formas sociais pouco nítidas, pouco diversificadas, pouco específicas etc”, complementa.

 

Essa visão, contudo, foi sendo revisada a partir dos anos 1970, entre outras razões porque era uma forma equivocada de pensar o país, sobretudo quando se leva em conta que, desde o século XVIII, ao menos, já havia toda uma “vida interior” com o ciclo do ouro. “Esse trânsito interno é outra coisa que não a plantation, o que é algo que tem a ver com o nome do meu livro: Duas formações. Trata-se de duas formações históricas, que tinham interfaces e zonas de sobreposição, mas também tinham características diferentes”, descreve.

 

“Minha síntese, muito singela para terminar essa explanação, é que ideias fora do lugar, do Roberto Schwarz, nos anos 1970, explica muito bem o que aconteceu no Rio de Janeiro – eu tomo o Rio como o suprassumo da civilização brasileira do litoral (...). Perspectivismo ameríndio, que é uma tese forjada no âmbito da antropologia (...) descreve uma visão de mundo dos ameríndios que não é igual, nem apenas o oposto da visão de mundo ocidental. Eu estou tomando a ideia no meu livro de que o perspectivismo ameríndio é a lente adequada para ler essa literatura produzida no sertão”, pontua.

 

Luís Augusto Fischer (Foto: João Vitor Santos | IHU)

 

Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde leciona. Lançou recentemente o livro Duas formações, uma história. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Porto Alegre: Arquipélago, 2021), resultante de sua tese de professor titular e do estágio pós-doutoral realizado na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Além disso, é autor de várias obras, entre elas Dicionário de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM Editores), Literatura gaúcha – História, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI) e Inteligência com dor – Nelson Rodrigues ensaísta (Porto Alegre: Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores) de Simões Lopes Neto, e de Antônio Chimango (Caxias do Sul: Editora Belas Letras) de Amaro Juvenal.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como surgiu a ideia de escrever o livro Duas formações, uma história. Das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio?

Luís Augusto Fischer – Bem, a primeira coisa que eu tenho a dizer tem a ver com a minha vida. Esse foi um trabalho para a promoção a professor titular na universidade onde leciono e eu tive a enorme possibilidade de dispor de um ano sabático, fora do Brasil, e com bastante alongamento de perspectiva, de maneira que eu pude pensar e refletir sobre as coisas que me interessavam. Todo esse trabalho virou livro e esse livro resulta da minha vida de professor. Eu tenho 63 anos, dou aula desde os 22 e sempre dei aula de literatura brasileira, apesar de também dar aula de redação – no começo da minha vida eu trabalhei oito anos no Colégio Anchieta (em Porto Alegre) – e depois fiz concurso para a universidade na qual estou até hoje.

O primeiro ponto importante é que esse livro me é muito próximo porque reúne as coisas que em toda a vida eu pensei. O segundo ponto, que diz respeito à minha formação, é que eu cursei Letras e História. Não cheguei a me formar em História, pois já era formado em Letras e estava no mestrado de Literatura, dando aulas, então não tive tempo. Mas eu mantive, desde que me formei em 1980 - na verdade desde antes, quando entrei na universidade -, o interesse nestas duas pontas do problema. Eu sou, claramente, um professor de Literatura, é o que me define – especialmente literatura brasileira –, mas sempre estudei História e continuo estudando. Então, de alguma maneira eu me mantive atento para o debate no campo da literatura, dos novos livros que vão aparecendo, particularmente o romance, pois sou muito menos conhecedor da poesia e do teatro, mas conheço razoavelmente bem o campo da narrativa e outros, como o da canção. Ao mesmo tempo, segui lendo e acompanhando os debates no campo da História, especialmente da história do Brasil.

 

IHU – Como funciona, então, essa obra?

Luís Augusto Fischer – Esse livro é uma tentativa de retomar a história do país a partir da nova geração de historiadores do Brasil, que tem figuras de primeiro plano como João Fragoso, Hebe Mattos, Gabriel Florentino, Jorge Caldeira, uma série de pessoas interessantes. Eu tomo como base o Brasil – da Colônia, do Século XIX e XX – que esses caras estão apresentando e com isso eu olho de novo para a história da literatura e pergunto: como se pode contar uma história da literatura brasileira, hoje, tendo em vista isso que conhecemos sobre a história do Brasil? Claro que esta é uma síntese um pouco vaga, mas o movimento essencial é esse.

Além de ter dado aula em colégio, eu dava aula no último ano do colégio no tempo que o vestibular comandava o espetáculo. Depois que entrei na universidade, passei a dar aulas para futuros professores e outros cursos. Além disso, participei por muitos anos, uns 20, mais ou menos, do grupo que produz o vestibular da universidade onde trabalho (UFRGS), inclusive na equipe que produzia as provas de Literatura e mesmo em uma área mais sutil, embora menos vistosa, que é na organização dos programas de Literatura para o vestibular. Digo isso porque, quando exerci essa atividade, pude ver de perto como a mudança, por exemplo, em um item do programa do vestibular – aquele que as escolas vão ler e que de alguma maneira vai orientar a organização dos currículos do Ensino Médio – provoca mudanças na visão que o ensino tem sobre isso e como a história da literatura, enquanto disciplina, é decisiva para esse ambiente, ou seja, para definir o que entra e o que sai, o que ganha prestígio e o que não.

 

“Pré-modernismo” do Modernismo paulista

Para dar um exemplo bem simples. Quando comecei a trabalhar nesse campo, da produção das provas de Literatura, havia um item no programa que falava do “pré-modernismo”, usava-se essa categoria. Quem passou pelo colégio talvez nem lembre desse nome. O pré-modernismo designa, supostamente, um conjunto de autores que produziram literatura, mais ou menos renovadora, entre 1900 e 1922: Euclides da Cunha, Lima Barreto, Augusto dos Anjos etc. Eu, ao longo do tempo, fui muito mais pelo meu estudo na área de História que na de teoria da Literatura, tratando as categorias com muita reserva, especialmente estas categorias de análise, como “pré-modernismo”, de modo que eu olho desconfiando.

Lá pelas tantas, eu me dei conta que essa categoria era uma fraude. Na verdade, ela é um termo criado pela mentalidade modernista vencedora, a partir dos anos 1930 e 1940. Ainda que haja o episódio da Semana de Arte Moderna, em 1922, o modernismo vai se vitoriar com o tempo. Os historiadores e críticos alinhados com o modernismo, especialmente o de feição paulista, olharam para o período de 1900 a 1922 e criaram essa categoria para designar gente que, na opinião deles, era boa, mas não tão boa assim. Era gente que merecia a leitura, mas não merecia o “status” de modernista. Estou fazendo essa crítica de maneira muito simples, mas quem está me lendo vai entender o que quero dizer, que é o fato de que essa categoria, “pré-modernismo”, só serve para os modernistas mostrarem quem eles consideravam que valia a pena – e também deixavam gente de fora – como, mais ou menos, anunciando o que eles, os modernistas, iriam fazer.

Aconteceu que, quando comecei a trabalhar nesse âmbito de produzir o vestibular, em uma revisão do programa que houve, eu lutei para tirar essa categoria do pré-modernismo, pois ela mais atrapalha que ajuda, mais obscurece que revela - e, de fato, saiu do cenário essa categoria. Dou esse exemplo para mostrar como uma coisa aparentemente tão abstrata como a história da literatura pode ter uma repercussão muito concreta e objetiva na sala de aula. O fato de termos tirado a categoria pré-modernismo do programa resultou em uma diminuição e até na “morte” do uso dessa categoria, ao menos no âmbito aqui da UFRGS e nos cursos preparatórios. Ao menos quando o tema era apresentado se dizia “isso é o que se chama de pré-modernismo, mas aqui na UFRGS não se chama assim”. Esse é um exemplo bem elementar, mas o suficiente para mostrar como, na minha cabeça, estudar história da literatura não é apenas um exercício sofisticado, abstrato, que se envolve somente com coisas muito elevadas. Ao contrário, tem a ver com coisas muito concretas.

 

 

IHU – Em que sentido Duas formações, uma história avança em relação aos demais livros de história da literatura brasileira?

Luís Augusto Fischer – Já como professor de colégio, depois como professor de universidade, assim como qualquer professor de Literatura, dei-me conta logo que os livros de história da literatura que existiam, em geral iam até 1970. Eu nasci em 1958, entrei na universidade em 1976, então aquele mundo todo que eu via a partir da minha entrada na universidade simplesmente não existia para os livros de literatura. Isso nos obrigava, e na sala de aula acontecia muito, de termos de responder aos alunos que perguntavam: e agora, o que está acontecendo? Ou, ainda, ingenuamente: em que fase nós estamos? Essa é uma pergunta que dói um pouquinho no coração porque é uma pergunta muito ingênua, mesmo que seja feita de bom coração, porque ela supõe que a relação dos nomes das categorias que descrevem os períodos é dada de partida, quando, na verdade, vocês e eu sabemos que elas são dadas depois dos fatos. Passados os fatos, algum historiador olha para o que ocorreu e tenta explicar como aquilo funcionou, descreve como consegue enxergar e, eventualmente, categoriza, estabelecendo marcos cronológicos etc. Em regra, especialmente neste caso, a história da literatura é uma forma de repassar o passado, olhando-o desde o presente.

O livro História concisa da literatura brasileira (São Paulo: Editora Cultrix, 2015), do Alfredo Bosi, que é uma das histórias de literatura produzidas dentro da universidade, por incrível que pareça, é uma das obras mais recentes no Brasil. Depois tem muitos livros didáticos, feitos para Ensino Médio, para vestibular e tal. Muitos livros de história da literatura, quando olham para o século XX, o fazem de uma maneira ultra simplificadora, o que em parte é compreensível, pois os historiadores estavam vivendo e convivendo com os autores que tinham produzido literatura nas décadas anteriores. A consequência é que não tinha um afastamento histórico que permitisse uma visada de conjunto.

Havia também um debate que eu gosto de fazer e que há muito tempo eu faço, inclusive escrevi algumas coisas a respeito, que é a superestimação do modernismo de feição paulista sobre o conjunto da literatura produzida no Brasil. Acontece muito em livros didáticos, escritos para escolas – embora hoje em dia, com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), as coisas tenham mudado um pouco–, em que era (e é) muito comum encontrar uma descrição da história da literatura no século XX com os seguintes nomes: pré-modernismo, de 1900 até 1922; depois modernismo, na sua primeira fase, que supostamente vai de 1922 a 1930; adiante a segunda fase do modernismo, de 1930 a 1945; depois ainda uma terceira fase do modernismo, de 1945 em diante; e alguns manuais postulam a ideia de pós-modernismo, depois de 1980/1990.

 

 

Podemos ver que estamos falando de um século muito variado, e, portanto, muito próximo da nossa experiência, com coisas tão maravilhosas como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Drummond, João Cabral de Melo Neto, Nelson Rodrigues – acrescentem quem vocês quiserem – com grandes contistas, romancistas, dramaturgos, cancionistas e tal, de modo que tudo isso é reduzido, no fundo, a uma palavra só: a palavra modernismo. Quando eu olho para esta descrição, ainda no tempo da escola, percebo que ela está mal postulada. Claro que, quando começamos a estudar história da literatura, a gente percebe alguns condicionantes deste tipo de visão, dos quais vou me referir a um deles.

A história da literatura como um âmbito específico de história é uma coisa inventada na virada do século XVIII para o XIX na Europa, no contexto da formação dos estados nacionais modernos, depois do que os norte-americanos chamam de Revolução Americana (seu processo de independência) e da Revolução Francesa. Naquele momento, começaram a aparecer em vários lugares, vários países e/ou línguas, livros de história - ou capítulos de livros - especializados em literatura. Passou-se a pensar literatura como uma coisa associada ao movimento, desenvolvimento ou estabelecimento do estado nacional. Resumindo: história da literatura nasceu como signo de nacional - ou mesmo nacionalista - muito forte. Isso não quer dizer que não tenha havido esforços de pensar a história da literatura para além das fronteiras nacionais. O cerne da história da literatura como disciplina – se é que ela é uma disciplina –, como ramo da história, é nacional e nacionalista.

 

 

IHU – Qual a origem desse viés nacionalista?

Luís Augusto Fischer – Se pegarmos o caso das Américas - do Brasil, por exemplo -, as independências acontecem neste contexto histórico, da virada do século XVIII para o XIX. No nosso país, em 1822 (ano que vem celebramos o bicentenário). Nesse momento, jovens intelectuais e professores começam a pensar “temos um país novo, que país é esse”. Um país precisa ter território, língua, fronteira, moeda e... literatura. Então, esses primeiros historiadores e produtores de antologias para uso escolar olharam para o passado e se perguntaram o que, do que havia sido escrito, poderia ser aproveitado como literatura brasileira, agora que passávamos a ser um país.

O que eu quero dizer com essa caricatura é que história da literatura é sempre, ou quase sempre, a história da literatura de um país e uma história nacionalista de uma nação. História nacionalista é uma história que procura olhar para objeto que está sendo estudado buscando o que há ali de “essencial”. Por exemplo, os primeiros historiadores de literatura – em 1830, 1840, 1850 – olharam para o pequeno passado de independência do Brasil, que havia começado em 1822, mas considerando o território que virou o Brasil e o que havia sido produzido antes para ser perguntar: quem escreveu e o que foi escrito antes da independência é brasileiro ou não? Eles entram na nossa conta ou são, ainda, portugueses? Essa é uma pergunta que, olhando de hoje, faz pouco sentido, mas fazia em 1840, pois se estavam fazendo antologias para serem lidas na escola, para incutir na cabeça dos alunos um valor que era o da nacionalidade, como, por exemplo, “amor pela pátria” e coisas desse tipo.

Ao longo do tempo esta área – ou subárea – chamada história da literatura tem um compromisso nacional e muitas vezes nacionalista, com o desejo de criar um sentimento de identidade nacional. Ela não é neutra a respeito disso.

 

 

IHU – Como que esse ensino sobre a história da literatura foi se modificando no século XX?

Luís Augusto Fischer – Passa-se o tempo, são várias gerações de historiadores, que de alguma maneira estudo no livro, e chegamos ao século XX, no qual tem essa coisa do Modernismo que eu mencionei. Ora, o Modernismo vencedor no Brasil é um modernismo nacionalista e não apenas nacional. É um modernismo, na versão especialmente do Mário de Andrade, dos que o colocam como centro da literatura brasileira no século XX; é uma visão nacionalista, pois quer procurar o que há de essencial, onde está o verdadeiro Brasil. Mesmo uma obra de ficção como é Macunaíma (Porto Alegre: L&PM, 2019), é uma tentativa de dizer o que é o brasileiro. É um herói sem nenhum caráter, mas, ao mesmo tempo, um indígena, que nasce negro e migra para São Paulo em busca da muiraquitã, depois fica branco etc. Ao mesmo tempo, o livro tem todo um recolhimento de histórias de folclore, falando inclusive do Negrinho do Pastoreio aqui do Sul, como forma de compor esse suposto mosaico que seria, então, o “verdadeiro” Brasil.

Também os ensaístas entraram nessa. Quando se pega um cara como, por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda, em 1936, ele escreve um livro chamado Raízes do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2015). Pensem comigo. Quem, com trinta e poucos anos, hoje escreveria um livro e chamaria – assim da cara limpa – de “raízes do Brasil”? Isso é uma pretensão completamente descomunal, algo como “vou dizer quais são as raízes do Brasil”, mas para ele, naquela época, parecia razoável. Não quero dizer, com isso, que o livro não é interessante - até hoje ele tem um rendimento crítico interessante. O que estou chamando atenção aqui é para a ideia de que temos que “descobrir” o Brasil, de dizer o que era o Brasil. Para resumir esse ponto, a história da literatura, muito particularmente no Brasil, tem esse compromisso nacional e nacionalista.

 

 

IHU – E no século XXI?

Luís Augusto Fischer - Agora eu olho para o começo do século XXI, observando esse mundo todo e toda essa experiência, e me pergunto: não tem como contar diferente essa história? Por exemplo, vou falar não da história, mas da literatura, começando por o que é considerado como tal: romance, poesia, teatro, eventualmente algum ensaio, mas sempre chega uma hora em que se entra em uma zona de sombra. Por exemplo, Os sertões (São Paulo: Martin Claret, 2017), de Euclides da Cunha, está em tudo quanto é manual de literatura como parte da coisa, mas o que é Os sertões exatamente? Não estou dizendo que não é um grande livro, é um excelente livro, mas ele é literatura? Qual o conceito de literatura que está implicado aqui? É um livro que não tem nada de ficcional, é um ensaio sociológico, antropológico, historiográfico. Ao mesmo tempo é um libelo, uma acusação, um livro muito interessante, que numa hipotética história da literatura escrita por mim ela faria parte. Eu quero chamar atenção para o fato de que incluir ou não incluir Os sertões depende de um conceito. Se o meu conceito de literatura implicar, por exemplo, a ideia de ficção, Os sertões não entra; mas se entrar algo que não é ficção, quanta “não ficção” pode entrar? Eu coloco quem mais? Gilberto Freyre e Casa grande e senzala (São Paulo: Global, 2006)? Esse é um livro escrito de maneira magnífica, o que não quer dizer que o livro não tenha problemas, ele tem.

A mesma pergunta sobre qual é o critério eu posso fazer para outras coisas. Aí entra um tema que me interessa muito que é a canção. Na minha experiência pessoal, quando eu era menino, via as músicas dos festivais que passavam na televisão. Acompanho desde sempre essa geração que agora está chegando perto dos 80 anos – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Rita Lee, Jorge Ben, Roberto Carlos, uma penca de gente –, o que não implica que eu goste de todos igualmente, mas todos eles foram importantes. Será que esses caras não têm a ver com a literatura? Bem, a minha convicção, que não é só minha, é que a canção faz parte, sim, do patrimônio literário brasileiro. Canção não é só literatura, mas é uma arte que lida essencialmente com palavras. Sem as palavras não há canção.

 

 

IHU – Em que sentido, tudo isso coloca em tensão o que compreendemos como “literatura”?

Luís Augusto Fischer – Isso tudo coloca em tensão aquela definição de que literatura é só ficção, porque, veja, estamos falando de romance, conto, poesia, drama e canção. Outro gênero que entrou na história da literatura muito recentemente – embora para quem é jovem pareça antigo – é a crônica. Quando eu era aluno de colégio, crônica não era tida como literatura. Às vezes, como um texto bom e tal, mas não se trata de literatura. Hoje em dia não tem ninguém de cara limpa que não aceite crônica como parte da história da literatura.

Outro exemplo: história em quadrinhos. Quando eu era aluno de colégio, os professores brigavam com o fato de que nós gostávamos de ler quadrinhos, explicitamente diziam “tem que parar de ler quadrinhos para ler ‘literatura’”. Hoje em dia, a gente diz o contrário: “olha só, tem uma adaptação genial de Grande Sertão Veredas, leiam essa e depois, quem sabe, leiam o romance original” e assim tantas outras obras originais ou adaptadas. Vejam que eu estou falando de uma série de coisas que, de alguma forma, têm que ser açambarcadas para o domínio da literatura para entrar em uma história da literatura. Por que tem que entrar em uma história da literatura? Em primeiro lugar, porque eu acho que são literatura; e, segundo, porque a história da literatura não é uma descrição do fenômeno, mas um regulador, um pouco remoto, do ensino.

Eu quero que o aluno leia crônica, escute canção, aprecie a maravilha do Noel Rosa ou Ismael Silva, quem quer que seja do rap, que nos últimos 30 anos é parte essencial da literatura de centenas de milhares de pessoas que vivem na periferia. Uma pessoa pode não entender o que o Machado de Assis diz, mas o que esse cara do rap diz é entendido.

Outra coisa bastante contemporânea. Depois do fim da União Soviética, do fim dos anos 1990 para cá, do tempo da Internet em diante, especialmente dos smartphones, a circulação e o tempo de publicação da literatura mudaram de padrão. Hoje é perfeitamente possível pegar um celular e ler não somente enciclopédia, mas ler um romance. É chato, mas dá para ler. Posso ler poesia. Posso ler qualquer coisa e posso ler qualquer coisa de muitos lugares do mundo. Temos acesso, com um smartphone e sinal de internet, a bibliotecas que têm infinitos livros para ler, em muitas línguas. Se eu souber mais de um idioma, eu vou para quase qualquer lugar do mundo. Qualquer língua com circulação internacional, como espanhol ou inglês. Imagina se a pessoa conhece árabe ou chinês, que maravilha se abre.

 

 

Tudo mudou, a literatura mudou

De maneira um pouco brincalhona eu estou dizendo que tudo mudou. A literatura mudou. O conceito de literatura não é mais o mesmo de 1970. A produção e a circulação de literatura não são mais as mesmas. Há fenômenos conexos interessantes. Hoje em dia, na universidade, já se discute francamente o papel da literatura traduzida na criação das literaturas na América. Em um livro de história da literatura brasileira não aparece as grandes leituras que os escritores brasileiros fizeram ao longo do tempo. Qual é o papel do Balzac na produção do romance brasileiro? O que o José de Alencar deve ao Balzac? Será que não deve nada? Eu estou dando um exemplo, mas as coisas são assim o tempo todo. Vou dar um passo além: por que o marco nacional é tão decisivo assim? Será que eu não posso contar uma história da literatura em outro parâmetro? Não posso contar uma história da literatura da América do Sul ou do Ocidente? Eu não estou dizendo que é fácil, vejam que estamos em um território de pensamento, não estou descendo para o mundo prático sobre como fazer essa história. Estou bombardeando os conceitos de história da literatura que me parecem relevantes, que são as perguntas que levanto aqui.

Em outro momento eu faço uma indagação no livro, muito miúda, mas espero que adequada e justa, especialmente de dois grandes críticos e comentaristas de literatura brasileira, que são referências: Antonio Candido e Roberto Schwarz. Olho para as proposições deles sobre história da literatura ou sobre literatura em geral e pergunto se essas proposições poderiam servir de modelo para uma hipotética nova história da literatura.

Resumindo o que eu disse até agora: literatura não é mais a mesma coisa e literatura é um fenômeno muito rico e muito vivo. Literatura não é só aquilo que se produziu não sei quando. Literatura é o cara do rap, a crônica, a literatura feita por pessoas que hoje se reconhecem como ameríndias – o sujeito fez faculdade e doutorado, mas valoriza o fato de ser indígena –, os escritores que se reconhecem como negros ou de tradição afro-brasileira, afrodescendente. Tudo isso está vivo. O slam está vivo tanto quanto a leitura de um romance antigo.

 

 

IHU – O que mudou essencialmente na leitura da história do Brasil?

Luís Augusto Fischer – Para dizer de maneira muito breve e, certamente, simplificada, nos últimos 30 anos há uma produção historiográfica impressionante, fruto do trabalho minucioso de professores e pesquisadores de dentro e fora do país. Graças ao modelo de gestão de financiamento como a Capes – que, aliás, está sendo atacada por esse governo federal de maneira vil e cruel –, temos conseguido produzir no Brasil estudos, descrições históricas e análises que eram impossíveis de pensar há 30 anos.

Um exemplo concreto. Quando eu ainda cursava História, no final dos anos 1970, quando discutíamos escravidão, não era raro que os professores nos dissessem algo como: “É uma pena que a gente nunca vai conhecer bem a história da escravidão porque a documentação se perdeu”. Vamos lembrar que o Rui Barbosa, primeiro ministro da economia da República, mandou queimar, de fato, alguns arquivos de ingresso de escravizados nos portos do Rio de Janeiro, com medo de que os antigos proprietários de escravos, uma vez feita a abolição, entrassem com ações contra o Governo Federal brasileiro, o governo da República que estava começando, pedindo indenização. Alguns proprietários de escravos diziam exatamente isso, “eu comprei alguns escravizados dentro da lei, então ninguém pode interferir nisso”. É o que os juristas chamariam de ato jurídico perfeito. A consciência que temos hoje fica ofendida com a mera ideia de que alguém seja dono de alguém. Mas o que esses caras diziam era que o Estado não poderia abolir a escravidão, porque se ele quisesse isso deveria pagar o valor que havia sido pago pelo escravizado anteriormente.

O que aconteceu? Exatamente dos anos 1970 em diante começou o trabalho dos cursos de pós-graduação, ou dos centros de pesquisa, de pesquisa minuciosa, em que a pessoa que fazia mestrado ia estudar a documentação da capela tal, num lugarzinho específico, e com isso ele fazia uma lista dos escravizados que tinham sido batizados ou que tinham casado, coisas desse tipo. Em uma monografia sobre uma cidadezinha de mil habitantes, dava para inferir que havia, por exemplo, 300 escravizados. Agora imagina isso em uma escala muito grande; em todos os lugares onde há pesquisa, esses dados começaram a aparecer. Havia outro sujeito que pesquisava, por exemplo, registros policiais, e lá tinha algo como: “o escravo fulano de tal brigou com o sicrano que não era escravo e o matou”. Nisso tem o inquérito policial, que é um dado. Então como esse dado conversa com os demais dados? Estou contando de modo um pouco superficial, mas para dizer que, dos anos 1970 para cá, se acumulou um material gigantesco sobre escravidão, que permite, hoje, uma leitura muito precisa do que foi a escravidão no Brasil. Há muitos trabalhos, muitos TCCs, mestrados, doutorados, pesquisas, bolsas de iniciação, que resultaram em uma massa de dados que permitem ao historiador do presente conhecer isso com muito detalhe.

Esse é um exemplo concreto. Essa nova geração de historiadores, que é a minha geração cronológica, que trabalhou dos anos 1970 para cá, produziu esse material que nos permite olhar para a história do passado – período colonial ou século XIX – e ver com outros olhos, muito mais próximos dos fatos e dos processos reais que aconteceram. Com isso, estou querendo dizer que a gente pode encontrar, nos novos historiadores, interpretações sobre a história brasileira que superam e, muitas vezes, contradizem interpretações clássicas da história brasileira.

 

 

Uma delas em particular é a que me interessa aqui, que é a do Caio Prado Júnior, porque é um historiador representativo do que quero dizer. Ele foi tido como o primeiro historiador marxista brasileiro. Ele pôs de pé uma interpretação do Brasil na década de 1930/1940 que dizia o seguinte: “O Brasil era parte da plantation”, isto é, um espaço litorâneo que produzia um produto primário – açúcar ou café –, em um latifúndio, com base na mão de obra escrava, para exportação. Era monocultura, latifúndio, escravidão e exportação. Isso é o que caracteriza a plantation. O Caio Prado dizia que o Brasil, até o século XIX, era isso, e o resto era paisagem, era algo irrelevante, formas sociais pouco nítidas, pouco diversificadas, pouco específicas etc. Então, desde as lentes do Caio Prado, o Brasil era a plantation, essa grande empresa de produção monocultora para a exportação.

Ocorre que os novos historiadores começaram a dizer que isso não é verdade. Pelo menos desde o século XVIII, com o ciclo do ouro, todo o interior do Brasil se conectou, especialmente de 1700 a 1760. Saíam tropas de quadrúpedes – cavalos, bovinos e mulas – dos três estados do Sul que iam até Sorocaba, onde eram vendidos para levar a produção de ouro de Ouro Preto até o porto do Rio de Janeiro ou o Porto de Parati. Então existia esse circuito que não era mais a plantation. Assim, hoje em dia, os historiadores mostram que há uma dinâmica interna muito grande.

Esse trânsito interno é outra coisa que não a plantation, o que é algo que tem a ver com o nome do meu livro: Duas formações. Trata-se de duas formações históricas, que tinham interfaces e zonas de sobreposição, mas também tinham características diferentes. Por exemplo, o mundo do sertão tinha escravidão de afrodescendentes, mas tinha também outros regimes de mão de obra, como servidão indígena, que não era exatamente a mesma coisa que a escravização dos africanos e seus descendentes. Havia muita mão de obra livre que circulava, muita iniciativa individual. Os gaúchos, assim como muitos caipiras em São Paulo, que eram mestiços de brancos com ameríndios e que não eram escravos, que podiam se movimentar, trabalhar, muitos deles tinham alguma virtualidade técnica, sabiam exercer algum ofício, de modo que além de se movimentar, podiam acumular, se agregar a algum trabalho regular ou não.

Na medida em que começamos a enxergar essas coisas que a nova historiografia está escrevendo, passamos a enxergar outro Brasil. Isso não diminui o horror da escravidão de africanos e afrodescendentes nem diminui a importância da mão de obra escrava na produção monocultora de exportação, o que, também, do ponto de vista social e moral, é uma coisa horrível. O que eu quero dizer é que esse horrível se compunha com outros horríveis e outros nem tão horríveis. O ponto é que, com o trabalho desta nova geração de historiadores, podemos enxergar melhor o que de fato acontecia.

 

 

IHU – Como, então, interrelacionar esse debate à história da literatura?

Luís Augusto Fischer – Se é verdade que o Brasil não é só o espaço da plantation, do litoral, e, portanto, não é só Salvador e Rio de Janeiro e, pelo menos desde o século XVIII, é o interior e as cidades que vão se formando, incluindo as rotas de comércio e de trocas que vão acontecendo, a pergunta é: a história da literatura alcança isso? Como está contada a história da literatura tendo em vista esta estrutura, esta duplicidade que eu mencionei aqui? Aí entram em cena outros fatores. Por exemplo, o fato de que muitos livros de história da literatura que se referem à literatura produzida no sertão ou sobre o sertão – terra desconhecida, o interior, digamos – como uma coisa menor. Não à toa, há quem diga: “Isso é regionalismo”. Regionalismo, aliás, é uma categoria que não gosto de usar e que não uso regularmente porque costuma mais obscurecer que revelar. Quando se diz “regionalismo”, o que entendemos? Regional é aquilo que não é o todo; já aí existe uma forma de dizer que ela tem menos importância, porque supostamente o que se refere ao todo é importante e o que se refere a uma parte, uma região, não é tão importante.

Mas o que é o todo? O todo é o que acontece na cidade? Só na cidade? Por quê? Aqui tem um pouco do fetiche da modernização industrial, que é um pouco da base do pensamento marxista em geral, que acha que povo de verdade é operário – não estou falando de ninguém em particular, mas no geral –, porque o camponês não é exatamente “povo”, mas alguém que tem que virar o operário, e o lugar do “universo” é a cidade. Nos outros lugares as relações seriam, ainda, primitivas, meio marcadas por coisas antigas, de modo que o que importa mesmo é a luta de classes que ocorre na cidade entre proletário e burguês. Com essa lente em vista, tudo que é rural é, portanto, regional e, por sua vez, uma coisa menor.

 

 

Uma outra visada

Eu olho para essas coisas e digo não, não é bem assim. Há vários exemplos de coisas que se referem ao mundo rural e são, do ponto de vista literário, superiores. Dois exemplos sublimes são Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Se pensarmos a partir daí, tem muito mais coisas, para frente e para trás. Desde quando o mundo do sertão aparece na literatura? Comparando taco a taco, pensando numa longa duração, do século XVII até agora, o mundo do sertão é um mundo marcado muito mais pela tradição oral do que pela tradição escrita. Literatura é uma coisa escrita no conceito antigo. Mas, se eu olhar de hoje, não é só coisa escrita, pois literatura oral tem direito à existência. Mais. Muitas vezes, o que era apenas tradição oral vira letra escrita em certo momento. José de Alencar, por exemplo, escreve o romance chamado Til (São Paulo: Sesi Editora), que se passa no sertão paulista. Esse livro não merece leitura? É menos importante? Pode ser que seja menos bem realizado, mas não é menos importante que Iracema (São Paulo: Panda Books, 2015) ou O Guarani (São Paulo: Martin Claret, 2012). E assim como tantos outros.

No final do século XIX e começo do XX tem um historiador muito temperamental, mas interessante, que é o Sílvio Romero. Por exemplo, na história da literatura que ele compôs, ele coloca a literatura oral, tanto que ele tem um livro famoso chamado Contos populares do Brasil (Jundiaí: Cadernos do mundo inteiro, 2018), que é a redução à forma escrita de lendas. Estamos mais uma vez falando de uma coisa interessante. A passagem do oral para o escrito é uma passagem da lenda para o conto, por exemplo, às vezes da lenda para o romance. Isso implica uma série de mudanças. O Grande Sertão: veredas (São Paulo: Companhia das Letras, 2019) está cheio de lendas e uma visão mágica sobre o mundo, tudo isso submetido à narrativa de Riobaldo, que está lá tentando organizar o que ele entende do mundo, de si mesmo, da vida, se existe diabo ou não.

 

 

Nessa minha busca sobre a pergunta como uma nova história da literatura deve se comportar, eu tenho algumas certezas, entre elas a de incorporar coisas que não eram vistas como literatura e incorporar um Brasil mais complexo, que começamos a enxergar. Por isso, finalmente, uso esse subtítulo com duas expressões – das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio. As duas são teorias muito complexas, que no livro eu tento explicar e fazer uma certa crítica às duas, mas são duas teses que eu acho que explicam, fundamentalmente, essas duas grandes formações: litoral e sertão. Elas não são excludentes e estanques; conversam entre si, têm zonas de superposição, conexões, mas, ao longo do tempo, elas se erguem em paralelo.

Minha síntese, muito singela para terminar essa explanação, é que ideias fora do lugar, do Roberto Schwarz, nos anos 1970, explica muito bem o que aconteceu no Rio de Janeiro – eu tomo o Rio como o suprassumo da civilização brasileira do litoral –, ideias fora do lugar explica o Machado de Assis, talvez explique o Caetano Veloso e outras coisas nesse fluxo, que é o fluxo do litoral. Perspectivismo ameríndio, que é uma tese forjada no âmbito da antropologia, muito recente, nos últimos 20 anos, com várias pessoas envolvidas, entre elas Aparecida Vilaça, Tânia Stolze Lima e, especialmente, o Eduardo Viveiros de Castro, que descreve uma visão de mundo dos ameríndios que não é igual, nem apenas o oposto da visão de mundo ocidental. Eu estou tomando a ideia no meu livro de que o perspectivismo ameríndio é a lente adequada para ler essa literatura produzida no sertão, tendo como ponto de chegada Guimarães Rosa.

 

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