Por: Vitor Necchi | 14 Setembro 2018
No campo da Literatura, Antonio Candido é o intelectual mais destacado de sua geração. “De fato ele é o primeiro grande estudioso universitário de literatura a permanecer com obra imediatamente relevante, até aqui”, avalia o professor Luís Augusto Fischer. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, afirma que a “obra de Candido é lida em toda a universidade brasileira, no campo das Letras”.
Candido era uma figura singular porque tinha uma “dupla militância – literatura na imprensa e sociologia na universidade”. Conforme Fischer, ele “tinha uma mente acadêmica, no bom sentido, quer dizer, tinha conceitos, sabia dos protocolos e manejava os métodos na área de Humanidades, mas tinha o feeling e a abordagem do crítico ‘impressionista’, e escrevia muito bem, muito limpo, sem frescuras, com profundidade”.
O teórico, cujo centenário de nascimento ocorreu no dia 24 de julho, “soube produzir grandes ensaios e alguns livros de forte importância, como a Formação da literatura brasileira, livros que permanecem legíveis, abrem muitos caminhos e mostram a virtude da formação múltipla e da visada abrangente do crítico”. Além disso, Candido “teve papel essencial na orientação de várias gerações de novos críticos, professores, pesquisadores na USP e depois na Unicamp”.
Ao defini-lo, Fischer afirma que “ele foi inteligente, cosmopolita, bem aparelhado, com história social muito favorável, tanto em sua família de origem quanto na família que constituiu (casou com uma sobrinha de Mário de Andrade, figura tutelar da cultura moderna de São Paulo), e dispôs das melhores estradas sociais para se manifestar”.
A obra mais famosa de Candido é Formação da literatura brasileira que, “em lugar de ser lido como um livro de história da literatura e das ideias críticas que trazia sobre autores, o livro passou a figurar como talvez a primeira tentativa de fato moderna e aguda de pensar sobre o objeto a que se dedicou, buscando formulação conceitual nova”. Trata-se de um livro com “uma ousadia conceitual impressionante, no contexto: em lugar de escrever uma história meramente linear e com a ilusão de conter tudo, Candido abre o livro postulando um conceito estritamente sociológico – ele propõe a ideia de que uma literatura não nasce em determinado momento [...], mas se forma, quer dizer, depende de um processo longo no tempo e no espaço, em que atuam forças sociais, como a leitura, a circulação de obras e a criação de uma tradição interna, que revele uma espécie de independência do pensamento nacional, cá no Brasil, parte deste novo mundo que é a América”.
Luís Fischer | Foto: Fernanda Davoglio
Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde leciona. É autor de vários livros, entre eles Dicionário de porto-alegrês (Porto Alegre: L&PM Editores), Literatura gaúcha – História, formação e atualidade (Porto Alegre: Leitura XXI) e Inteligência com dor – Nelson Rodrigues ensaísta (Porto Alegre: Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (Porto Alegre: L&PM Editores), de Simões Lopes Neto, e de Antônio Chimango (Caxias do Sul: Editora Belas Letras), de Amaro Juvenal.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a importância de Antonio Candido para os estudos literários no Brasil?
Luís Augusto Fischer – Antonio Candido tem papel destacado, o mais destacado de sua geração. De fato ele é o primeiro grande estudioso universitário de literatura a permanecer com obra imediatamente relevante, até aqui. Fazendo uma conta rápida: os cursos regulares de Literatura no Brasil nascem com os cursos superiores de Letras, que são da década de 1930 em diante, apenas. Antes disso, quem queria viver em função da literatura e quisesse cursar alguma coisa universitária estudava Direito. Desde que há curso superior no Brasil (bem pouco tempo, porque a colonização que tivemos foi ágrafa e anticrítica, impediu imprensa, edição de livros e cursos superiores), quer dizer, depois da Independência, os letrados eram padres, como o cônego Januário Barbosa , autor de uma das primeiras antologias para uso escolar, ou eram formados em Direito, como foi o caso dos jovens que iam até São Paulo ou até Recife para frequentar os dois únicos espaços possíveis para isso, ou simplesmente eram autodidatas, sem formação superior ou mesmo sem qualquer formação escolar regular, como foi o caso do Machado de Assis.
No final do século 19, na época do Machado de Assis maduro, quando se estabiliza um debate crítico relevante e existe o que se pode já chamar de opinião pública – com jornais, parlamento, tribunais e escolas em número apreciável –, despontam alguns críticos, como Sílvio Romero e José Veríssimo, ambos professores de Língua e Literatura na escola média, mas com atuação em jornal e livro. Depois disso, vem logo a geração modernista – Mário de Andrade e Oswald, em São Paulo, Alceu Amoroso Lima, no Rio, Sérgio Buarque de Holanda entre Rio e São Paulo, Nelson Werneck Sodré também no Rio, Guilhermino César saindo de Minas para o Rio Grande do Sul, Augusto Meyer saindo de Porto Alegre para o Rio –, que ainda não dispõe de cursos regulares de Letras: trata-se de gente interessada em literatura que vai fazer outras coisas, especialmente Direito, ou se arranja de algum modo, como foi o caso de Mário, que era professor de Música, ou não completa formação alguma, como Meyer. Todas essas figuras até aqui citadas tiveram papel interessante, escrevendo histórias da literatura, produzindo crítica para jornais e revistas, até mesmo formulando alguma coisa mais sofisticada (Oswald escreveu uma tese sobre a poesia árcade para o concurso que fez para dar aulas de Literatura na nascente USP, mas foi reprovado…), mas ainda não se pode falar de críticos universitários, para o bem e para o mal. Alguns são ainda legíveis, como Meyer, mas grande parte do que escreveram tem papel, agora, apenas como depoimento histórico.
Depois vem a geração de Candido, que é também a de outra figura que com ele disputou espaço, mas que hoje é uma sombra apenas, Afrânio Coutinho. Este era um médico baiano que, contratado pela revista Seleções do Reader’s Digest, foi para os Estados Unidos aprimorar suas técnicas de texto, e aí aproveitou para estudar academicamente algo de teoria literária, que então se definia em termos novos, com o que se chamou, no mundo anglo-saxão, de Nova Crítica. Afrânio, voltando de lá, passou de crítico avulso de jornal a professor titular de Literatura na nascente Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ali passou a jogar de mão. Visto de hoje, é muito problemático, fraco e até irrelevante, entre outros motivos, porque se concebia como nada menos que o primeiro a fazer ciência literária no Brasil – em função disso, ainda hoje a UFRJ tem um departamento de Ciência da Literatura, com esse nome. Foi dele a iniciativa de qualificar, sistemática e pejorativamente, a crítica não-universitária como “impressionista”, o que reforçava sua autoimagem de cientista.
Aqui entra Candido. Crítico de jornal e revista, estudou Direito, sem se formar, e se aventurou num curso novíssimo no Brasil, que começou a existir precisamente em sua geração, na USP – Ciências Sociais; assim que se formou, começou a dar aulas ali e virou pesquisador, com doutorado na área. Essa dupla militância – literatura na imprensa e sociologia na universidade – é que faz dele uma figura singular: tinha uma mente acadêmica, no bom sentido, quer dizer, tinha conceitos, sabia dos protocolos e manejava os métodos na área de Humanidades, mas tinha o feeling e a abordagem do crítico “impressionista”, e escrevia muito bem, muito limpo, sem frescuras, com profundidade. Por outro lado, era filho das elites letradas brasileiras, com mãe leitora e culta, e pai médico que fez uma especialização na França, o que levou o menino Antonio Candido a viver por lá e aprender o francês, o inglês e até algo de alemão antes de ingressar na USP, uma vantagem intelectual rara. (Ele conta que em casa havia duas bibliotecas, uma da mãe e outra do pai. Isso dá uma medida da sofisticação intelectual de seu entorno familiar.)
E teve ainda a vantagem histórica de dispor de uma certeza essencial para sua carreira: amigo dos modernistas, embora mais jovem (ele nasceu em 1918), Candido fez sua vida como crítico na militância em favor das teses modernistas, discutindo as coisas que apareciam, os livros e os autores, segundo a régua arejada dos modernistas. Numa entrevista que fiz com ele em 1993, ele contou que, assim que começou a escrever crítica na imprensa e a dar aulas de literatura – ele permaneceu professor de sociologia até 1958, quando migrou para a condição de professor de Literatura, na mesma USP –, teve em mente a necessidade de validar o Modernismo, e portanto sabia quem atacar, quer dizer, todo mundo que rezasse por cartilha diferente, antiga etc. Para completar esse quadro, é preciso levar em conta que ele foi um dos fundadores do antigo PSB, um partido de esquerda não-ortodoxa (antistalinista), logo após a Segunda Guerra Mundial, condição que também explica sua grande abertura de consciência para os movimentos amplos da vida ocidental, da economia à literatura.
No conjunto, com esses condicionantes claramente especiais, ele soube produzir grandes ensaios e alguns livros de forte importância, como a Formação da literatura brasileira, livros que permanecem legíveis, abrem muitos caminhos e mostram a virtude da formação múltipla e da visada abrangente do crítico. Ao lado disso, igualmente teve papel essencial na orientação de várias gerações de novos críticos, professores, pesquisadores na USP e depois na Unicamp, cujo curso de Letras ele ajudou a organizar, por sinal.
Quer dizer, ele foi inteligente, cosmopolita, bem aparelhado, com história social muito favorável, tanto em sua família de origem quanto na família que constituiu (casou com uma sobrinha de Mário de Andrade, figura tutelar da cultura moderna de São Paulo), e dispôs das melhores estradas sociais para se manifestar – para dizer de modo um pouco irreverente, ele pegou a maré montante, amplamente favorável, nascida no processo de consolidação da USP e do estado paulista como forças hegemônicas no campo intelectual (e industrial e financeiro) do Brasil.
IHU On-Line – E para além do campo literário, qual a importância do pensamento de Candido?
Luís Augusto Fischer – Há três aspectos, pelo menos: um, sua militância na imprensa paulistana foi muito forte – foi dele o projeto inicial do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo. Ele fez parte do grupo que criou a revista Clima etc. –, coisa que se soma ao ótimo faro crítico dele para detectar os melhores em cada momento (ele logo percebeu, por exemplo, que poeta importante mesmo, nos anos 1940, era João Cabral, assim como sacou a qualidade rara de Clarice Lispector logo na primeira publicação).
Dois, ele teve destacada importância política mesmo, no campo intelectual, primeiro no PSB e na luta pelo fim da ditadura do Estado Novo, e depois foi um dos fundadores do PT, num momento em que este novo partido era referência forte para todo o campo da oposição ao regime militar.
Três, não menos, ele foi professor de Sociologia na USP por uns 15 anos, até migrar para a área de Literatura. Orientou pesquisa, ajudou várias carreiras – para dar um exemplo, Roberto Schwarz foi aluno dele na Sociologia, e por combinação entre o mestre e o aluno, Roberto migrou para a área da Literatura, onde viria a se tornar um sujeito de primeiro plano. E considere que, ao contrário do que ocorreu na universidade cá no Rio Grande do Sul, lá na USP a Sociologia foi concebida como uma carreira de central importância, bastando ver o caso de Fernando Henrique Cardoso, um aluno e depois professor exatamente dessa disciplina, lá na universidade paulista.
Para encerrar, haveria um quarto termo, mas em campo mais ou menos literário: Candido se ocupou bastante de relações com o ensino básico, e nesse sentido particular escreveu alguns textos que são de forte intervenção pública, para além do mundo das letras.
IHU On-Line – Quais são as obras fundamentais de Candido e por quê?
Luís Augusto Fischer – O livro mais famoso, que não é propriamente o mais lido, é o já citado Formação da literatura brasileira, uma espécie de história crítica da literatura no Brasil, que acabou se tornando referência por motivos inesperados. Em lugar de ser lido como um livro de história da literatura e das ideias críticas que trazia sobre autores, o livro passou a figurar como talvez a primeira tentativa de fato moderna e aguda de pensar sobre o objeto a que se dedicou, buscando formulação conceitual nova. Como história, ele é bem restrito, porque, publicado no fim dos anos 1950, ele tem como assunto apenas a literatura do Arcadismo e a do Romantismo; o livro encerra antes de falar do Machado de Assis maduro! Curiosamente, o livro nasceu do convite de um editor paulistano para Candido escrever um livro paradidático, para uso em escolas…
De todo modo, o livro de fato tem uma ousadia conceitual impressionante, no contexto: em lugar de escrever uma história meramente linear e com a ilusão de conter tudo, Candido abre o livro postulando um conceito estritamente sociológico – ele propõe a ideia de que uma literatura não nasce em determinado momento (com a Carta de Caminha, ou com a obra de Bento Teixeira, ou com o primeiro livro publicado após a Independência), mas se forma, quer dizer, depende de um processo longo no tempo e no espaço, em que atuam forças sociais, como a leitura, a circulação de obras e a criação de uma tradição interna, que revele uma espécie de independência do pensamento nacional, cá no Brasil, parte deste novo mundo que é a América.
Outro livro relativamente famoso é seu doutorado em Sociologia, Parceiros do rio Bonito, que tem lá suas limitações metodológicas, mas revela, em sua geração, uma forte originalidade e uma grande importância – considere que Candido estuda uma comunidade caipira, seus hábitos, sua socialidade, num momento em que essas comunidades caipiras estão sendo alcançadas pela energia elétrica, pela mercadoria industrial, pelo rádio, até pela escola. Para nós, gaúchos, uma comparação eloquente é esta: Candido estudou os caboclos de seu estado, com atenção afetuosa, mas com método científico, no mesmo momento em que aqueles jovens daqui criaram o primeiro CTG, que é também uma forma de estudar o passado dos caboclos locais, os gaúchos. No Rio Grande do Sul, houve também estudos, como os de Barbosa Lessa e de Paixão Côrtes, na linha do folclore, com vistas a preservar o que era antigo (e para depois servir de modelo para a vida dos CTGs), ao passo que em São Paulo, embora também houvesse folcloristas, Candido e a USP estudavam essas formas antigas, mas sem a ilusão de preservar o que quer que fosse, e sim para melhor integrá-las à modernidade. Sei que o tema é mais complexo do que essa simples comparação, mas o paralelo é sintomático – com o detalhe de que no Rio Grande do Sul só fomos ter curso superior de Ciências Sociais a partir de 1958, na UFRGS!
Fora esses dois livros, me parece que as obras fundamentais de Candido são artigos e estudos específicos, como o famosíssimo “Dialética da malandragem”, sobre o romance Memórias de um sargento de milícias, ou os estudos que fez sobre O cortiço, ou uma hipótese de leitura de âmbito latino-americano como “Literatura e subdesenvolvimento”, entre outros.
IHU On-Line – O conceito de formação é central no pensamento de Candido. Por que e qual a sua atualidade?
Luís Augusto Fischer – Matéria ampla a dessa pergunta. Candido foi um dos mais agudos pensadores sobre o conceito de “formação”, que vem de antes dele (de Sérgio Buarque, Caio Prado, até mesmo de Gilberto Freyre e do gaúcho Vianna Moog, e antes ainda vem de Machado de Assis em seus textos críticos), todos eles diferentes entre si, mas todos ocupados em pensar sobre o Brasil como um processo histórico, como uma formação, quer dizer, como um percurso que vai da condição de colônia até a condição de país autônomo, quando conseguia internalizar os mecanismos de autodefinição. Na geração de Candido, ao menos dois outros pensadores entram na conta, Raymundo Faoro e Celso Furtado, e depois deles mais gente produz ensaios “formativos”, consolidando uma linhagem de importância central para as ciências sociais, as letras e artes entre nós.
Quanto a sua atualidade, depende do ângulo de quem lê a coisa. Se tu perguntares a um pós-moderno, um desconstrucionista, um pós-estruturalista etc., ele provavelmente vai dizer que o conceito de formação é velho e ultrapassado, tendo em vista a internacionalização, dos mercados e das ideias. Do meu ângulo, o conceito continua tendo muito sentido, em particular para pensar sobre o passado e para projetar algum futuro que seja minimamente fruto de projeto nacional. E restrinjo mais claramente a coisa: não se trata de um projeto nacionalista ou isolacionista, que não preste atenção à evidente marcha de integração dos mercados (muito embora essa integração seja basicamente entre os de cima, entre os donos do capital, e não entre os de baixo, os do mundo do trabalho), mas de um projeto de nação que leve em conta o conjunto do país, que pense em acabar com a miséria e constituir um país digno para todos.
IHU On-Line – O engajamento político, até mesmo partidário, de Candido criou algum tipo de oposição ou crítica contra ele?
Luís Augusto Fischer – Creio que não, não houve muita coisa relevante nesse sentido de ele ter enfrentado problemas por ser quem era e ter as convicções que tinha, salvo naturalmente a posição truculenta da direita burra, das elites iletradas. Uma forma de ver isso é avaliar a enorme presença de figuras paulistas, saídas da USP ou nela lapidadas, no comando do Brasil, há décadas. Por mais que fosse de esquerda, Candido foi amigo de FHC até o fim, assim como ele era interlocutor de Lula ou ao menos de gente do "inner circle" petista, como Paul Singer. Claro que ele deve ter ouvido alguma espinafrada de algum direitista ou reacionário, mas por certo isso não chegou a ser grande problema para ele – mas também não devemos negligenciar seu papel de figura referente na oposição ao regime militar, à censura, às cassações, período em que Candido foi nada menos que exemplar.
No campo literário, ele teve amplo apoio e se tornou figura de referência até para quem não gostava de relacionar literatura e sociedade ou não gostava de misturar as excelsas letras com a vida real brasileira. Veja que ele foi homenageado como figura tutelar da Abralic, Associação Brasileira de Literatura Comparada, que no começo, anos 1970 e 80, tinha entre seus mais destacados dirigentes professores e críticos que abominavam as posições esquerdistas do Candido, mas não podiam deixar de homenageá-lo como um grande intelectual e como formador de gerações.
Um inimigo que teve, curiosamente, foi o grupo concretista, de São Paulo. Candido foi o orientador do doutorado de Haroldo de Campos, que nessa época o elogiou muito, mas depois Haroldo e Augusto bateram forte em Candido e, mais ainda, em Schwarz, que em vários sentidos é herdeiro direto de Candido, na crítica e na universidade. Os irmãos Campos gostavam de lembrar que Candido tinha sido chamado de “chato-boy” por Oswald de Andrade, em certo momento, por ser um intelectual acadêmico, que sempre tendia a discutir as coisas com conceitos e tal, ao contrário de Oswald, que posava de gênio espontâneo, irreverente, ao menos em algumas fases de sua vida.
Atualmente, Candido encontrou nova oposição na figura de um inteligente professor português, Abel Barros Baptista (que conta com aliados na universidade brasileira), que considera que Candido e seu discípulo Schwarz “sequestram” (sic – ele usa este verbo) a obra de Machado de Assis, porque obrigam, diz ele, a ler Machado exclusivamente segundo a pauta brasileira, o que impediria que o grande romancista e contista carioca circulasse mais amplamente e pudesse enfim ser reconhecido como par da primeira turma da literatura ocidental. Não concordo, é claro, mas enfim é uma das oposições que Candido enfrenta.
IHU On-Line – Qual o impacto do pensamento humanista e democrático de Candido em sua produção teórica?
Luís Augusto Fischer – Excelente questão, que requereria muitas páginas para responder adequadamente. Em brevíssimas e insuficientes palavras, a visão política e social de Candido se harmoniza com sua visão do literário e do sociológico. Por exemplo: interessado no destino das populações que migravam para a megalópole paulistana nos anos 1940 e 50, Candido, sofisticado intelectual poliglota e cosmopolita que podia ficar lá nas alturas acadêmicas e quem sabe migrar para outra universidade nos Estados Unidos ou na Europa, vai lá e estuda o caipira, com vistas a pensar nas maneiras de melhor acolher e educar esse pessoal. Da mesma forma, interessado no sofrimento das massas pobres, estuda casos de literatura diretamente envolvidos com o mundo dos de baixo, tanto no Brasil, como é o caso dos estudos que citei acima (sobre as Memórias de um sargento de milícias, ou sobre O cortiço) ou como o ensaio magnífico que tem sobre um romance italiano chamado Os Malavoglia, de Giovanni Verga, que foca uma comunidade pobre de pescadores na Itália. Mas é importante logo avisar que não se trata de Candido apenas elogiar o livro por tratar dos pobres: o que ele fazia era estudar os modos de representação dos pobres, para melhor entender as obras. Se fosse, aliás, para falar de preferências, curiosamente Candido tinha como autor do coração o aristocrático e melancólico Proust, de quem tinha uma vasta biblioteca, mas sobre quem quase nada escreveu.
IHU On-Line – O senhor escreveu que as ideias de Candido carregam as restrições de seu tempo e sua circunstância. Que restrições são essas?
Luís Augusto Fischer – Candido é genial, mas não está fora das constrições do tempo, claro – e ainda bem. Eu escrevi três estudos sobre a obra do Candido, com a intenção de estudar e analisar a dependência de sua obra em relação a certas interpretações do Brasil que hoje precisam ser reavaliadas.
Menciono duas: a primeira é que Candido naturaliza a visada modernista paulistana sobre o conjunto da literatura brasileira. Isso o leva a avaliar as coisas de um modo que obriga tudo a ser tributário daquele pessoal, de sua visão das coisas. Dizendo em poucas palavras, aqui temos um caso que, com o tempo, eu creio que vai ficar mais claro ainda, especialmente na medida em que nosso debate literário enfrente criticamente a verdadeira modernistolatria em que vivemos até agora, que considera ingenuamente que tudo que é modernista é bom e o que não é modernista não merece atenção. Um exemplo local é Simões Lopes Neto (que Candido por sinal elogia, destacando sua obra do conjunto dos contistas de tema rural daquele momento), que pela lente modernista é classificado como um “pré-modernista”, sendo portanto tratado como um autor menor, na medida em que não chegou a ser modernista, que seria uma mera figura preliminar, que no máximo anunciou algo que o Modernismo viria enfim a realizar de modo pleno. Estou aqui escrevendo a coisa muito resumidamente, mas enfim, este é um ponto: o modernismocentrismo que está na alma invisível da obra de Candido acaba por justificar essa barbaridade do exemplo – quando claramente Simões Lopes Neto nada tem a ver com a régua modernista paulistana e portanto o juízo sobre ele, se feito pela régua modernista, não apenas não captura ou descreve sua literatura como, pior ainda, sugere que o bom mesmo é o que o Modernismo fez, como se este tivesse sido uma revelação, um “nec plus ultra”, um ponto inultrapassável de beleza, liberdade etc. Candido, neste sentido, subscreve uma leitura escatológica da história da literatura, em que o ponto culminante é o Modernismo, e não se fala mais disso.
(Não quero com isso dizer que, especialmente quando fazia crítica afastada de uma perspectiva histórica, ele fosse um tolo, claro que não. Basta ver a centralidade de Machado de Assis, em particular a visão dele sobre o processo de formação da literatura brasileira, que no fim das contas é base do que Candido mesmo pensa. Machado não é avaliado pela régua modernista, claro: nenhum modernista teve essa petulância ou cometeu essa tolice, ainda que Mário de Andrade tenha escrito um depoimento de impressionante obtusidade sobre Machado. De todo modo, um tanto paradoxalmente, Candido nunca escreveu nenhum estudo de fôlego sobre Machado de Assis. O máximo que fez foi uma conferência, que foi escrita sob o título “Esquema de Machado de Assis”, que é inteligente mas não avança quase nada para além do que sua geração já sabia e dizia.)
A outra é mais complicada de expor em poucas linhas, mas vamos lá. Ocorre que Candido tem uma interpretação da história brasileira fortemente aliançada com a visão de Caio Prado Júnior sobre o Brasil, e esta é hoje em dia inaceitável. Para Caio Prado, o Brasil até o final do século 19 era fundamentalmente, quase que exclusivamente, o espaço da “plantation”, quer dizer, o espaço dos grandes ciclos monocultores, do açúcar e do café. Escrevendo nos anos 1930 a 1950, Caio Prado considerava que este era o Brasil, este espaço que era litorâneo, monocultor, latifundiário, escravagista e exportador. Fora disso, como disse com todas as letras Caio Prado, havia apenas agricultura de sobrevivência e formas sociais irrelevantes para entender o Brasil.
Este é o problema: hoje, as pesquisas históricas mais sofisticadas produziram dados que mostram à sociedade que o Brasil, ao menos desde o século 18, se não antes ainda, era muito mais que isso – no sertão, quer dizer, no espaço fora da “plantation”, havia não apenas sobrevivência, mas circuitos importantes de produção, circulação e consumo. O Rio Grande do Sul é apenas um exemplo, desde que se começou, na primeira metade do século 18, a levar gado em pé daqui até Sorocaba, passando pelo trigo açoriano, depois a produção das colônias imigrantes etc. Coisa semelhante ocorria em praticamente todo o território, como mostra muito claramente o trabalho de Jorge Caldeira, em vários estudos, por exemplo no excelente livro que é História do Brasil com empreendedores. Em outro sentido, historiadores como João Fragoso e Manolo Florentino mostraram que não se comprova a estreita dependência da economia brasileira como um todo em relação aos resultados da “plantation”. Eles mostram que a economia brasileira era muito mais dinâmica, que, por exemplo, foi capaz de crescer em momentos de baixa da economia metropolitana, a qual deveria ser, no modelo de Caio Prado, a reguladora exclusiva dos ritmos da economia da colônia brasileira.
Bem, o que isso tem a ver com o Candido? Resposta também nada simples, mas, em poucas palavras, a visão de Candido sobre o Brasil depende dessa visão de Caio Prado, tem afinidade forte com essa perspectiva, o que torna sua leitura da literatura brasileira de algum modo dependente dessa interpretação do Brasil como igual ao espaço da “plantation”, até o final do século 19. Não é, mas Candido assim vê.
Onde se pode verificar isso na obra dele? Em mais de um modo e momento. Candido, por exemplo, não integrou Gregório de Matos à sua Formação da literatura brasileira, com o argumento de que uma literatura, para existir, precisa da existência de uma interação entre autores, obras e público; na medida em que Gregório de Matos nunca publicou nada em vida, ele na verdade não tinha propriamente obra – e ele de fato só foi publicado em livro mais de um século depois de morrer – e portanto não constituiu parte de um sistema literário como tal.
Pergunto eu: mas ele não circulava no plano oral entre seus contemporâneos? Claro que sim. E depois de publicado, ele não foi lido (e continua a sê-lo)? Claro que sim. Então posso concluir que Candido o retirou do repertório que considerou relevante para a literatura brasileira segundo uma noção muito discutível, que não dá qualquer relevo à circulação oral, coisa que hoje sabemos central não apenas para a canção (Gregório compunha muitos de seus poemas para cantá-los), mas para todo o mundo ágrafo do sertão, onde circula muita coisa artística de forma oral, por muito tempo, até que receba forma escrita e impressa, como ocorre com as lendas, os causos, a linguagem em geral – veja-se o caso do já citado Simões Lopes Neto e de Guimarães Rosa, que escreveram obras sensacionais tendo como matéria-prima a fala da gente do sertão (tomando “sertão”, aqui, como “não-plantation”). Se a gente pensar neles como “regionalistas”, palavra abominável para mim (mas que Candido usa sem maior problema e muita gente até hoje parece levar bem, para meu total espanto), eles figuram como menores, quando são claramente maiores.
Isso, em primeiro lugar, para tentar mostrar um efeito da sombra caiopradiana sobre a alma da obra do Candido. Em segundo lugar, e ainda com o exemplo da “expulsão” de Gregório de Matos, se pode mostrar que Candido tem uma visada estritamente linear do processo da formação da literatura brasileira. Ora, digo eu, se o poeta baiano foi publicado apenas no século 19, isso não é motivo suficiente para a gente não o reconhecer como um poeta válido, que foi bem lido a partir de sua primeira edição em papel! O intervalo de décadas entre sua vida e a leitura de sua obra em livro não impugna a força que sua poesia teve no leitor – podemos estimar, pela presença de sua poesia a partir das primeiras antologias escolares depois da Independência, que a recepção que teve foi sempre significativa, entrando portanto em circuito de leitura e produção de sentido, quer dizer, compondo a tradição local e com isso participando de pleno direito do processo formativo. Eu, como leitor criado nos anos 1960 e 70, conheci Gregório de Matos pela canção de Caetano Veloso chamada “Triste Bahia”, que tem como ponto inicial as duas primeiras estrofes de um soneto do poeta, e pergunto: ele não participa da formação? Claro que sim, é central para a literatura brasileira, considerada como um processo não-linear, que é o justo.
IHU On-Line – O legado de Candido ecoa com mais relevância em que pesquisadores e de que maneira?
Luís Augusto Fischer – Em sentido difuso, a obra de Candido é lida em toda a universidade brasileira, no campo das Letras. Se fosse possível fazer um levantamento numérico, ela estaria provavelmente entre os cinco, no máximo entre os dez mais citados autores de teoria e crítica literária no Brasil.
Como mencionei antes, no primeiro plano da vida universitária brasileira, é Roberto Schwarz o mais importante herdeiro de Candido. Desde muito tempo, Schwarz se dedica não apenas a ler, mas mais ainda a interpretar a obra de Candido, num processo de que resultaram alguns ensaios de grande interesse, como “Pressupostos, salvo engano, da ‘Dialética da malandragem’”, um caso raríssimo no universo letrado brasileiro porque se trata de uma crítica analiticamente forte e orientada não apenas para louvar o autor, mas para postular novas interpretações para ele. Esse caso, como o de outros que ele formou (como Davi Arrigucci, José Miguel Wisnik e outros), depende de um circuito universitário que se leva a sério, como é o caso da USP, e é muito raro entre nós, brasileiros, em geral, na minha área. Nós preferimos, em geral, aderir a uma teoria ou descartá-la muito mais em função dos humores dos países centrais de prestígio (a França ou os Estados Unidos, basicamente) do que em função da capacidade que a teoria tenha de explicar os objetos a que se dedica.
Há uma nova geração de professores e pesquisadores, em muitos estados do Brasil, mais ou menos organizados em um coletivo que se chama justamente Grupo Formação, em alusão ao termo empregado por Candido. Somos um grupo com gente aqui no estado, no Paraná, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Ceará, em Brasília, no Rio Grande do Norte e mais algum outro canto. Nos reunimos já há uns vinte anos, e nossas afinidades iniciais estão representadas precisamente na obra de Candido e na de Schwarz.
Sem falsa modéstia, posso dizer que no Instituto de Letras da UFRGS temos um bom número de professores e pesquisadores com trabalhos variados e de bom nível, em diálogo crítico com o legado de Candido. Refiro-me a colegas como Homero Araújo e Guto Leite, parceiros no campo da literatura brasileira, ou como Ian Alexander, no campo da literatura de língua inglesa, ou Karina Lucena, no campo da literatura hispano-americana. Da minha parte, como mencionei acima, escrevi estudos especificamente sobre a obra de Candido, e tenho produzido alguns estudos sobre literatura gaúcha e brasileira segundo concepções e procedimentos ligados ao trabalho dele, sempre submetidos à crítica que considero relevante e na medida de minhas limitações. Da mesma forma, já há um conjunto vigoroso de dissertações e teses produzidas nessa dinâmica que tem Candido como referência central, sob minha orientação ou da desses colegas.
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Antonio Candido foi o intelectual mais destacado de sua geração. Entrevista especial com Luís Augusto Fischer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU