15 Mai 2017
"Num momento de um certo impasse na ação política, dissolução de paradigmas e do surgimento de práticas pelo menos discutíveis, a lucidez implacável de Antonio Candido nos ajuda a uma redefinição profunda de uma ação política em crise radical e a redescobrir a exemplaridade de uma produção literária enraizada ao mesmo tempo nas condições locais, nacionais, latino-americanas e universais", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Noventa e oito anos plenos. Sua obra de crítica literária é única e vasta, cobrindo a vida intelectual de muitas décadas. São notáveis suas obras clássicas, “Formação da literatura brasileira” (2 vol. Ed.USP,1975) e “Iniciação à literatura brasileira (Resumo para principiantes)” (Ed.Humanitas,1998). Num texto lúcido, “Literatura e subdesenvolvimento” (in A educação pela noite e outros ensaios”, Ática, 1989), vai estudar a situação da literatura latino-americana nesse contexto subdesenvolvido, com grande parte da população analfabeta e com largo setor de suas elites voltadas mimeticamente para os modelos europeus.
Vai analisar o impacto dessa situação numa literatura colonial e dependente. “Um estágio na superação da dependência, é a capacidade de produzir obras de primeira ordem influenciadas, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores... o que se poderia chamar, um pouco mecanicamente, de causalidade interna, que torna, inclusive, mais fecundos os empréstimos tomados às outras culturas”. No caso brasileiro, “os criadores de nosso modernismo derivam de vanguardas europeias. Mas poetas da geração seguinte , nos anos 1930 e 1940, derivam imediatamente deles “ (caso de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes). Estes, por sua vez, vão inspirar adiante João Cabral de Melo Neto. Para o autor, Jorge Luis Borges representa o primeiro caso de incontestável influência original. Ruben Dario, poeta nicaraguense modernista, em sentido oposto, vai ter enorme impacto na literatura espanhola, não esquecendo porém seu débito da literatura francesa.
E afirma contundente: “Quanto mais o homem livre que pensa se imbui da realidade trágica do subdesenvolvimento, mais ele se imbui da aspiração revolucionária -, isto é, do desejo de resgatar o jugo econômico e político do imperialismo...” Então, pode “encarar com maior objetividade e serenidade o problema das influências, vistas como vinculação normal no plano da cultura”. Para ele, é fundamental a relação nacional-universal, vencidas as travas da subordinação. E assim, sua análise literária se articula com uma realidade social, econômica e política particular-universal. Ela está então ligada a uma certa noção de mundo e a uma vontade de transformação. É onde sua vocação de crítico vai buscar sentido num compromisso político. Essas duas dimensões não estão superpostas, mas profundamente articuladas. Antônio Candido não poderia deixar de ter uma militância política radical e de esquerda.
Assim, sempre esteve presente na luta pela democracia e pelo socialismo. Desde o tempo em que , durante o Estado Novo, militava na clandestinidade no Grupo Radical de Ação Popular (quando criamos a AP, nos anos 60, não tínhamos conhecimento desse movimento praticamente homônimo). Depois, na redemocratização, esteve na Esquerda Democrática e mais adiante na fundação do Partido Socialista com João Mangabeira.
Em 1980, com Mário Pedrosa e Florestan Fernandes, está presente na criação do Partido dos Trabalhadores. Gloria ao partido que, nascendo com profundas raízes no povo, teve a presença destes três grandes pensadores. Nunca a noção de intelectual orgânico gramsciana foi tão bem aplicada: “Cada grupo social... cria para si, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função...”(Os intelectuais e a organização da cultura, Civilização Brasileira, 1978). Alfredo Bosi, outro pensador da mesma estirpe, vai aprofundar o sentido dessa presença fértil na vida da inteligência brasileira (Debate e Crítica, nº6, 1975).
Foi um dosa pilares do Instituto da Cidadania, onde seus cursos foram seguidos por atenção e perspicácia pelo dirigente operário Luiz Inácio Lula da Silva. Recordo uma reunião de Lula com intelectuais, em 27 de agosto de 2006, em São Paulo, quando li o manifesto, “Nossa responsabilidade como cidadãos e cidadãs”, por ocasião da reeleição de Lula, em que Antonio Candido manifestou seu apoio entusiasta pelo presidente-operário. Nos últimos anos, segundo testemunhas, demonstrou uma certa perplexidade, muito compreensível, pelos rumos do movimento que ajudou a criar e que não soube se refundar, como propôs Tarso Genro, outro intelectual de envergadura.
Nessa tríade indicada acima, com Pedrosa e Florestan (amigos ainda que com divergências teóricas), ele alimentou uma ação e uma reflexão sobre a realidade brasileira. Num momento de um certo impasse na ação política, dissolução de paradigmas e do surgimento de práticas pelo menos discutíveis, a lucidez implacável de Antonio Candido nos ajuda a uma redefinição profunda de uma ação política em crise radical e a redescobrir a exemplaridade de uma produção literária enraizada ao mesmo tempo nas condições locais, nacionais, latino-americanas e universais.
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Antonio Candido, intelectual lúcido e militante de larga visão histórica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU