31 Agosto 2016
“Dilma não evitou nenhuma pergunta nem nenhuma provocação. Teve de repetir-se à saciedade, para responder uma e outra vez aos mesmos questionamentos. Seu domínio das decisões governamentais, cifras e detalhes, foi admirável. Altiva sem se arrogante, direta sem tergiversar”, escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo.
Eis o artigo.
Escrevo nos primeiros minutos do dia 30 de agosto. Trago, ao quente, minhas primeiras reações, que se foram fortalecendo pelo dia a fora. Uma mulher valente, manejando com maestria dados da realidade do país e do seu governo, denunciando um possível golpe parlamentar, diferente daquele golpe das armas que a levou à prisão e à tortura, mas de todas as maneiras golpe, ao tentar condenar uma Presidenta inocente por pequenos atos plenamente justificáveis. Golpe esse que teve um pecado original, quando o processo de impeachment partiu de uma vingança soez do ex-presidente da Câmara, a figura sinistra de Eduardo Cunha, no momento em que o PT de recusou a ajudar e encobrir um número crescente de mentiras e de crimes que se foram acumulando contra esse personagem na Comissão de Ética da Câmara.
Desde as 9 da manhã até quase a meia-noite, com dois intervalos, a Presidenta Dilma Rousseff respondeu às colocações de 48 dos 81 senadores. A grande maioria das intervenções – e me refiro inclusive aos dois lados - não eram perguntas de juízes para recolher argumentos para julgar. Ficaram praticamente ausentes questionamentos sem a priori, que poderiam levar a um momento seguinte de discernimento, quando então os senadores passariam, aí sim, a posicionar-se e somente logo depois votar. Com pouquíssimas exceções, as intervenções pelo impeachment eram mais declarações de voto que prejulgavam, em lugar de questionamentos partindo de juízes que, ao inquirir, buscassem elementos de reflexão que levariam, logo, a uma decisão madura. Mas as colocações críticas já definidas se repetiam monotonamente, o que obrigou a Presidenta a também repetir pela enésima vez seus argumentos definitivos.
O processo de impeachment, formalmente, não se deu em função do governo da presidenta em seu conjunto, ainda que isso esteve explícito em várias intervenções. O impeachment se baseou em quatro detalhes menores. Por um lado, três decretos que a presidente teria assinado sem as autorização do Congresso, ainda que a Lei orçamentária autorizou o executivo a realocar medidas financeiras, desde que não ultrapassassem as metas globais previstas. Além dessas três medidas menores, criticou-se o Plano Safra de incentivo à agricultura familiar, media e grande. Plano que vinha de mais atrás. Base fragilíssima para um ato tão grave como o de depor uma presidenta. Esta reduziu a pó as alegações em torno a esses quatro atos. Como disse, alguns se aventuraram a falar da gestão da Presidente Dilma em sua globalidade, o que não era o motivo técnico do processo. Mas isso permitiu que a Presidenta, magistralmente, apresentasse os ganhos de seu governo, numa situação internacional crescentemente desfavorável.
Tentar destituir, num regime presidencialista, a autoridade máxima do executivo a partir de questões menores, mostrava o caráter de má vontade, visão mesquinha, pequena e estreita. Mas a Presidenta Dilma aproveitou então para denunciar a política recessiva e antinacional do atual governo provisório e o absurdo de entregar o pré-sal, passando já da metade de nossa produção de petróleo, à sanha dos grandes consórcios internacionais, deixando de recolher um enorme ganho para ser aplicado na educação e parte na saúde. No passado lutamos: “O petróleo é nosso”. A luta hoje é: ”O pré-sal é nosso”.
Não é o momento agora, às pressas, de detalhar todo o debate. São as primeiras impressões, ao calor dos sentimentos. O que se viu foi uma Dilma competente, precisa na argumentação e nos dados. Volta à nossa memória histórica aquela menina valente, olhar firme, enfrentando o arbítrio de juízes que escondiam seus rostos. Aqui, um pouco mais da metade dos senadores se aventurou a falar e inquirir na frente de uma Presidenta incansável. Onde estavam Romário, Marta Suplicy, Edison Lobão, Jader Barbalho ou Fernando Collor? Entende-se que o presidente Renan Calheiros tenha escolhido ficar fora do contraditório, como presidente do Senado.
Dilma não evitou nenhuma pergunta nem nenhuma provocação. Teve de repetir-se à saciedade, para responder uma e outra vez aos mesmos questionamentos. Seu domínio das decisões governamentais, cifras e detalhes, foi admirável. Altiva sem se arrogante, direta sem tergiversar. Claro que ao lado recebeu testemunhos de admiração e de apoio.
Só posso orgulhar-me, como brasileiro, de ter uma presidenta destas, que ajudei a eleger com meu voto. E há um pequeno detalhe que não posso deixar de lembrar e que relato em meu livro sobre um andarilho. Convidado, em outubro de 2007, a um programa da Globo News das 22 horas, para opinar sobre a presidenta Cristina Kirchner recém-eleita, aventurei me a sair do guião rígido do programa global e fiz a seguinte afirmação: gostaria de sonhar com um debate no futuro entre duas presidentas, Cristina e Dilma Rousseff. Conste que o nome desta última ainda não havia saído na mídia como candidata. O entrevistador ficou visivelmente desconfortável. Esse programa se repete sempre na madrugada. Um amigo que gostou da entrevista quis gravá-la na repetição para oferecer-me, porém teve a surpresa de ver que essa parte de minha intervenção fora totalmente apagada. Passaram-se anos e, no programa da Globo News das 16 horas, a simpática entrevistadora, que desconhecia minha participação anterior, pediu-me para falar de Michèle Bachelet, eleita presidenta no Chile, ela também presa e torturada com sua mãe e com seu pai expulso do exército. Eu lembrei então o fato anterior e me alegrei que agora tínhamos um diálogo de três presidentas, em nossa América Latina.
Quero terminar com uma reflexão do escritor cubano Leonardo Padura, famoso por suas últimas novelas, que não deixou seu país, mas é capaz de ser severamente crítico de sua realidade e de outras realidades autoritárias na história:
“Desde meu balcão cubano, tenho acompanhado com assombro como se formou a cadeia de acontecimentos que chegaram ao ponto onde chegaram: remover do poder a um presidente eleito pela maioria de seus cidadãos. Como se tratasse de um velho filme de faroeste, ou de uma novela brasileira, eu assisti ao desenvolvimento do drama com a esperança de que, ao final, se fizesse a justiça. Todavia, com dor e ainda mais assombro, comprovei que as tramas da realidade podem ser mais complicadas que a de qualquer ficção e que na política os grandes poderes, visíveis ou invisíveis, sabem operar com maestria. E que poucas coisas são tão fáceis de se realizar como a manipulação da verdade e, com ela, das mentes”.
Mas, como incorrigível cultivador da esperança, tendo vivido os golpes do Brasil e do Chile, espero que o vaticínio pessimista de Padura não se realize (mais um golpe!) e que o Senado saiba escrever uma página digna e limpa na história deste país. Encerro estas notas noturnas fazendo votos para que, desta vez, as tramas dos poderosos não vençam. De qualquer maneira repito as palavras de Salvador Allende momentos antes de tirar-se a vida: “La historia es nuestra, la hacen los pueblos”.
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