07 Dezembro 2021
"A Covid-19 tornou visível uma ameaça patógena para a nossa existência. Para nós, humanos, parece um absurdo pensar no fim, na extinção da nossa espécie, ou mesmo na sua redução para um número indivíduos tão pequeno a ponto de não sermos mais uma ameaça ao planeta e à sobrevivência de outras espécies", escreve Alexandre A. Martins, professor de bioética e ética social na Marquette University em Wisconsin, nos EUA.
Segundo ele, "o futuro da nossa espécie é desconhecido, mas se continuarmos presos à arrogância de nos vermos fora da natureza ou superiores a ela, o futuro estará entre duas tragédias: a destruição total da natureza e, consequentemente, a nossa, ou o fim da nossa espécie, o que, ironicamente, será um bem para a natureza e seu equilíbrio".
“Patógenos são o principal fator que promove a diversidade. Patógenos basicamente impendem que uma espécie bem adaptada domine o ambiente e exclua todas as outras. Nós somos uma dessas espécies que tem crescido loucamente, tomando o espaço de outras espécies, criando extinções”. Ouvi isso do meu amigo Felipe Nery Melo, doutorando em biologia na Marquette University, nos EUA, que realiza pesquisa de campo numa floresta tropical, em uma ilha no Panamá, depois de ter partilhado com ele o texto Pathogens and Humans, de Walter Glannon, que reflete sobre a competição entre vírus e humanos, considerando a atual batalha entre o coronavirus e a nossa espécie.
Glannon inicia seu texto com uma frase já clássica em 1988, no contexto da epidemia do HIV, dita pelo vencedor do Nobel em Fisiologia ou Medicina, Joshua Leberderg, biólogo molecular: “Não temos garantia que sempre sairemos vencedores da competição evolucionária natural dos vírus com a espécie humana”. A pandemia da Covid-19 – que já matou milhões de pessoas por causa de vírus que está cada vez mais desafiando a inteligência e a arrogância humanas – apresenta, a cada dia, a cada nova mutação viral, a cada nova onda de infecções, que a espécie humana está perdendo a competição. Vale lembrar que essa momentânea derrota não se deve somente à Sars-Cov-2, às suas mutações e à nova cepa chamada ômicron. A espécie humana há tempo resulta comprometida por causa da arrogância que a faz colocar-se acima da natureza, como se essa pudesse ser dominada e explorada ilimitadamente, apenas para servir o ser humano.
A Covid-19 tornou visível uma ameaça patógena para a nossa existência. Para nós, humanos, parece um absurdo pensar no fim, na extinção da nossa espécie, ou mesmo na sua redução para um número indivíduos tão pequeno a ponto de não sermos mais uma ameaça ao planeta e à sobrevivência de outras espécies. Numa perspectiva teológica cristã, como um ser desejado por Deus e guiado por Ele para uma existência escatológica depois de uma vida histórica de cuidado com a criação, poderia estar à deriva numa competição evolucionária com patógenos que pode levar à derrota humana, algo que seria um bem para a própria criação como um todo? Certamente esse questionamento coloca muitos fiéis cristãos e teólogos num drama teológico-existencial, e isso é positivo. Mas, infelizmente, creio que a maioria sequer dá-se o trabalho de pensar a existência humana como uma espécie entre outras na criação, e que essa não precisa de nós para existir. Aliás, considerando a crise ecológica que vivemos, a criação estaria melhor, obrigado, sem os humanos. A diversidade é necessária para o equilíbrio da criação, da natureza. E, como diz meu amigo Felipe Melo, patógenos estão aí para ajudar a manter esse equilíbrio, que pode ser quebrado por uma espécie superdominante. Somos nós, humanos, essa espécie.
Na sua provocativa reflexão, Glannon afirma: “Embora talvez não seja o que acontecerá agora, a competição entre vírus ou outros patógenos e humanos poderá levar à nossa eliminação”. Mais ainda: “Vacinas podem enfraquecer a virulência e liminar a difusão infecciosa de alguns vírus. Mas a emergência de novas variantes – tais como a ômicron, a nova variante do coronavírus – dá aos vírus uma vantagem evolucionária... Não podemos assumir que os vírus sempre se desenvolvem para uma condição que podemos controlá-los. Seria muita arrogância nossa ter isso como pressuposto...”. Embora o texto seja marcado por um realismo pessimista, Glannon conclui com um horizonte de esperança: “Humanos podem mudar o comportamento para diminuir o risco de ameaças às suas vidas, criadas por enfermidades zoonóticas, como, por exemplo, protegendo habitats naturais por meio da limitação da deflorestação”.
A história da parte ocidental da humanidade – fundada na matriz helenística, que progrediu para a síntese judaico-cristã, que assume o helenismo e o leva ao mecanicismo cartesiano de dominação da natureza e do outro – sempre se pautou pela absoluta superioridade do ser humano em relação a tudo o que existe na natureza. Criou-se uma ideia ética antropocêntrica, que separara o ser humano da natureza, a qual precisa ser compreendida e explorada para melhor servir os humanos. Ademais, essa ética de dominação e exploração expande-se até a conquista de outros povos, não ocidentais, criando o colonialismo, algo muito presente atualmente na mentalidade dos países ricos do Hemisfério Norte, que ainda veem como inferior tudo que não seja ocidental.
Essa pretensa superioridade do ser humano, que se coloca fora da natureza e acima dela, hoje nos situa num dilema existencial, o dilema da sobrevivência como espécie. Um dilema visível com crise ecológica que enfrentamos – não sentida ainda por muitos e, ao mesmo tempo, negada ou ignorada por tantos outros –, e com a crise criada pela pandemia, que escancara tanto a nossa arrogância quanto a nossa fragilidade.
A arrogância humana – particularmente a da epistemologia ocidental – criou a crise que vivemos hoje, colocando a nossa espécie fora da natureza e acima de todas as outras. E a religião judaico-cristã tem sua parcela de contribuição para esse antropocentrismo insustentável. Penso que somos parte da criação como qualquer outra espécie e não uma espécie superior, acima do restante da criação, para mediar a relação entre as criaturas e o Transcendente, não criado. Fazemos parte da criação como qualquer outra espécie e elementos naturais. Não existe, de um lado, a natureza e, de outro, nós. Existe apenas a natureza, da qual o ser humano faz parte, como apenas um ser criado a mais. E isso o próprio Papa Francisco reconhece: “cada uma das diferentes espécies tem valor em si mesma” e dá glória a Deus simplesmente pela sua existência. “Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer” (Querida Amazônia, 54).
De fato, não temos esse direito. Não somos superiores nem a um microscópico vírus. Na verdade, se meu amigo biólogo Felipe Melo estiver certo, os patógenos fazem mais para o equilíbrio da natureza do que nós, humanos. A existência deles dá glória a Deus contribuindo para esse equilíbrio ao impedir a super dominação de uma espécie mais adaptada, enquanto nós estamos quebrando esse equilíbrio.
É difícil aceitar que a nossa espécie não é superior e que patógenos podem nos destruir. Mais difícil ainda é aceitar que essa destruição seja algo bom para planeta Terra e tudo que nele existe. Precisamos de uma humildade mística, que transcenda a mentalidade colonial ocidental, para acreditarmos que ainda é possível um horizonte de equilíbrio na natureza com a nossa existência. Como afirma Ailton Krenak: “Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (Ideias para adiar o fim do mundo, p.16-17). Ailton fala partir da sabedoria ancestral do seu povo krenak, um dos povos originais dessa terra que hoje chamamos Brasil. O futuro da nossa espécie é desconhecido, mas se continuarmos presos à arrogância de nos vermos fora da natureza ou superiores a ela, o futuro estará entre duas tragédias: a destruição total da natureza e, consequentemente, a nossa, ou o fim da nossa espécie, o que, ironicamente, será um bem para a natureza e seu equilíbrio.
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Ômicron, natureza e arrogância humana: uma guerra entre patógenos e humanos. Artigo de Alexandre A. Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU