25 Junho 2021
“A morte de Deus nos livrou do ‘Deus da metafísica’, para utilizar uma expressão de Gianni Vattimo, esse Deus que culpa e castiga o ser humano, exigindo uma submissão cega. Em Crer que se crê, o filósofo italiano sustenta que a morte do Deus da metafísica nos ajuda a reencontrarmos o Deus da esperança”, escreve Rafael Narbona, escritor e crítico literário, em artigo publicado por Vida Nueva Digital, 20-06-2021. A tradução é do Cepat.
De vez em quando, experimento uma crise de fé. A causa sempre é a mesma: a insatisfação que me produz a imagem tradicional de Deus. Não me convence a ideia de um Deus onipotente, onisciente e imutável que se imola na cruz para redimir o ser humano da mancha do pecado original.
A possibilidade de herdar a responsabilidade de uma falta remota atenta contra a dignidade do ser humano. Um filho nunca é responsável pela conduta de seus pais. É algo que qualquer código legal minimamente racional reconhece. Não parece menos absurdo exigir um horrível sacrifício para redimir uma transgressão. Esta narrativa parece extraída de uma mitologia arcaica, não de uma Boa Notícia que manifesta o compromisso de Deus com o ser humano.
Os conceitos de onipotência, onisciência e imutabilidade distanciam Deus do mundo, colocando-o em uma alteridade transcendente que contrasta com o fenômeno da Encarnação, onde se aceita a fragilidade, a dúvida e a impotência como aspectos da divindade. O mistério último de Deus transborda a razão, mas isso não significa que seja ininteligível.
Não em vão, a tradição repetiu que fomos criados à sua imagem e semelhança, o que garante uma compreensão razoável e suficiente do divino. A morada de Deus não é o além. Deus está mais aqui, submergido em nosso interior e confundido com o mundo. Por isso, pôde participar da experiência da morte, do desamparo e da hesitação.
Cabe interpretar a morte de Deus de duas formas. Para Nietzsche, constitui uma libertação, pois lança para longe de nós o lastro da moral cristã, que identifica a virtude com a compaixão, invertendo a ordem da natureza, onde a força é a única forma de excelência. Esta interpretação abre as portas para a utopia racial e biológica do totalitarismo nazista que gerou Auschwitz, uma “obra mestre do ódio”, segundo as palavras de Jankélévitch.
Evidentemente, trata-se de uma perspectiva nefasta e estéril, mas há outra interpretação da morte de Deus que nos leva a uma visão mais humana e frutífera. O eclipse do sobrenatural no mundo moderno pode ser entendido como uma etapa a mais da revelação e não como uma desgraça.
A morte de Deus nos livrou do “Deus da metafísica”, para utilizar uma expressão de Gianni Vattimo, esse Deus que culpa e castiga o ser humano, exigindo uma submissão cega. Em Crer que se crê, o filósofo italiano sustenta que a morte do Deus da metafísica nos ajuda a reencontrarmos o Deus da esperança, que – segundo o Evangelho de João – não nos considera seus servos, mas seus amigos (15, 15).
Vattimo considera que a Encarnação deve ser interpretada como “uma ontologia do enfraquecimento”. Deus se deu a conhecer como uma criatura necessitada e vulnerável. Não é uma notícia paradoxal, mas a culminação de um processo onde o Deus cristão rompe o vínculo entre a violência e o sagrado. Jesus não vem ao mundo para aplacar a ira do Pai (ou, caso se prefira, sua exigência de justiça), mas para destruir a imagem de um Deus que exige sacrifícios: “Eles o matam – escreve Vattimo – porque uma revelação assim é muito intolerável para uma humanidade enraizada na tradição violenta das religiões sacrificiais”.
A persistência da ideia de Cristo como cordeiro sacrificial apenas revela que o ser humano resiste a desenredar a experiência religiosa do mito. Enquanto essa imagem do divino perdurar, a revelação não terá sido concluída.
O Deus do mito é uma projeção da vontade de poder do ser humano. O anseio de poder é incompatível com a kenosis ou rebaixamento. Ao encarnar e colocar-se ao nível do ser humano, Deus evidenciou que não desejava ser um senhor feudal.
A secularização não constitui um gesto de rebelião contra Deus, mas uma restituição do sentido original da kenosis. Permite que nos tornemos independentes de um Deus que atua como um absoluto despótico e ameaçador.
Uma imagem de Deus que ressalte sua solidariedade com o ser humano e não seus atributos majestosos pode promover a necessária reforma da Igreja, aproximando-a do modelo evangélico, segundo o qual os seguidores de Cristo devem constituir uma comunidade de iguais, sem hierarquias, nem discriminações.
A secularização nos desprende das infidelidades ao Evangelho, devolvendo o protagonismo aos ensinamentos de Jesus, purificados das adesões ditadas por ambições ilegítimas. Nesse sentido, “talvez o próprio Voltaire – escreve Vattimo – seja um efeito positivo da (autêntica) cristianização da humanidade, e não um inimigo blasfemo de Cristo”.
A essência do cristianismo é a caridade. A kenosis é a expressão radical de uma pedagogia divina que ainda está em andamento, pois quando Jesus questionou a Lei estabeleceu a necessidade de interpretar a Escritura, incluído o que foi escrito sobre o seu magistério.
Ser fiel a Cristo significa realçar sua condição de amigo do ser humano, sem ceder à fantasia que o torna rei. É preciso desmascarar o ídolo que foi construído em seu nome, desviando-se de sua mensagem libertadora. Não podemos aceitar literalmente o Evangelho, nem o ensino dogmático da Igreja.
Vattimo afirma que ser cristão é “ler os sinais dos tempos, sem outra reserva que o mandamento do amor”. Dietrich Bonhoeffer caminhou nessa linha, pedindo que esquecêssemos do Deus ex machina que resolve todos os problemas. Um Deus onipotente produz perplexidade quando é confrontado com tragédias como a Shoah.
Parece mais razoável falar de um Deus que luta e sofre com o ser humano, tentando resistir aos estragos do mal. O Deus onipotente e onisciente propicia a idolatria e a superstição, prendendo o ser humano em uma permanente menoridade.
Para Vattimo, Deus não é uma “estrutura eterna”, mas “um evento”, a origem de nossa existência como criaturas históricas. É nosso Pai e nossa Mãe. Pede para que nós o amemos e isso implica amar nossos semelhantes, que também são seus filhos. A história não é algo deplorável, fruto de uma queda, mas um aspecto essencial da vida de Deus, que se aproxima de nós, pedindo-nos que renunciemos à ira, ao egoísmo e à vingança.
O mundo é o lar do cristão, não uma transcendência que nos separa radicalmente do sagrado. Não devemos virar as costas para a tradição. Devemos escutar seus ensinamentos, mas sem esquecer que a Igreja é a comunidade viva dos crentes e não somente a hierarquia eclesiástica.
A necessidade de interpretar o Evangelho para avançar para uma visão de Deus distante do mito não afeta, de forma alguma, o mandato de não matar, que implica uma obrigação incondicional. A fidelidade a esse princípio nos impõe ler a Bíblia a partir de uma perspectiva crítica, rejeitando mensagens tão horripilantes como o final do Salmo 137: “Ó devastadora filha de Babel / feliz quem devolver a ti o mal que nos fizeste! / Feliz quem agarrar e esmagar / teus nenês contra a rocha!
Jesus veio para nos libertar dessa visão aterrorizante de Deus que reflete os preconceitos das sociedades arcaicas. Vattimo argumenta que o cristão, “em vez de se apresentar como um defensor da sacralidade e a intangibilidade dos Valores, deve agir, sobretudo, como um anarquista não violento, como um irônico desconstrutor das pretensões das ordens históricas, não guiado pela busca de maior comodidade para si, mas pelo princípio da caridade aos outros”.
O formalismo ritual ancora a fé no Deus trágico e mítico da metafísica. O Evangelho é um dom, mas um dom que exige uma interpretação. Não interpretar significa reduzir a fé a um ato de disciplina. É o que pedem os fundamentalistas, cujo sonho é tornar a Igreja um exército sempre disposto a lutar contra a modernidade. Não é o que parece esperar esse Deus indulgente e próximo, para quem o ser humano não é um servo, mas um amigo.
A ternura é o sinal distintivo do Deus cristão. Sua mensagem de fraternidade e esperança não é anacrônica. Promove a convivência pacífica, solidária e democrática, e oferece uma expectativa de justiça e reparação aos humilhados, maltratados e injuriados.
Minhas crises de fé são sempre resolvidas da mesma maneira. Abrindo o Evangelho e lendo o Sermão da Montanha ou a despedida de Jesus, durante a Última Ceia, quando anima seus discípulos a amar uns aos outros. O Deus que aparece nele não é esse ídolo que inspirou fogueiras e cruzadas, mas o que morreu para enfrentar o poder do Império e o Templo, pedindo que os últimos fossem os primeiros e convidando à mesa os párias e oprimidos.
Esse Deus buscou a proximidade com os pobres, as mulheres, os doentes, e respondeu à violência com mansidão. Não para incitar o conformismo, mas para deixar claro que Deus desconhece a ira e a vingança. Talvez esse Deus desaponte as expectativas dos que se prostram e se humilham diante de um ídolo todo-poderoso, menosprezando o ser humano e o mundo, supostamente corrompidos por um pecado mítico, mas é o único Deus no qual posso acreditar, pois noto sua presença cada vez que olho para uma pessoa afundada no infortúnio, implorando solidariedade e afeto.
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Gianni Vattimo: a morte de Deus, uma boa notícia para a fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU