02 Março 2021
Ninguém pode decidir pela mulher, nem comitês de ética, nem médicos, nem códigos penais, nem fórceps de Estado, como desejariam alguns projetos de lei sobre o aborto.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 28-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Escrevo em meu nome pessoal, e vocês se perguntarão por quê. Para entender as coisas, é preciso ver nelas o que acontece por ser desejado, o que é providencial e o que é fortuito.
Na véspera do meu 90º aniversário, de manhã cedo, não podendo sair por razões de saúde, veio me encontrar com a Eucaristia um caro amigo jesuíta que pensou em me trazer o Avvenire, o meu antigo jornal agora tão bem dirigido por Marco Tarquinio. Como era domingo, muitas bancas de jornal estavam fechadas, então ele foi buscá-lo na estação Termini.
Naquele jornal, como sempre muito rico, era reaberta com muito pathos e sofrimento, por uma leitora, a questão do aborto, como questão dolorosa e divisiva entre as mulheres e a Igreja. Sobre isso, as mulheres não são compreendidas pela Igreja, que, em tal matéria, pensa sobretudo, digamos assim, no “caso”, não nas pessoas, às quais, desse modo, ela já não leva a boa notícia do Evangelho – que, pelo contrário, é drasticamente contestada para elas –, mas lhes entrega a má, a péssima notícia de que o seu aborto voluntário foi um assassinato, que, portanto, elas são homicidas e mandantes de sicários, os médicos que realizam o aborto.
Mas (sem querer entrar na casuística) as mulheres não têm essa consciência de serem culpadas de homicídio, pelo contrário, como faz a leitora em questão, lamentam-se da sua imensa dor por terem tido que renunciar a um nascimento, por não terem podido ter o seu filho que, por isso, não nasceu, não por terem o matado à porta de si mesmas. É do seu “eu”, ainda inseparavelmente ligado a ele, que o nascituro não veio à luz, permaneceu como um futuro possível (muitas vezes impossível) mas incompleto.
Aquilo que a Igreja não faz, aquilo que uma moral axiomática não faz, ou seja, distinguir entre interrupção de gravidez e homicídio, entre aborto e falecimento, entre incompleto e extinto, elas fazem há milênios.
Na antiguidade, era muito clara a diferença entre aborto e homicídio, entre não nascer e morrer. Para os filósofos romanos (há um grande livro, muito consultado na sua época, sobre o aborto no mundo greco-romano), não havia dúvida de que não era uma questão de homicídio; entre os médicos, por sua vez, se discutiam as várias fases da gravidez.
A Bíblia sabe muito bem o que é o aborto; existe a percepção de que é possível não sair do ventre da própria mãe, e não de que é possível ser suprimido dele. Quando Paulo fala de si mesmo como de um aborto, ele não pensa que foi morto ao nascer, mas que não veio à vida.
A questão, ao que me parece, insurge, irrompe dentro da Igreja, com a disputa sobre quando Deus infunde a alma no feto. Porque é só quando chega a alma que o ser humano se torna ser humano, “ser vivo” como homem e mulher criados por Deus. Então, e só então (no terceiro mês? No quinto?), o aborto se torna homicídio. Assim, a causa é transferida dos teólogos e dos sacerdotes aos médicos e aos biólogos. Digam-nos o dia, e eis que, naquele ponto, o ser humano é ser humano, e não o fazer nascer é matar uma pessoa humana.
Corpo e alma, o “composto humano”. Sabemos hoje que essa é uma má antropologia. Nós somos uma unidade incindível pensada por Deus, somos a sua imagem, ele não é feito de Deus e da sua divindade, como se fossem duas coisas distintas. A partir dessa má antropologia, derivou também uma má teologia. Nas mãos de quem Deus se põe para criar?
Vocês podem se perguntar por que estou falando dessas coisas precisamente agora. Eu não voltei mais à questão do aborto desde que escrevi no Senado, em 1976, o artigo 1º da Lei 194 sobre a “tutela social da maternidade e a interrupção voluntária da gravidez”, artigo que permaneceu incólume até agora, e, no dia 26 de maio de 1977, fiz um discurso para ilustrá-lo e defendê-lo.
Naquele discurso, que se intitulava “Idolatria e laicidade da lei”, eu disse que a relação entre a mãe e o bebê que ela trazia no ventre era tão inviolável e não coercível que, se Maria não dissesse sim, Jesus sequer nasceria.
Ninguém pode decidir pela mulher, nem comitês de ética, nem médicos, nem códigos penais, nem fórceps de Estado, como desejariam alguns projetos de lei sobre o aborto. O velho Código Rocco era impotente, não fazia nada além de abrir caminho aos abortos, desde que clandestinos, muitas vezes em lagos de sangue.
E é pelo fato de ninguém poder decidir pela mulher, nem mesmo por Maria, que nós recebemos a salvação, o Salvador. Portanto, é à mulher que Deus se confia. Mas eu não consigo imaginar que Deus, para vir ao mundo, teve que passar pelo crivo de assassinas em potencial. A ideia que Deus tem da mulher parece ser totalmente outra.
Certamente, Deus não podia pensar nas suas filhas como potenciais homicidas habituais ou por tendência. Pelo contrário, na consciência mais profunda da humanidade em que Deus habita como em um templo, a mulher é inextinguivelmente presente e vivida como arca de vida. No máximo, é o homem que está arquetipicamente associado à ideia de homicídio, é ele o sacrificador, desde os tempos de Caim. De fato, a ideologia do sacrifício sempre esteve associada ao homem. E assim as guerras, a razão de Estado e, infelizmente, também a ideia do sacerdócio.
Eu acho que essa impossibilidade de a Igreja Católica prosseguir no caminho da mulher sacerdote deriva também da instintiva repugnância a associar a mulher à ideia do sacerdote como ministro do sacrifício. Quando tivermos verdadeiramente abandonado a ideologia do sacrifício ainda tão presente na Igreja, na liturgia, no imaginário religioso e sacerdotal, então não haverá mais obstáculo ao sacerdócio das mulheres, ministras da vida, não só espiritual, mas também física.
Por isso, essa assimilação do aborto a um homicídio não só é contra a lógica aristotélica (porque identifica duas coisas diferentes), mas também é um pouco contro natura. Isso não significa de forma alguma tomar posição sobre o pecado do aborto, sobre todas as problemáticas ligadas à questão do aborto. Quando fizemos a lei, explicitamente não queríamos ir além do juízo que assumia o aborto como um desvalor, uma perda, uma dor pessoal e social que a sociedade deveria aliviar, não deixar viver na solidão, incluir em um tecido de solidariedade social, a tal ponto de também facilitar a vida nascitura, e isso precisamente com base em uma severa consciência da enfermidade, da insuficiência e da laicidade da lei.
Que a Igreja continue nas suas teologias, que ninguém lhe tire a liberdade das suas avaliações morais, das suas qualificações religiosas e espirituais sobre o aborto, dos seus ensinamentos de vida.
Se depois de tantos anos eu reabro com ela a questão do aborto, é porque me parece que ainda me resta um dever. De lhe pedir esta única coisa: que não use a mesma palavra para definir o morto e o não nascido, o não nascer e o morrer, uma promessa que não se realiza e uma vontade que lhe é ímpar.
Peço-lhe que não confunda na reflexão, na pregação, na polêmica “vida humana” e “pessoa humana”; a primeira, uma abstração, a segunda, o homem e a mulher amados por Deus; a primeira, investigável pela biologia, a segunda, um mistério do Ser, humano e divino, mistério que só tem um início, e nunca mais a sua conclusão, porque em Deus só existe o princípio, não existe o fim. Por isso, peço-lhe uma ascese da palavra. A Palavra nos salva, as palavras muitas vezes nos traem.
O aborto não é homicídio, a mulher não é a sua mandante, o médico não é o sicário; nisso até mesmo o nosso amadíssimo Papa Francisco, traído pela língua, não diz bem, e isso me dói.
Rogo à Igreja que não pense nas mulheres como potenciais assassinas habituais. Certamente, estamos todos em pecado, mas este não é o pecado delas: matar quem sequer nasceu.
Só quero dizer isso, e não justificar o aborto nem mesmo a nossa lei. Porque essa troca de palavras e de conceitos abre um problema muito grave entre ela e eles. Talvez seja bom que seja um homem que diga isso. Talvez precisamente os homens devam dizer isso, por serem filhos, irmãos, companheiros e esposos das mulheres. A Igreja coloca as mulheres sobre os altares; os homens as amam.
O Papa João XXIII dizia: estamos apenas na aurora. Nem sempre podemos forçar a aurora a nascer.
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Aborto: é preciso curar as palavras. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU