21 Janeiro 2021
No fim, venceu a grande palavra de ordem do “cuidado”, o cuidado da criação, o cuidado do próximo como irmão, que o Papa Francisco colocou no coração das suas duas encíclicas e do seu ministério, e que relançou no surgimento deste novo ano.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 19-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Agora que Trump se foi e Francisco ficou, pode-se avaliar a dimensão da presença simultânea desses dois grandes líderes no cenário mundial. Sob o véu de uma relação politicamente correta (nem tanto, porém, já que Bannon veio minar a Igreja até debaixo do trono de Pedro), tratou-se de um grande conflito entre um poder temporal e um poder espiritual, como nos bons tempos das Investiduras. A diferença em comparação com o período anterior é que um não era o chefe do Império, e o outro não tinha uma “Cristandade” da qual pretendesse ser o chefe.
Houve momentos e disputas em que o conflito se manifestou com uma potência particular. Um foi o conflito sobre o Oriente Médio e a Síria, que o papa defendeu com calor particular (desde o momento, em setembro de 2013, em que impediu a guerra à Síria com a força da grande vigília na Praça de São Pedro), e que Trump, por sua vez, queria assujeitar e ensanguentar até à ordem, como ele mesmo havia revelado em setembro passado, de matar Assad.
Outra contraposição frontal foi em torno do cuidado da Terra e do clima, quando Trump escolheu os negócios e o abuso de recursos, e retirou a assinatura dos acordos de Paris, e Francisco, com a Laudato si’, apelou a todos os habitantes do planeta para que se responsabilizassem pela Terra e não a permitissem ser depredada.
A outra representação epocal do contraste veio com a reação à pandemia, quando Trump assumiu a liderança dos negacionistas, causando 400.000 mortes só nos Estados Unidos, número igual ao de estadunidenses mortos na Segunda Guerra Mundial, enquanto o Papa Francisco assumiu sobre si toda a dor do mundo na solidão da Praça de São Pedro e legitimou até as restrições mais severas e as ordens das autoridades civis, obedecendo-as primeiro, e com ele toda a Igreja.
O conflito se manifestou ainda em torno da imigração, quando o Papa Francisco foi pregar até no muro que separa os Estados Unidos do Sul da América e do mundo, antes que Trump o erguesse até os céus.
Em todos esses fronts, as causas de Trump foram derrotadas. O martirizado Oriente Médio ainda está em busca de um autor, e agora o papa vai ao Iraque, até Nínive, a proverbial cidade que Deus salvou da destruição anunciada, para entregar ao mundo uma mensagem antiapocalíptica. Os Estados Unidos voltam a fazer parte do acordo sobre o clima. A construção do muro na fronteira com o México está bloqueada, começou a reunificação das famílias, foi prometida a integração dos imigrantes, foi abolida a proibição de entrada nos Estados Unidos dos países de maioria muçulmana.
Mas, sobretudo, venceu a grande palavra de ordem do “cuidado”, o cuidado da criação, o cuidado do próximo como irmão, que o Papa Francisco colocou no coração das suas duas encíclicas e do seu ministério, e que relançou no surgimento deste novo ano: “Tudo começa daqui, do fato de cuidar dos outros, do mundo, da criação. Além da vacina do corpo, é necessária a vacina para o coração: e essa vacina é a cura. Será um bom ano se cuidarmos dos outros...”.
E eis que, nos Estados Unidos, o país onde a saúde pública era hostilizada pelos ricos e descartava os pobres, 100 milhões de vacinas estão planejadas para os próximos 100 dias, o que significa que manter viva cada pessoa se torna uma prioridade da política; será necessária uma mobilização e um planejamento da produção iguais aos exigidos por uma guerra, tanto que se recorrerá à Defence Production Act, a lei aprovada para a guerra da Coreia; troca-se a guerra pelo tratamento.
E embora possam sobreviver as nefastas pulsões ao racismo, às discriminações e ao descarte, é claro que tanto negros quanto brancos serão vacinados, assim como porto-riquenhos, hispano-americanos, imigrantes, estrangeiros e cidadãos, sem distinção.
Seria tolice atribuir ao Papa Francisco todo o mérito de tudo isso e daquilo que de positivo está se assomando no mundo. Mas aqueles que, mesmo entre os católicos descontentes e ávidos por reformas, se depararam com Ernesto Galli della Loggia no julgamento sobre a irrelevância a que a Igreja teria chegado e sobre o desvio que seria representado pelo compromisso universalista do papa com o mundo, deveriam olhar para aquilo que está acontecendo, interrogar os sinais dos tempos e ver como precisamente essa palavra inerme que julga o mundo está vencendo o mundo.
Ou, melhor, precisamente aí está a verdadeira reforma da Igreja. E deveremos nos preparar para resistir; porque certamente a contrarreforma está à espreita, há quem não suporte a Igreja que anuncia o Evangelho e exorciza o apocalipse, a Igreja que recomeçou a partir de Bangui, odiada pelos senhores do centro do mundo.
O verdadeiro jogo para impedir que a Igreja caia na irrelevância será jogado nessa capacidade de resistência, na força desse “katékon” oposto aos doutores da lei que querem a sua restauração.
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Trump e Francisco, um grande conflito. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU