17 Junho 2017
O filme Ignacio de Loyola está livre “de alguns dos tópicos do cinema hagiográfico atual, que tende ao melífluo e ao recurso de introduzir o deus ex maquina ou a imagem translúcida de luzes e iridescentes aparições para evocar a presença do transcendente”, analisa o jornalista Pedro Miguel Lamet, jesuíta espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 16-06-2017. A tradução é do Cepat.
Eis a análise.
A meio caminho entre o medievo e o renascimento, a figura de Inácio de Loyola (Azpeitia, 1491 – Roma, 1556), o gentil-homem que, de cavaleiro a serviço do duque de Nájera chegou a se tornar o fundador da Companhia de Jesus, excede os limites do interesse exclusivamente religioso.
De Lenin aos atuais brokers, passando pelo semiólogo Roland Barthes, foi objeto de rigorosos estudos, interessados sobretudo em seu revolucionário método dos Exercícios Espirituais e seu sentido prático e psicológico de liderança.
No entanto, e apesar da primeira etapa de sua vida, a de “soldado desgarrado e vão”, como ele mesmo se autoqualificava, ter aspectos muito cinematográficos, só há na história do cinema um precedente do filme que hoje nos ocupa: El capitán Loyola, filme em preto e branco, de 1948, dirigido por José Díaz Morales, com roteiro de José María Pemán, Francisco Bonmatí de Codecido e Carlos M. de Heredia, que passou despercebido por nossas telas.
A biografia deste santo basco – que lutou em favor do rei de Castela –, líder da Contrarreforma, tem três etapas muito marcadas: sua infância e juventude em Loyola, Arévalo e Navarra, em busca da glória segundo o modelo ideal de cavaleiro andante da época; a conversão após a ferida de Pamplona, que o leva a sua vida de peregrino em busca da lucidez interior; e, em terceiro lugar, a de universitário em Paris, fundador dos jesuítas e seus carismáticos anos de governo e santa vida, em Roma.
O mais curioso no filme que nos ocupa é que se trata de um filme de produção, roteiro e direção filipinos, com pouco mais de um milhão de dólares de orçamento, atores espanhóis, e apenas 17 dias de filmagem em nosso país, nos lugares evocadores de sua época.
Para maior desafio, trata-se do primeiro longa-metragem do realizador filipino Paolo Dy, com a ajuda da escritora e atriz Cathy Azanza, que se atreveram na primeira etapa da vida de Inácio: sua infância, aventuras de cavaleiro orgulhoso e apaixonado, e os anos de sua conversão espiritual. Um salto cultural importante para uma equipe de produção oriental, ainda que tenha contado, desde então, com assessores jesuítas nos aspectos históricos e teológicos.
O relato inicia com o gentil-homem dado às armas, a vanglória e às mulheres, algumas delas prostitutas. Com saltos de volta à sua infância na casa nobre de Loyola e a relação com seu irmão, a história avança para a paixão pela infanta dona Catarina de Áustria, a “senhora de seus pensamentos” e a batalha contra os franceses em Pamplona, onde é ferido, não só em sua perna, mas sobretudo em sua vaidade de aguerrido e galante cavaleiro.
Após a leitura de obras espirituais, pela carência de livros de cavalarias, que lhe facilita sua cunhada Magdalena, sofre uma transformação espiritual e aprende a distinguir o diferente prazer que lhe deixam na alma os lances de cavaleiro e as ações dos santos, cujas vidas lhe impressionam em sua obrigatória prostração. Decide deixar tudo e peregrinar a Montserrat, onde deixa as armas diante do altar da Virgem, e despojado de suas ricas vestimentas, reconduz sua paixão à pobreza e penitência e empreende a meditação e luta interior até a “ilustração” (iluminação interior) que experimenta no Rio Cardoner, em Manresa. O filme reúne e engrandece o processo inquisitorial sobre sua vida e sua obra em Salamanca e termina com sua marcha a Paris para estudar na Sorbonne.
A originalidade do filme está em sua estética, a meio caminho entre um grande uso de efeitos, de crivo barroco, e uma linguagem atual, próxima em certos momentos ao filme de terror e, em outros, à ficção fantástica de um Senhor dos anéis. Sem dúvida, o jovem filipino Paolo Dy, em vez de realizar um filme pausado, linear, contemplativo ou místico – na escola de Dreyer, Bergman ou Rosellini -, quis sobretudo se dirigir a um espectador jovem, em um louvável esforço de acessar sua linguagem preferida.
Com isso, o filme se liberta, é certo, de alguns dos tópicos do cinema hagiográfico atual, que tende ao melífluo e ao recurso de introduzir o ‘deus ex maquina’ ou a imagem translúcida de luzes e iridescentes aparições para evocar a presença do transcendente.
Do ponto de vista histórico, opta, como não poderia ser menos em uma adaptação ao cinema, por uma interpretação livre dos fatos. Escamoteia a importante etapa da formação com o contador dos Reis Católicos, Juan Velázquez, em Arévalo, sintetizando-a em poucas alusões ao diálogo; traduz o amor platônico por dona Catarina, a filha cativa de Joana, a Louca, em uma inspirada dança (inventa-se uma amorosa carta da infanta animando-lhe em seu caminho, que o peregrino recebe em sua prisão, em Salamanca), e engrandece três elementos: as cenas de guerra e violência, o processo da Inquisição (intolerável por ser anti-histórico, a homenagem multitudinária do povo salmantino com velas acesas) e desenvolve de forma original e criativa sua luta e busca interior.
Também é aporte do roteiro filipino a corajosa cena da conversão da prostituta, ainda que, sim, responda a uma obsessão do santo, que posteriormente em Roma se ocupou especialmente destas mulheres “extraviadas”.
Esta tradução em imagens do espiritual é talvez o maior valor do filme. Ainda que a partir do barroquismo e o uso de efeitos que mencionamos, o filme Inácio de Loyola contribui para a configuração do transcendente com uma encenação não convencional. Encena a luta interior com um desdobramento do próprio Íñigo, onde o demônio é ele próprio, para visualizar a peleja entre os dois “eus”, como na meditação de seus Exercícios de “As duas bandeiras” e o “Rei temporal”, até alcançar sua sabedoria em sua contribuição mais original, o discernimento dos espíritos.
Excessiva, em linha com a morbidez de A Paixão de Cristo de Mel Gibson, a flagelação. Bem decorrido o momento da paz, alegria e iluminação, mediante sua imersão no rio e o encontro com o Deus da luz através de um menino real na margem. Nada de aparições de personagens do além, aos quais é tão dado o falso e decadente cinema piedoso.
Outra surpresa é a interpretação da equipe de atores espanhóis. Destaca Andreas Muñoz no papel de Íñigo. Este jovem madrileno, ator de cinema e televisão desde os 9 anos, em 2012, mudou-se para o Reino Unido, onde se consolidou como ator shakespeariano com a Royal Shakespeare Company e assim chamou a atenção do diretor filipino Paolo Dy, que consegue fazer com que Muñoz encarne com dignidade o jovem Inácio das duas etapas, de cavaleiro e convertido. Os demais lhe acompanham eficazmente, com uma qualidade: carecem por completo do sotaque tão frequente de nossos atores no cinema espanhol. Talvez porque o filme foi realizado em sua totalidade em língua inglesa.
Em resumo, trata-se do filme definitivo sobre Inácio de Loyola? De modo algum. Ainda que louvável em seu esforço de renovar a linguagem de tais tipos de filmes para torná-lo mais acessível à sensibilidade juvenil, o filme é excessivamente dado ao uso de efeitos, tanto em seus impactos visuais como sonoros, o que contrasta por outra parte com sequências desnecessariamente alongadas e tediosas, que rompem o ritmo do filme, e uma simplificação adjunta no planejamento da sequência, quando não, na estética excessiva do vigente cinema fantástico e de terror.
Pode-se dizer que filmes como A Missão e O Silêncio, de Joffre e Scorsese, respectivamente, incidem com maior profundidade no espírito inaciano, ainda que não falem sobre a pessoa de Inácio, por sua condição. Embora, é claro, nenhum deles pode ser comparável a uma obra-prima filmada com mais ilusão do que recursos e um notável crivo internacional.
De fundo, muito boa vontade e acertos parciais naquilo que significa empreender o desafio de biografar esta figura histórica do século XVI espanhol, a partir da distante Filipinas, com certo rigor histórico, esforço criativo e indubitável respeito ao personagem na primeira e decisiva etapa de sua vida.
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A originalidade do filme ‘Ignacio de Loyola’ está em sua estética. Análise de Pedro Miguel Lamet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU