16 Fevereiro 2017
A obra-prima do diretor Martin Scorsese também questiona as realidades que costumam manifestar de forma mais direta a vocação missionária da Igreja, porque permite vislumbrar a fonte viva e surpreendente da qual pode brotar em qualquer época a missão que Cristo confiou aos seus no Evangelho. Sugere que cada investida missionária não deve gerar fruto por sua própria força, mas precisa confiar a cada instante nos sinais da graça de Cristo.
A reportagem é de Gianni Valente, redator da Agência Fides, publicada por Omnis Terra, 14-02-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Silence não é “apenas” uma obra-prima destinada a deixar sua marca no cinema dos últimos anos. O filme do diretor estadunidense Martin Scorsese, baseado no romance - publicado em 1966 - pelo escritor japonês Shusaku Endo, representa um presente inesperado que deveria ser agradecido por todos aqueles que, de diferentes maneiras, estão envolvidos na missão apostólica da Igreja. Porque seguindo o próprio gênio artístico, tanto Scorsese como Shusaku intuem e contam até nos detalhes mais íntimos e arrebatadores o dinamismo incomparável e único do empreendimento missionário que adentra o mundo com a promessa do Evangelho. E apresentam sua proposta para a sensibilidade do nosso tempo com uma eficácia e uma força expressiva que não são facilmente encontradas nas reflexões missiológicas que costumam circular entre os “encarregados aos trabalhos”.
O filme e o livro, que ganha o título a partir do "silêncio" de Deus, acompanham um evento de quase quatro séculos atrás, ambientado no Japão na época da violenta perseguição contra os cristãos começada em 1587 com o shogun (general) Hideyoshi e depois continuada pelo shogun Tokugawa, a partir de 1614. O cineasta nova-iorquino de origem siciliana, durante a realização do filme, também se valeu da consultoria histórica dos padres jesuítas David Collins, historiador da Universidade de Georgetown, e Shinzo Kawamura, da Sophia University. Nas perseguições do século XVII, um grande número de fiéis e muitos missionários e sacerdotes locais morreram como mártires, muitas vezes em decorrência de graves torturas.
O filme gira em torno da figura do jesuíta português Cristóvão Ferreira, “líder” das missões católicas no Japão, que enviava cartas inflamadas para a Europa sobre a celebração dos mártires, narrando indescritíveis torturas capazes de “apavorar até o mais forte de homens, se não fosse pela graça de Deus”. Até que se espalha a notícia de que justamente ele, submetido à tortura, teria renegando a fé cristã tornando-se um apóstata. Dois de seus jovens alunos jesuítas, o português Sebastião Rodrigues e espanhol Francisco Garupe, tendo como guia a controversa figura de Kichijiro - um japonês convertido, que foge para Macau depois de ter também apostatado - vão para o Japão com a missão de verificar se as notícias inquietantes sobre o seu ex-mestre são verdadeiras, ou se apenas se trata de rumores postos propositadamente em circulação pelos japoneses ou pelos holandeses para minar o espírito dos missionários católicos e de seus fiéis. Ao chegar, os dois jesuítas europeus são literalmente sugados pelas conturbadas vicissitudes da comunidade cristã japonesa assolada pela fase sangrenta da perseguição. Garupe irá morrer como um mártir, enquanto o protagonista do romance e do filme, Sebastião Rodrigues, acabará tornando-se também um apóstata, e irá viver por décadas em uma espécie de prisão domiciliar até sua morte.
Os ritmos às vezes alucinantes e o sombrio frenesi que dominam grande parte do filme - com passagens de tirar o fôlego, como todas aquelas que detalham às muitas formas de tortura que padecem os pobres cristãos japoneses – não deixam espaço a sublimações hagiográficas para a angústia do sofrimento infligido e suportado sem motivo algum, onde o terrível momento da dor é vivenciado por mártires mostrados como perdedores, vítimas de um sacrifício aceito pelo aparente silêncio de Deus.
Precisamente na desenfreada sequência de eventos e cenários onde tudo parece estar desmoronando, Scorsese, seguindo fielmente e com originalidade Shusaku, dissemina no filme detalhes e pequenas pistas que podem questionar até mesmo hoje as realidades que costumam manifestar mais explicitamente a vocação missionária da Igreja. Porque essas permitem que se perceba sine glossa a fonte viva e surpreendente de onde pode florescer a missão que Cristo confia aos seus no Evangelho, e também o traço genético que desde sempre e para sempre, diferencia a missão confiada à Igreja de todas as formas de propaganda ideológica, religiosa ou cultural.
Vale a pena uma análise mais aprofundada sobre algumas dessas passagens e pontos-chave da narrativa.
Quando os dois jesuítas em busca de seu mestre-apóstata chegam ao Japão, Scorsese descreve com detalhes comoventes a alegria dos cristãos “escondido”, felizes por ter novamente entre eles sacerdotes que podem celebrar a Eucaristia e absolvê-los dos pecados. Sua “fome” por sacramentos, e até mesmo por imagens e objetos sagrados, expressa a concretude de uma fé percebida como uma promessa e experiência inicial de salvação, encontrada em meio a uma condição humana atroz, de miséria e de padecimento. Quando um jovem casal faz o batismo de seu bebê, perguntam cheios de alegria para os dois missionários se dessa forma o seu filho está entrando no Paraíso: eles são imediatamente "corrigidos" pelos dois jesuítas, pois justamente a condição terrena, marcada pelo sofrimento e pela maldade dos homens, não é o Paraíso.
No entanto, com a sua pergunta singela e pulsante de alegre esperança, os dois pais cristãos - pobres analfabetos desavisados dos tratados de escatologia - manifestam e confessam estar caminhando na mesma fé dos apóstolos, que reconhece no batismo o princípio da felicidade eterna prometida por Cristo.
Em cenas que descrevem seu ministério sacramental, ofertado à noite e na clandestinidade aos "cristãos escondidos", os dois jovens jesuítas saboreiam a grandeza da missão para a qual foram chamados. Acreditam que podem ser os únicos a preservar e alimentar a semente lançada por outros.
No seu livro, Shusaku Endo descreve com breves e eficientes acenos que um fator que contribuiu para atrair à nova fé os pobres agricultores e pescadores das ilhas japonesas foi certamente a doce caridade dos missionários que os batizaram, os primeiros a tratar os neófitos com dignidade de homens e mulheres. Mônica, uma das muitas mártires da narrativa, descrita no romance como uma mulher pobre com um cheiro repugnante, “falava o seu nome de batismo, como se fosse o único ornamento que possuísse no mundo”.
Todo o filme, e o livro, vibram com a desorientação causada pela perseguição que irrompe precisamente contra aqueles que de acordo com a promessa do Evangelho são os abençoados e os favoritos. Rodrigues não se conforma em ver que tanto sofrimento atinge apenas as pessoas mais vulneráveis, só porque acreditaram nas promessas de Cristo. A essas vidas miseráveis e oprimidas, o encontro com Cristo parece acrescentar apenas mais dor e medo. Como o Senhor pode permitir isso? Como podem ser impostos fardos tão pesados em ombros tão frágeis? Às perguntas que o missionário lhe endereça, Deus não parece responder, “impenetrável como o mar”. Nos sofisticados métodos de suplício, todos pensados para prolongar ao máximo a agonia dos mártires, até mesmo a crueldade dos carrascos assume traços que ultrapassam o humano. E para conduzir a tortura está - como relatado na novela Shusaku Endo, e igualmente aconteceu e acontece ao longo da história da Igreja - um batizado, o sofisticado e perverso "inquisidor" Inoue, que, na época em que a missão católica florescia com toda a exuberância havia se tornado um cristão “para melhorar a sua posição”.
A estratégia persecutória de Inoue visa transformar em apóstatas os padres aprisionados. Ele assim acredita “cortar as raízes” da árvore do cristianismo que criou raízes em terras japonesas, para impelir as massas de agricultores e pescadores ignorantes a renunciar a sua fé. Mas essa estratégia tem seu fundamento em um teorema: a fé cristã não pode encontrar o Japão. É destinada desde o início a não dar frutos, para continuar a ser um corpo estranho nas ilhas do Sol Nascente. Desta forma, a história narrada por Shusaku Endo e agora por Scorsese também chega a um acordo com a sombra desconsiderada de tantas doutrinas e reflexões missiológicas: a suspeita atemorizante de que existem terras, contextos e pessoas onde a semente da anunciação do Evangelho, por sua própria natureza, não pode e nunca poderá criar raízes. Âmbitos excluídos a priori da possibilidade de conhecer a verdade cristã. Essa suspeita pode corroer por dentro cada abordagem confiante nas possibilidades que se abrem para o testemunho evangélico, quando essa se baseia apenas e somente nos processos, apesar de tudo necessários, de inculturação. Mas também alimenta em sua raiz fantasias de oposto teor, ou seja, que a “expansão” do cristianismo só pode acontecer através da assimilação/ colonização de caráter cultural. Ferreira, que antes de apostatar havia desempenhado um grande trabalho apostólico nas ilhas durante vinte anos, mesmo quando tem que empurrar seu coirmão Rodrigues à apostasia, insiste na proposição de que no Japão “nossa religião não cria raízes”, e que, mesmo quando a obra apostólica prosperava e os senhores feudais locais competiam para construir igrejas e abrir as portas para os missionários, na verdade, os japoneses “não oravam ao Deus cristão”, porque “distorceram Deus para adequá-lo ao seu próprio conceito de Deus”. Aliás - acrescenta peremptoriamente Ferreira no romance de Shusaku Endo – “os japoneses, até hoje, nunca tiveram o conceito de Deus e jamais o terão”, pois “eles são incapazes de pensar em um conceito de Deus separado do homem. Eles não podem conceber uma existência que transcende a do ser humano”.
Além da teorizada "incapacidade genética" de realidades humanas individuais ou coletivas para encontrar o Evangelho, a história que tem fascinado Scorsese aborda - adentrando os recessos mais íntimos do coração do protagonista Rodrigues - também as muitas possibilidades de fracasso da missão, a dissipação que parece jogar no esquecimento até mesmo os testemunhos mais valiosos e comoventes da dedicação incondicional e desmedida ao anúncio do Evangelho. Os dons da graça dos sacramentos, concedidas pelo padre Fernandes e seu coirmão Garupe recaem sobre uma humanidade que permanece frágil, continua a cair e trair, especialmente representada por Kichijiro, personagem fundamental do romance e de sua adaptação para o cinema: um bêbado preguiçoso e servil que entra na história já como apóstata, e durante o desenrolar da narrativa vai repetir atos escandalosos de traição e apostasia, até se tornar cúmplice por covardia pela captura do próprio padre Rodrigues. No entanto, durante o tempo todo, o jesuíta protagonista continua a atender suas solicitações para confessar e receber o perdão depois de cada traição.
Kichijiro será o único a pedir e receber de Rodrigues a absolvição dos pecados em confissão, mesmo quando esse já está em sua condição final de apóstata e prisioneiro.
Dessa forma, Rodrigues atesta a abundância inesgotável e a fonte misteriosa do perdão de Cristo, que ele próprio vai experimentar até o fim.
Olhando para as repetidas quedas e traições do fraco Kichijiro, torna-se fácil lembrar e reconhecer que Jesus confiou sua promessa nas mãos e nos corações de homens frágeis e capazes de renegá-lo, como aconteceu com o apóstolo Pedro. Partido com a ousadia de um missionário chamado para proteger e defender a planta frágil do cristianismo em terras japonesas, o mesmo padre Rodrigues, quando acaba paralisado diante de seus pobres amigos condenados à morte, é posto diante de sua impotência, de sua limitação, de suas traições. Até a da apostasia. A mais escandalosa.
No entanto, justamente quando afunda no abismo de apostasia, Rodrigues encontra para sempre o rosto e o abraço de Cristo. Os perseguidores querem forçá-lo a apostatar com a chantagem: eles repetem que se cumprir o “gesto formal” de pisar o fumie, a tabuleta sagrada com a imagem de Cristo, poderá salvar seus amigos do suplício da morte no poço (onde os condenados eram enfiados de cabeça para baixo, enquanto por pequenas feridas abertas atrás das orelhas gotículas de sangue escorriam lentamente, numa longa e terrível agonia). Até mesmo Ferreira, para incentivar seu jovem ex-aluno a realizar o ato sacrílego, alterna palavras duras e expressões convincentes ( "Se você apostatar, aqueles pobrezinhos serão removidos do poço. Será poupado seu sofrimento. Mas você se recusa a fazê-lo porque lhe aterroriza trair a Igreja. Você tem pavor de se tornar um daqueles que são considerados a escória da Igreja, como eu. Você se considera mais importante que eles. Importa-se apenas com a “sua” salvação .... (...)”. Mas a convencer Rodrigues a executar o ato sacrílego não serão nem Ferreira, nem a piedade para os supliciados e nem os carrascos às ordens de Inoue: é o próprio Jesus, que da tabuinha preparada para ser pisoteada pelos pés de Rodrigues fala, convida-o a confiar nele e colocar o pé no rosto de seu Redentor, com palavras que tocam de forma palpitante o dinamismo misterioso e incomparável da salvação operada pelo Filho de Deus: “Pisa! Pisa! Mais do que ninguém eu sei como está cheio de dor o teu pé. Pisa! Para ser pisado pelos homens, eu vim a esse mundo. Para compartilhar a dor dos homens, eu carreguei a cruz”.
No exato momento em que ele o renega, Rodrigues coloca-se totalmente nas mãos do próprio Cristo, impossibilitado agora de reivindicar qualquer crédito para si mesmo. Com essa visão poderosa e arrebatadora, os dois artistas modernos, Shusaku e Scorsese, têm a intuição e sugerem também que cada investida missionária da Igreja que tenha a pretensão de se realizar em regime de auto-suficiência, sem depender a todo momento dos atos de graça de Cristo, destina-se a longo prazo a se transformar em miragem de poder e de auto-ocupação para os aparatos clericais. Pois nenhuma "animação missionária" pode pretender trazer frutos duradouros de salvação por força própria.
Rodrigues, transformado em Apóstata - como zombam até mesmo as crianças de Nagasaki - termina a sua vida de derrotado em uma gaiola dourada, a “residência dos cristãos”, com um nome e uma esposa japoneses impostos por seus perseguidores. Mas durante as longas décadas de vida como recluso, pontuadas por verificações periódicas feitas por seus carcereiros para verificar se ele e as pessoas que lhe são próximas perseveram na negação da fé cristã, ele vive no íntimo de seu coração a sua vitória secreta: nunca mais irá celebrar uma missa, ler o Evangelho, orar em voz alta. Mas vários detalhes (que aqui não serão revelados, para não “estragar” a surpresa de quem eventualmente for assistir a essa obra-prima) sugerem que o próprio Cristo continua até o fim a consolar e confortar o coração do padre apóstata, cristão “escondido”. O amor perseverante de Cristo também preservou a tocante perseverança final, dissimulada, mas real, do jesuíta Rodrigues, "Sacerdos in aeternum".
Mesmo fora dos eventos acompanhados pela arte de Scorsese, a marca historicamente visível daquela "vitória" que permaneceu escondida no coração de Rodrigues e dos muitos japoneses batizados irá se manifestar nas comunidades de “cristãos escondidos” que os missionários europeus encontraram nas ilhas do Japão, quando puderam retornar para lá um século mais tarde. Aqueles mesmos de quem o Papa Francisco tantas vezes falou, dedicando-lhes inclusive uma carta, em março de 2015, para mostrar que as "raízes" da Igreja não podem ser cortadas quando são nutridas pela fonte viva da graça de Cristo:
“Sobreviveram com a graça de seu Batismo! Isto é grande: o Povo de Deus transmite a fé, batiza os seus filhos e segue adiante. E mantiveram, em segredo, um forte espírito comunitário, porque o Batismo lhes tinha feito converter-se em um só corpo em Cristo: estavam isolados e ocultos, mas sempre foram membros do Povo de Deus, membros da Igreja”.
(Papa Francesco, Carta ao enviado especial para a celebração do 150º aniversário da descoberta dos "cristãos escondidos do Japão" (Nagasaki, 14-17 de março de 2015)
Veja a entrevista de Adolf Nicolás sobre o filme:
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Silence, Scorsese e a missão na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU