24 Dezembro 2018
“Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,7)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho da Festa do Natal do Senhor - Ciclo C (/12/2018) que corresponde ao texto bíblico de Lucas 2,1-14.
No Natal celebramos esta realidade: Deus “se fez diferente” e é na “diferença” que Ele vem ao encontro do ser humano como chance de enriquecimento vital e de intercâmbio criativo. Deixemo-nos surpreender pelo Deus da vida que rompe esquemas, crenças, legalismos, bolhas...; ou nossa vivência de fé se reduzirá a um ritualismo fechado, impedindo sair de nós mesmos.
Se Deus correu o risco de encarnar-se, de nascer pobremente e crescer como salvação a partir da exclusão deste mundo, já não há excluídos para Ele, ninguém fica fora d’Ele. E o lugar principal para a festa é ali onde Ele aparece: nos “aforas”, onde não há lugar, onde tudo parece esgotar-se e é condenado a crescer em meio às ameaças e às intempéries das situações humanas.
Jesus, em Belém, encontrou o seu lugar: nas periferias. A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
Jesus se fez presente no lugar onde se encontravam aqueles que não tinham “lugar”, os “deslocados”, os socialmente rejeitados e que foram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com os “sem lugares” e os convidou a caminhar para um novo lugar. Na Gruta, Jesus teve sua preferência e escolheu o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares.
Um “lugar” é sempre mais do que um simples lugar. A geografia de cada “lugar” revela lembranças, referências, ansiedades, medos, saudades...; cada “lugar” guarda histórias, presenças e tem força de memória. Há vidas, pessoas, caminhos, acontecimentos, experiências... Na verdade, o “lugar geográfico” se confunde com o “lugar interior”. É no lugar geográfico que o lugar do coração encontra seu suporte e seu repouso. Quando dizemos: “não tenho lugar”, “estou sem lugar”, “tenho medo deste lugar”... queremos significar que o coração não encontrou no lugar geográfico o seu lugar próprio.
O Natal nos convida a imaginar lugares em movimento, lugares de encontro, de desafio, lugares provocativos e criativos..., enfim, lugares carregados de presença.
Celebrar o Natal implica um contínuo êxodo do “lugar estreito e dispersivo” ao “lugar expansivo e unificador”; ali vivemos uma permanente travessia dos “nossos lugares rotineiros e auto-referenciais” para os “amplos lugares cristificados”.
A travessia para a Gruta é um risco, é um salto para um outro “lugar”, é deixar-se afetar por este “outro lugar”: lugar iluminado por uma Presença despojada de poder, de riqueza, de prestígio...
O mistério do Nascimento é profundamente “espacial”: um lugar vital, dramático, que questiona, ilumina, vitaliza e carrega de sentido os lugares cotidianos. Ele nos ajuda a ter acesso a um “lugar inspira-dor”, um polo de referência e de atração, onde nos sentimos acolhidos, integrados e pacificados na “pre-sença” d’Aquele que, na Gruta, assume e ilumina todos os lugares, sobretudo dos mais excluídos.
A Gruta de Belém é o espelho dessa experiência originária que transforma o “caos” cotidiano em “cosmos” e que, somando-se a outras experiências semelhantes, ativa o modo original de ser e de estar no mundo. Entrar no espaço do Nascimento de Jesus configura e ordena, de modo novo e diferente, os lugares por onde transitamos.
Sabemos que o espaço faz parte do ar que respiramos em nível fisiológico e biológico, como faz parte das nossas experiências interiores. No entanto, vivemos um tempo de confusão de “lugares”, consequência de uma confusão interior. Nossa sociedade parece estar indo à deriva porque não sabe mais reconhecer “espaços diferentes e vitais”, porque tudo se torna igual e os lugares não falam mais, pois carecem de sentido e se revelam como lugares vazios. Os espaços são violados, os “lugares sagrados” são profanados, os “ambientes” carregados de sentido e de história já não revelam mais nada...
Esse é o primeiro sintoma de uma visão humana desastrosa e desastrada. Na insignificância e no achatamento dos espaços está o primeiro e mais grave esmagamento do pensamento e da consciência, a ruptura das relações sociais, a indiferença para com o lugar do outro que é diferente, frieza ecológica e o definhamento das experiências religiosas.
Descer ao lugar da Gruta para encontrar uma Criança desperta em nós um novo “olhar” para perceber, com mais nitidez e intensidade, os lugares por onde transitamos, uma nova disposição para dar sentido e valor aos lugares cotidianos, um olhar solidário para perceber o lugar do outro, uma nova sensibilidade para “ver” a Presença d’Aquele que ocupa todos os lugares.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
O profeta Isaías nos recomenda ampliar o “lugar interior”: “Alarga o espaço de tua tenda, estende sem medo tuas lonas, alonga tuas cordas, finca bem tuas estacas” (Is. 54,2). Um “lugar sagrado” que nasce do coração, carregado de afeto, de inspiração, de vitalidade...
Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Algumas fortalezas e seguranças pessoais caem quando os “espaços interiores”, abrasados e iluminados pelo Nascimento de Jesus, começam a romper as paredes e se encarnam em “lugares exteriores”, marcados pela beleza e encantamento: lugar familiar, lugar celebrativo, lugar social, lugar de convivência, lugar de trabalho... um lugar nobre que só tem sentido quando carregado de presenças.
Só quem transita com liberdade pelos “lugares interiores” será capaz de ir ao encontro dos outros e entrar em sintonia com eles. O “lugar externo” é o prolongamento do lugar percorrido e saboreado internamente.
Não tem sentido ampliar os lugares externos se nossa mente permanece estreita, se nosso coração continua insensível, se nossas mãos estão atrofiadas, se nossa criatividade se sente bloqueada...
Lugar amplo é convite a sonhar alto, a pensar grande, a aventurar-se, ousar ir além, lançar por terra nosso modo arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos para ir ao encontro dos “novos lugares” dos excluídos e marginalizados.
Precisamos levantar-nos cotidianamente de nossos “lugares”: há sempre um “lugar ferido” que nos espera, um “ambiente atrofiado” a ser curado, um “espaço” excluído a ser visitado...
É o ser humano mesmo o verdadeiro lugar a partir do qual Deus se encontra e se dá a conhecer; cada pessoa é o autêntico lugar da eterna presença de Deus.
O melhor presente: uma “uma cesta natalina” repleta de sensibilidade, tolerância, compreensão, alegria, acolhida, proximidade, generosidade, solidariedade...
Este é o verdadeiro Natal: que, em Jesus, nossos espaços cotidianos sejam incubadores de encontros humaniza-dores, foco de reconhecimento da dignidade de todas as pessoas.
Um Santo Natal a todos.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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Nascimento de Jesus: Deus se deixa encontrar nas periferias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU