05 Outubro 2017
O filósofo Rocco Buttiglione responde e desmonta uma a uma as sete acusações de heresia que foram dirigidas a Francisco: "Quando se tira as consequências lógicas que derivam de suas declarações, mesmo os críticos admitem que em alguns casos os divorciadas podem estar isentos de culpa grave e, portanto, receber a comunhão".
"Eles julgam e condenam". E, acima de tudo, eles usam um "método incorreto". O filósofo Rocco Buttiglione, um profundo conhecedor do pensamento de João Paulo II, nesta longa entrevista concedida ao Vatican Insider, esmiúça (discutindo-as) todas as acusações de heresia que os signatários da "correctio filialis" dirigiram ao atual Pontífice.
A entrevista é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 03-10-2017. A tradução é de André Langer.
O que o senhor pensa da "correctio filialis" enviada ao Papa e sobre o grupo de estudiosos que faz declarações tão duras sobre o sucessor de Pedro?
Jesus não escreveu um manual de metafísica, muito menos de teologia. Encomendou-se a um grupo de homens e depois a um, Pedro. Ele prometeu-lhes a assistência do Espírito Santo. Aqui, um grupo de homens se erige em juízes acima do Papa. Eles não expõem objeções, eles não discutem. Eles julgam e condenam. Quem lhes deu autorização para se constituírem em juízes acima do Papa?
Após a sua publicação, alguns dos que assinaram o documento declararam que nunca disseram que o Papa era um herege. Pode-se deduzir isso ao ler o texto?
Leiamos o texto: "nós somos obrigados a dirigir uma correção à Sua Santidade, por causa da propagação de heresias provocadas pela Exortação Apostólica Amoris Laetitia e, por outras palavras, atos e omissões de Sua Santidade". Se essa não é uma acusação de heresia, não sei o que é. Aqueles que assinaram o documento e dizem que nunca afirmaram que o Papa era um herege não leram o texto que assinaram.
Antes de entrar detalhadamente nas 7 "heresias", gostaria de me deter na linguagem utilizada: eles fazem afirmações (“propositiones”) dando a entender que o Papa as escreveu, disse ou defendeu: de fato, nenhuma delas foi afirmada por Francisco. O método está correto?
Não, não é um método correto. As proposições não resumem corretamente o pensamento do Papa. Tomemos um exemplo: na segunda proposição, eles atribuem ao Papa a afirmação de que os divorciados que contraíram uma nova relação e que permanecem nesse estado "com pleno conhecimento da natureza de seu ato e com pleno consentimento da vontade do ato" estão na graça de Deus. O Papa diz outra coisa: em alguns casos, um divorciado que se casou novamente e permanece em tal estado sem pleno conhecimento e o deliberado consentimento pode estar na graça de Deus.
Por que este exemplo é tão significativo?
Os críticos começam sustentando que em nenhum caso um divorciado que se casou novamente pode estar na graça de Deus. E, em seguida, alguns (eu, por exemplo) lembraram-lhes que para ter um pecado mortal é necessário não apenas uma matéria grave (e o adultério é certamente matéria grave de pecado), mas também pleno conhecimento e consentimento deliberado. Agora parece que eles estão recuando: inclusive eles entenderam que em alguns casos o divorciado que se casou novamente pode estar isento de culpa devido a atenuantes subjetivos (falta de pleno conhecimento e deliberado consentimento).
O que eles fazem para encobrir o recuo? Atribuem ao Papa a afirmação de que o divorciado que contraiu uma segunda união que permanece em sua situação com pleno conhecimento e deliberado consentimento segue estando em estado de graça. Esta falsificação da posição do Papa, a que eles se veem forçados, indica quão desesperada é a sua situação do ponto de vista lógico. Eles implicitamente admitem que há algumas situações em que o divorciado que contraiu uma segunda união civil pode receber a comunhão, mas toda a revolta contra a Amoris Laetitia nasceu de uma rejeição visceral dessa possibilidade.
A Igreja, quando condenava proposições julgadas heréticas, sempre foi muito precisa ao estabelecer o que tinha dito e as intenções daquele que o disse. Nesse caso, não foi assim...
Os corretores gostam de se tornar um Novo Santo Ofício, mas, obviamente, eles não conhecem os procedimentos...
Falando sobre as 7 “heresias” atribuídas ao Pontífice, vê-se que giram em torno do ponto da comunhão aos divorciados que contraíram uma segunda união. Na sua opinião, elas estão fundamentadas?
A primeira correção atribui ao Papa a afirmação de que a graça não é suficiente para permitir que o homem evite todos os pecados. O Papa diz, com toda clareza, uma coisa bem diferente: a cooperação do homem com a graça é, muitas vezes, insuficiente e parcial. Por isso, não consegue evitar todos os pecados. A cooperação com a graça, além disso, desenvolve-se ao longo do tempo. Quando o homem começa a ir ao encontro da salvação, leva consigo uma carga de pecados dos quais se libertará pouco a pouco. É por isso que uma pessoa que não realizar completamente as obras da lei pode estar na graça de Deus. É a noção do pecado venial.
Da segunda heresia já falamos. Vamos à terceira...
A terceira correção atribui ao Papa a afirmação de que se pode conhecer o mandamento de Deus e violá-lo e, apesar disso, permanecer na graça de Deus. Também neste ponto o Papa diz, com toda clareza, outra coisa: é possível conhecer as palavras do mandamento e não compreendê-las ou reconhecê-las em seu verdadeiro significado. O cardeal Newman fazia uma distinção entre compreender a noção (compreendi o sentido verbal de uma proposição) e a compreensão real (compreendi o que significa para a minha vida). Algo parecido disse também Santo Tomás, quando fala do erro de boa fé.
A quarta censura atribui ao Papa a afirmação de que se pode cometer um pecado obedecendo à vontade de Deus.
Provavelmente, a pessoa que redigiu a censura tinha em mente uma passagem da Amoris Laetitia em que o Papa diz que quando um casal divorciado e que contraiu uma segunda união decide viver junto como irmão e irmã (ou seja, agindo de acordo com a lei do Senhor) pode acontecer que acabem tendo relações sexuais com terceiras pessoas e destruindo o ninho que eles criaram e em que seus filhos encontravam o ambiente adequado para o seu crescimento e a maturidade humana. O Papa não tira conclusões desta afirmação empírica. Mas se você quiser tirar conclusões, deve ter muita malícia para chegar à conclusão proposta pelos censores. A conclusão mais óbvia é que o confessor recomende que o casal interrompa as relações sexuais e leve seriamente em consideração seu medo de não poder fazê-lo e passar de um pecado (adultério) a um pecado maior (adultério mais traição da segunda relação). O confessor deve acompanhar o casal até que seu amadurecimento interno lhes permita dar o passo exigido pela lei moral.
A quinta proposição atribui ao Papa a afirmação de que os atos sexuais dos divorciados recasados entre eles podem ser bons e não desagradáveis aos olhos de Deus.
Aqui, provavelmente, o autor tinha em mente uma passagem da Amoris Laetitia em que o Papa diz que “essa consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestamente, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus reivindica em meio à complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente ideal o objetivo. Em todo o caso, lembremo-nos de que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa”.
O Papa não diz que Deus está feliz porque os divorciados recasados continuam a ter relações sexuais entre si. A consciência reconhece que não está alinhada com a lei. Mas a consciência também sabe que começou um caminho de conversão. Um homem vai para a cama com uma mulher que não é sua esposa, mas deixou de se drogar e de ir com prostitutas, encontrou um emprego e cuida dos seus filhos. Ele tem o direito de pensar que Deus está contente com ele, pelo menos em parte (Santo Tomás diria: "secundum quid"). Deus não está feliz pelos pecados que ele continua a cometer. Ele está feliz pelas virtudes que começa a praticar e, naturalmente, espera que, no futuro, ele dê novos passos para frente.
O senhor pode dar outro exemplo dessa situação?
Imaginemos um pai que tem um filho doente e a criança melhora. Ela ainda tem febre, mas parou de vomitar, consegue manter no estômago o que come, começou um tratamento que parece funcionar. O pai está feliz porque o seu filho está doente? Não, ele está feliz porque o seu filho apresenta sintomas de melhora e cura. Pensemos por um momento na viúva do Evangelho que oferece ao tesouro do Templo duas pequenas moedas de cobre. Jesus comenta: esta mulher deu muito mais do que os ricos e poderosos, mesmo que tenham derramado toneladas de moedas de ouro e prata. Esses deram o supérfluo, ela deu tudo o que tinha.
Do mesmo modo, Deus, talvez, pode estar mais contente com um passo incerto para o bem de uma pessoa que nasceu em uma família dividida, que foi batizada, mas nunca verdadeiramente evangelizada, que nunca teve diante de seus olhos um exemplo de amor entre um homem e uma mulher, que cresceu dentro da ideologia dominante segundo a qual o sexo é real e o amor não existe, do que com o passo de uma pessoa que observa plenamente a lei, mas teve bons pais, bons exemplos, bons professores, bom pároco e (talvez o mais importante de tudo) uma boa esposa.
Vamos para a sexta censura, que afirma que o Papa disse que não existem atos intrinsecamente maus, mas que, dependendo das circunstâncias, todo ato humano pode ser bom ou mau.
Aqui se quer aplainar o pensamento do Papa sobre a chamada "ética da situação". Mais uma vez, a Amoris Laetitia diz outras coisas, absolutamente tradicionais, que estudamos desde a infância no catecismo da Igreja católica, não só no novo catecismo de São João Paulo II, mas também no antigo de São Pio X. Para haver pecado mortal são necessárias três condições: a matéria grave (o adultério sempre é, e sem exceções, matéria grave de pecado), o conhecimento completo (devo saber que o que estou fazendo está errado) e o consentimento deliberado (devo escolher livremente fazer o que estou fazendo). Se falta o pleno conhecimento e um consentimento deliberado, um pecado mortal pode passar de mortal a venial.
A ação sempre é errada, mas o sujeito que a realiza nem sempre tem toda a responsabilidade. É como no direito penal: o homicídio é um crime grave. Mas a pena pode ser muito diferente: você dirige respeitando todas as regras e um bêbado se joga enquanto você passa. Talvez você seja absolvido ou você receberá uma pequena sentença. Você não respeita as regras do código, dirige bêbado e mata um pobre homem que estava passando. Você terá uma sentença severa. Você usa o carro como uma arma para matar uma pessoa que você odeia. Você merece prisão perpétua.
A sétima e última "correção filial" no documento diz que o Papa é um herege porque é acusado de querer dar a comunhão aos divorciados que "não expressam nenhuma contrição firme, nem a firme decisão de se emendar de seu atual estado de vida".
O Papa quer acompanhar os divorciados que têm a contrição por seu estado de vida e o firme propósito de se emendar. Ele não diz que sempre se deve dar a comunhão a eles, mas que é preciso acompanhá-los na situação concreta em que se encontram e também avaliar seu nível de responsabilidade subjetiva. O ponto de chegada do caminho é (quando a reconciliação com o verdadeiro cônjuge não é possível) a renúncia às relações sexuais. Mas, ao longo do caminho, existem muitas etapas.
Pode haver casos em que uma pessoa pode estar na graça de Deus por causa de atenuantes subjetivos (falta de pleno conhecimento e consentimento deliberado), mesmo quando continua a ter relações sexuais com seu próprio parceiro(a). Pensemos em uma mulher que gostaria de tomar essa decisão de castidade, mas o homem não quer isso, e se ela a impusesse (a castidade), ele se sentiria traído e poderia deixá-la, destruindo o vínculo de amor em que os filhos crescem. Quem negaria os atenuantes subjetivos a uma mulher que continua a ter relações sexuais com seu homem, enquanto, por outro lado, persevera na tentativa de convencê-lo a se aproximar da castidade?
Na disciplina canônica que não admite os divorciados em segunda união nos sacramentos, dois elementos devem ser distinguidos ou, se preferirmos, duas razões diferentes. A primeira é uma razão derivada da teologia moral. O adultério é intrinsecamente mau e nunca pode ser justificado. Mas isso não impede que a pessoa possa não ser totalmente responsável por essa transgressão devido a circunstâncias atenuantes subjetivas. Existe uma impossibilidade absoluta de dar a comunhão àqueles que estejam em pecado mortal (e essa regra é do Direito Divino e, portanto, inderrogável), mas se, devido à falta de pleno conhecimento e consentimento deliberado, não há pecado mortal, a comunhão pode ser dada, do ponto de vista da teologia moral, inclusive a um divorciado em segunda união.
Há também outra proibição, não moral, mas jurídica. A convivência extraconjugal contradiz claramente a lei de Deus e gera escândalo. Para proteger a fé do povo e reforçar a consciência da indissolubilidade do matrimônio, a autoridade legítima pode decidir não dar a comunhão aos divorciados em segunda união, embora não estejam em pecado mortal. Mas esta regra é um direito humano e a autoridade legítima pode permitir derrogações por razões justas.
O senhor acha que aqueles que assinaram a "correctio" levaram em consideração as possíveis circunstâncias atenuantes?
Se compararmos este último documento com os anteriores, não é difícil ver os vestígios de um certo embaraço. Os documentos anteriores ignoravam completamente o problema das circunstâncias atenuantes. Agora tratam de levá-lo em consideração. E para isso, eles devem fingir que não entenderam o que o Papa realmente disse. Uma consequência ainda mais importante é que, quando se tira as consequências lógicas de suas afirmações, até mesmo os críticos admitem que, em alguns casos, os recasados podem estar livres de culpa grave por causa das atenuantes subjetivas e, portanto, receber comunhão. Mas esse, desde o início, é o verdadeiro objeto da disputa.
O alvo das críticas, na sua opinião, são apenas algumas afirmações do atual Pontífice ou do magistério, mais em geral, dos últimos papas e, em última análise, da Igreja pós-Conciliar?
Não conheço todos os que assinaram a "correctio". Entre aqueles que conheço há alguns lefebvrianos. Eles eram contra o Concílio, contra Paulo VI, contra João Paulo II, contra Bento XVI e agora são contra o Papa Francisco. Outros têm a ver com o movimento Tradição, Família e Propriedade, que apoiou a ditadura militar no Brasil. Alguns afirmam publicamente que o desvio da Igreja começa com Leão XIII e a encíclica Au Milieu des Sollicitudes (1892), que teria traído a aliança entre o trono e o altar, renunciando ao princípio do direito divino dos reis... Eles procuram isolar o Papa Francisco, comparando-o com seus predecessores, mas esses adversários também são adversários de seus predecessores. Não vejo que existam entre os signatários muitos cardeais (na verdade, não vejo nenhum), não vejo muitos bispos (apenas um, de 94 anos), não vejo muitos professores ordinários de teologia ou de filosofia (mas encontra-se Antonio Livi, por quem tenho grande estima).
Não há dúvida de que o documento teve um grande eco nos meios de comunicação...
Eu vejo uma campanha de opinião muito bem orquestrada para dar a impressão de uma "revolta dos especialistas", tão especialistas que se podem dar ao luxo de dar lições ao Papa. Claro que esse não é o caso. Permita-me expressar uma preocupação. Eu tenho a impressão de que alguns pensam que a Igreja existe para defender uma Tradição que a precede, que se opõe a qualquer mudança histórica e que não é a Tradição cristã. Os sábios, que são o depósito desta Tradição incriada e eterna, têm o direito de julgar também a Igreja quando faltar à sua tarefa de combater a modernidade. Um pensamento desse tipo foi fortemente apresentado na Action Française condenada por Pio XI. Seguindo esse raciocínio, René Guénon passou do catolicismo ao islamismo, convencido de que oferecia uma defesa mais eficaz da Tradição contra a modernidade.
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"A ‘correctio’? O método não está correto: eles não discutem, apenas condenam". Entrevista com Rocco Buttiglione - Instituto Humanitas Unisinos - IHU