20 Janeiro 2017
O fato de as diretrizes emitidas por bispos para a aplicação pastoral do Capítulo VIII do documento Amoris Laetitia, do Papa Francisco, apresentarem interpretações opostas sobre a questão do acesso aos sacramentos por parte dos fiéis divorciados e recasados no civil confirma uma verdade: o debate não ainda não está resolvido.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 18-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Um debate carregado em torno das implicações da nota de rodapé n. 351 de Amoris Laetitia do Papa Francisco, documento com o qual o pontífice encerrou o processo de três anos envolvendo dois Sínodos dos Bispos sobre a família, vem acontecendo há quase 10 meses, e há indícios de ele continuará assim por muito tempo.
Na nota de rodapé que aborda o acesso aos sacramentos por parte dos católicos divorciados e que voltaram a se casar no civil, embora ela pareça abrir uma porta aberta para um “sim” cauteloso, Francisco também salienta que não pretende alterar o ensino católico ou o direito canônico, e deixa a implementação do documento a cargo dos bispos locais.
É esta ambiguidade que abriu caminho para os bispos interpretarem as implicações do documento de maneiras diferentes, com alguns adotando uma abordagem restritiva e outros uma linha mais permissiva.
Vários bispos ou grupo de bispos comentaram sobre o tema e muitos lançaram as suas próprias orientações para a “aplicação pastoral” do Capítulo VIII, por vezes dando respostas surpreendentemente diferentes.
A seguir apresentamos um resumo do que os bispos e cardeais (embora tecnicamente um cardeal seja um bispo) disseram até o momento.
O documento dos bispos malteses intitulado “Criteria for the Application of Chapter VIII of ‘Amoris Laetitia’” (Critérios para a aplicação do Capítulo VIII de ‘Amoris Laetitia’) foi assinado em 8 de janeiro por Dom Charles Scicluna, de Malta, e Dom Mario Grech, de Gozo. Eles divulgaram-no via website de suas dioceses em 13 de janeiro, após enviá-lo aos padres do país com uma cópia do citado capítulo de Amoris Laetitia.
“Se, como uma consequência do processo de discernimento”, escrevem os bispos, “uma pessoa separada ou divorciada que esteja vivendo um outro relacionamento consegue, com uma consciência informada e iluminada, reconhecer e acreditar que ele, ou ela, está em paz com Deus, esta pessoa não pode ser impedida de participar dos sacramentos da Reconciliação e Eucaristia”.
Vale notar que L’Osservatore Romano, jornal semiofficial do Vaticano, publicou as diretrizes em uma de suas edições.
Em mensagem pastoral intitulada “Abraçando a alegria do amor” e endereçada ao povo de sua diocese na dianteira de um sínodo diocesano sobre a família para debater Amoris Laetitia, McElroy também fala do discernimento da consciência e de os sacerdotes acompanharem os fiéis durante este processo, afirmando claramente que o acesso à Comunhão pode estar no final do caminho.
“Alguns católicos que se engajarem neste processo de discernimento vão concluir que Deus está convidando-os a voltar à participação plena na vida da Igreja na Eucaristia”, escreve. “Outros vão concluir que devem esperar, ou que seu retorno iria magoar outros”.
O sínodo diocesano aconteceu em outubro, e embora o sítio eletrônico da igreja de San Diego fale que as reflexões dos bispos seriam lançadas em novembro, eles nada publicaram ainda.
No entanto, as propostas da assembleia geral do sínodo estão disponíveis na internet e todas elas foram teoricamente aprovadas e serão implementadas. Elas estão disponíveis no sítio da citada diocese.
Em setembro passado, os bispos da região pastoral da ex-arquidiocese do Papa Francisco, Buenos Aires, elaboraram um conjunto de diretrizes que devem ajudar os sacerdotes locais a implementar Amoris Laetitia.
O texto diz que alguns fiéis que voltaram a se casar no civil e que não têm condições de viver o ensino da Igreja segundo o qual “devem viver como irmãos e irmãs”, os católicos que vivem circunstâncias complexas e que não podem obter uma declaração de nulidade do primeiro casamento, estes poderão realizar “uma caminhada de discernimento: e chegar no reconhecimento de que, no seu caso particular, existem limites que ‘diminuem a responsabilidade e a culpabilidade’”.
Para estes casos excepcionais, escrevem os bispos, “Amoris Laetitia abre a possibilidade de acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia”.
O documento é um esboço, o que significa que deve ser discutido em um encontro com vários sacerdotes da região pastoral de Buenos Aires. O jornal L’Osservatore Romano publicou algumas de suas passagens. No entanto o texto ainda não foi emitido em nenhum sítio oficial nem em algum boletim dos bispos de Buenos Aires.
Além disso, as orientações datadas de 5 de setembro chegaram, de alguma forma, ao papa, que em carta vazada à imprensa escreveu: “O documento é muito bom e explica por completo o significado do Capítulo VIII de Amoris Laetitia. Não há outra interpretação”.
O cardeal alemão Walter Kasper, autor da “proposta Kasper” que orientou grande parte do Sínodo dos Bispos quando se tratava de soluções caso a caso ao problema dos divorciados e recasados, é atualmente o presidente emérito do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, e como tal não possui uma diocese à qual produzir um conjunto de orientações.
Mesmo assim, em novembro ele disse que Amoris Laetitia marca uma “mudança paradigmática” que permite uma “prática pastoral transformada”.
No artigo a uma revista mensal sobre cultura cristã chamada Stimmen der Zeit, o prelado observou que a exortação não extrai “nenhuma consequência prática clara”, mas adota premissas pelas quais “uma prática pastoral transformada é permitida em casos individuais justificados”.
“Ele deixa aberta a questão concreta da admissão à absolvição e à Comunhão”, declara Kasper.
O Cardeal Kevin Farrell, ex-bispo de Dallas mas atualmente trabalhando no Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, disse que “existem vários tipos de circunstâncias e situações que temos de observar – caso a caso, como eles se apresentam a nós”.
“Acho que o que o nosso Santo Padre está falando é que, quando se trata de acompanhar, não estamos diante de uma decisão feita independentemente do cônjuge”, disse. “Obviamente há uma lei moral objetiva”, completou, mas que jamais iremos encontrar dois cônjuges cujo divórcio tenha acontecido pela mesma razão.
Entretanto, em entrevista ao Crux no final de novembro, Farrell insistiu que os parceiros divorciados e recasados não são o centro do documento papal, acrescentando que se a Igreja fizer as coisas certas, no futuro sequer haverá a necessidade para a nota 351.
Por outro lado, o Cardeal Blase Cupich, de Chicago, não lançou um conjunto de orientações pastorais ainda. No entanto, quando perguntado sobre o que pensa de uma abertura aos sacramentos, falou que sua posição era aquela adotada pelo Papa Francisco. Para esclarecer o que queria dizer, o cardeal citou a carta do papa aos bispos de Buenos Aires e a interpretação dada pelo cardeal vienense Christoph Schönborn.
“Então, se as pessoas querem saber o que penso, elas deveriam se remeter a estas fontes”, disse.
Schönborn, escolhido a dedo por Francisco para liderar a apresentação em Roma de Amoris Laetitia, concedeu uma longa entrevista à publicação jesuíta La Civiltà Cattolica, em que insistia que este assunto não era central, motivo por que o papa o colocou em uma nota de rodapé.
No entanto, o teólogo que foi o principal editor do Catecismo da Igreja Católica também disse na entrevista que “é possível, em certos casos, que aquele que se encontra em uma situação objetiva de pecado pode receber a ajuda dos sacramentos”.
Um outro prelado que diz “sim” é o vigário romano, o Cardinal Agostino Vallini, quem lançou suas diretrizes em 19 de setembro.
“Um cônjuge que voltou a se unir no civil, se comprometido com a continência completa, poderia ter disponível a Eucaristia a si, depois de um discernimento adequado com o pastor e recorrendo ao sacramento da Reconciliação”, escreve Dom Steven Joseph Lopes, responsável pelo Ordinariato Pessoal da Cátedra de Pedro, estrutura criada para acolher ex-anglicanos à Igreja Católica.
“A menos e até que os recasados no civil pretendam honestamente absterem-se de relações sexuais por inteiro, a disciplina sacramental não autoriza a recepção da Eucaristia”, diz Lopes.
Concordando que pode parecer um “ensinamento difícil”, em julho passado Chaput lançou um conjunto semelhante de diretrizes onde diz que viver como “irmão e irmã” é necessário para que os fiéis divorciados e recasados recebam a Comunhão.
Ele também afirmou que estas pessoas não podem assumir postos de responsabilidade em uma paróquia ou realizar funções litúrgicas numa tentativa de evitar “parecer endossar, sem intenção, o divórcio e um segundo matrimônio”.
Como os bispos malteses, as orientações emitidas por Chaput geraram uma vasta gama de comentários, incluindo comentários de Farrell que, quando perguntado sobre o que achava destas orientações, disse que “teria sido mais sensato aguardar”, e que a Conferência dos Bispos Católicos dos EUA deveria lançar uma única orientação.
Chaput respondeu argumentando que estava seguindo uma solicitação de Francisco.
O documento de oito páginas foi assinado pelos seis bispos que comandam o território, e ele também convida os sacerdotes e comunidades católicas a estarem preparados para receber “estes nossos irmãos e irmãs”.
No entanto, escrevem, “pode acontecer que, através da imprensa, dos amigos ou da família, os casais foram levados a entender que houve uma mudança na prática da Igreja, tal que agora a recepção da Sagrada Comunhão na missa por pessoas que se divorciaram e voltaram a casar no civil é possível se eles simplesmente tiverem uma conversa com um sacerdote. Essa visão é errônea”.
A sugestão deles é que os cônjuges que estão nesta situação sejam orientados para o Tribunal Matrimonial Interdiocesano, que irá, por sua vez, avaliar a validade do primeiro casamento, visto que, como tem sido afirmado repetidamente por alguns prelados, muitas uniões são nulas.
Outros bispos no campo do “não” que publicaram suas orientações são Dom Philip Egan, de Portsmouth (Inglaterra), e Dom Alexander K. Sample, de Portland, no estado do Oregon, que divulgou uma carta pastoral queixando-se das interpretações “errôneas” do documento Amoris Laetitia, incluindo a ideia de que pode haver exceções.
Ainda que não aborde a questão como um problema de “sim ou não”, o fato falar sobre “proibições divinas absolutas” e de reclamar que “alguns têm usado Amoris Laetitia de um modo que não correspondente com a tradição magisterial da Igreja”, podemos inferir que ele está no lado do “não”.
Em artigo de 18 de setembro publicado no jornal diocesano, Dom Thomas J. Olmsted, de Phoenix, escreveu que “como um bom pastor, o Papa Francisco presta uma atenção especial aos que caminham às margens do desespero por fracassos e problemas pessoais que sofrem em suas famílias, e por causa das situações complexas e contraditórias em que se encontram hoje.
Isso não inclui, no entanto, receber a Sagrada Comunhão por parte dos divorciados e recasados”, escreveu.
Em carta de 5 de dezembro aos padres de sua diocese, Dom James Conley, de Lincoln, no Nebraska, disse que Deus convida “à continência” aqueles que voltaram a se casar no civil e que vivem juntos.
“Como qualquer pessoa consciente do grave pecado, os católicos divorciados e recasados no civil que se envolvem em relacionamentos sexuais não podem se aproximar da Sagrada Comunhão”, disse.
Conley também abordou essa discordância pública na Igreja, dizendo que muito embora possa ser uma “fonte de desânimo”, a história da Igreja inclui “grandes disputas teológicas, que tem sido fonte de divisão, mas que, em última instância, levam à clareza e à renovação”.
O prelado reflete que “a Igreja é a Noiva de Cristo, e é protegida e guiada pelo Espírito Santo”, e que as lições da história são as de que “não precisamos nos preocupar ou ficar ansiosos com os desafios dos nossos tempos”.
O cardeal italiano Ennio Antonelli, ex-presidente do Pontifício Conselho para a Família, em texto publicado pelo jornalista italiano Sandro Magister, escreveu que Francisco está, na verdade, “abrindo um caminho inclusive para a admissão à Reconciliação sacramental e à Comunhão Eucarística”.
No entanto, para ele isso não é algo positivo, e sim uma abordagem arriscada, pois poderá levar “à visão equivocada de que a Igreja está aceitando o divórcio e um segundo casamento”. Em vista disso, Antonelli pediu ao papa por “orientações mais explícitas”.
Há ainda a solicitação feita pelo cardeal americano Raymond Burke e outros três cardeais para que o papa resolva o que descreveram com uma “confusão” e “desorientação” decorrentes de seu documento. Desde que divulgaram aquela que era originalmente uma carta privada, os quatro têm falado publicamente, com o americano sendo o mais insistente.
Por mais abrangente que esta lista tentou ser, ela ainda permanece pequena em comparação com das declarações feitas pelos bispos e cardeais, e o fato de que as diretrizes publicadas pelos bispos malteses e por aquelas emitidas por Lopes tenham sido lançadas nos últimos sete dias confirma uma verdade: o debate ainda não acabou.
Nas palavras do cardeal italiano Carlo Caffarra, arcebispo emérito de Bolonha que foi pessoalmente convidado pelo Papa Francisco a participar de ambos os sínodos, mas que é também um dos quatro que assinaram as dubia: “só um cego poderia negar que há uma grande confusão, incerteza e insegurança na Igreja”.
“Nos últimos meses, a respeito de algumas questões bem fundamentais concernentes aos sacramentos, tais como o matrimônio, a confissão e a Eucaristia, além da vida cristã em geral, alguns bispos têm dito A, e outros o contrário de A”, disse Caffarra.
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Como mostram as diretrizes pastorais recentes, o debate “Amoris Laetitia” está longe de acabar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU