18 Fevereiro 2025
"A proposta de uma economia integral deve rearticular os fundamentos da vida em todas as suas dimensões. A ecologia pensada a partir do critério da vida restabelece a dimensão social da economia, recentraliza a política e confere uma nova ordem social".
O artigo é de Rafael Santos Silva, doutor em Sociologia, professor na Universidade Federal do Ceará e membro do Movimento Igreja em Saída.
“Humano assim só podia ser mesmo Deus” é o que sustenta Leonardo Boff no potente texto Jesus Cristo Libertador publicado nos idos dos anos 1980. Toda a comunidade de fé não pode se esquecer da concretude desta frase, sobretudo porque traz em si a capacidade de revelar Deus na sua opção direta de se fazer criatura e, com ela, assumir todas as suas consequências, dada que tal motivação implica diretamente na convivência integral com tudo que se faz vida. Em outras palavras, é o criador se fazendo criatura.
Sabemos que no desenrolar da história, foram os iluministas, já no século XIX, que tentaram legitimar suas ideias positivistas compartimentalizadas conferindo à ciência um lugar separado da religião. Naquele momento, e depois do evento Galileu Galilei, isso parecia ser mesmo algo interessante. Entretanto, a tática sagaz do movimento foi misturar a mudança à doutrina da economia liberal. A noção do laissez-faire, ou da mão invisível do mercado, deveria, de forma automática, regular a vida, agora dentro da perspectiva de uma sociedade secular, apartada da religião. Contudo, a prática assistia a uma estratégia silenciosa a ocupar o vazio deixado pela religião enquanto mediadora social: tratava-se da famigerada teologia da prosperidade. Esta teologia emergia no seio da burguesia em substituição à noção evangélica de que o pobre deve assumir o centro de qualquer civilização equilibrada. Legitimando, desta forma, o acúmulo de riqueza no seio da família cristã, negligenciando a avareza, relativizando o acúmulo e, consequentemente, a forma de explorar o mercado e o outro.
É justo notar que os três movimentos: o surgimento da base científica, a partir da técnica positivista, o liberalismo econômico e a teologia protestante, ocorridos no advento do capitalismo, fizeram-se não apenas simultâneos, mas, sobretudo, siameses.
Como resultado, assistimos a um exponencial avanço das ditas sociedades modernas e civilizadas que, a partir do método científico, alcançaram o prolongamento da vida, sobretudo com a descoberta dos antibióticos. Foi capaz de viabilizar boas estruturas técnicas e até levaram o homem à Lua. Desvendaram o espaço com tal desenvoltura, que já se fala em habitá-lo. Na área tecnológica, a rapidez das comunicações, das transações financeiras e do encurtamento dos espaços geográficos foi sem dúvidas outro ganho sem precedentes.
A grande questão é que, ao fazê-lo sob a lógica do mercado liberal, que a altura vivia o advento do capitalismo, resolveu-se sacrificar, do conceito economia, sua noção de cuidado, separando-a de outra categoria importantíssima que, em 1969, o filósofo alemão Heckel a denominou por “ecologia”, tão bem sustentada por São Francisco de Assis. De forma sintética, houve dois movimentos importantes: (i) reduzir o conceito de economia de cuidado para coisas de mercado, tratando-a apenas pela questão financeira e depois (ii) separá-la da dimensão básica contida na esfera ecológica. Tudo isso precisou ser avalizado pela fé, que se deslocava da noção de caridade para a perspectiva da prosperidade. Na sequência, forjou-se um modelo de produção e consumo amplificado pela técnica das novas máquinas, ampliando de forma exponencial todos os esforços voltados para o consumo.
Consumir, consumir, consumir... Eis o grande mandamento.
Em tempo, é preciso admitir a irresponsável redução social de ver a vida pela lente do consumo. Chega a ser grosseiro esquecer a motivação inicial dos gregos que, ao criar o conceito “economia”, o fazia no sentido de cuidar da casa, nunca, passando-lhes pela cabeça, que isso seria reduzido apenas para movimentações mercadológicas.
Nesse cenário, a sociedade moderna foi quem definitivamente abandonou a lógica do cuidado para se esmerar pela questão central do mercado e, em particular, da economia capitalista. Aqui, cabe-nos lembrar de Karl Polanyi em seu livro “A Grande Transformação” para quem, pela primeira vez, assistimos a uma mudança radical nas relações sociais, de modo especial quando abandonamos a lógica de uma “sociedade com mercado,” e passamos a “uma sociedade de mercado.”
Quais são os efeitos desta mudança no pensamento? Digo-vos que são muitas. Mas, acrescento: são desastrosas. Isso porque, ao assumirmos a opção de termos uma sociedade “de” mercado, passamos a organizar a vida em função das necessidades deste mercado. Esta figura abstrata ganha o aspecto de todo poderoso em que nada, nem ninguém pode contrariá-lo. Portanto, tudo deve orbitar no eixo do mercado que feito um deus se vê servido em todas as circunstâncias.
Com efeito, as relações sociais, aqui incluídas em todas as suas perspectivas como o comércio, o trabalho, a política, descendo para as questões mais intimas da condição humana como o afeto, a fé e a até o sexo, passam a ser objetos mediados pela lógica do mercado. Nesse contexto, aqueles que têm posses acessam tudo e até acumulam. Consequentemente, aqueles que não possuem nada, são-lhes retirados tudo, até a dignidade, invertendo, assim, a lógica evangélica.
O ponto alto deste movimento consiste no rompimento radical entre a vida humana e todas as outras formas de vida. Em outras palavras, as necessidades humanas são mais importantes do que qualquer outra forma de vida. Abandonou-se o princípio da moderna química orgânica onde se sustenta a tese de que todo ser vivo possui “4 aminoácidos e 6 moléculas fosfatadas”, ou seja, desde o princípio, temos a mesma matéria orgânica. Desta forma, no âmbito da criação, todas as criaturas, sem distinção, têm a mesma importância. Ocorre que o projeto capitalista não se interessa pelo princípio da sustentabilidade, sobretudo quando a atividade de mercado, antes de ser simplesmente economicamente viável, deveria ser socialmente justa e ambientalmente correta. Na perspectiva do capitalismo, somente o elemento econômico interessa.
Com isso, os critérios ecológicos são diminuídos, ou simplesmente afastados como forma de garantir a competitividade das transações do mercado. E mais... a ecologia passa a ser um grande empecilho, precisando ser não apenas negligenciado, mas simplesmente negado. E, em última instância, deve ser definitivamente declarado como inimigo do crescimento econômico. Nesta lógica fatal, a ecologia passa a ser entrave ao projeto desenvolvimentista.
Imposta a lógica do crescimento infinito, todos os tentáculos do mercado agem para legitimá-lo. Isso inclui os próprios governos cujos movimentos se dedicam exclusivamente em aumentar o Produto Interno Bruto, ou seja, o PIB. O principal mecanismo nesse campo de atuação é o aumento das taxas de juros que no Brasil é gerenciado pelo Banco Central. O aumento nas taxas de juros de um lado gera desemprego (estima-se que a cada 0,5% de aumento nos juros, 300 mil empregos são retirados) e do outro, mina a capacidade dos governos de exercerem suas funções de cuidado com os mais pobres. Para pagar os juros ao sistema financeiro, o governo precisa sacrificar sua oferta de serviços essenciais na saúde, na educação e nas infraestruturas. Pagar o Benefício de Participação Continuada – BPC a uma pobre viúva enferma é visto como um ataque ao mercado.
É preciso denunciar que o mecanismo de redução da participação dos governos na vida de pessoas vulnerabilizadas está na base da produção da pobreza e, de modo especial, no rompimento da cidadania plena. Para pagar juros aos mercados, é preciso sacrificar os direitos das pessoas mais simples no altar do deus mercado. A grande mídia usa outra linguagem para legitimar tal absurdo. Conhecemo-o, popularmente, por “ajuste fiscal.”
Como resultado, o liberalismo econômico; a fé mediada pelo fundamentalismo da prosperidade, associada ao sequestro da minguada democracia eleitoral produzem um verdadeiro abismo entre as classes sociais. O mundo então passa a ser dividido entre duas categorias. Quem pode consumir e quem não pode consumir. Quem pode consumir ou mesmo se endividar é visto como “cidadão”. Nesse estrato, há alguns afortunados que ganharam até uma categoria extra e são chamados de “cidadãos de bem”. De modo assimétrico, há uma massa de pessoas empobrecidas que não podem ir ao mercado. Estas são literalmente esquecidas, quando não são vítimas daquilo que Adela Cortina veio a chamar de Aporofobia, ou fobia ao pobre. Na prática, tem-se mesmo ódio ao pobre que deve ser punido. Aqui o Estado, pelo uso do monopólio oficial da força, é chamado a vigiar a pobreza. Boa parte da polícia passa a ser adestrada para controlar ou mesmo eliminar o inimigo coletivo: o pobre.
É interessante observar que nesse contexto, se alguém matar para roubar um aparelho celular, é imediatamente linchado em praça pública. Mas se outro alguém matar o ladrão que roubou o mesmo celular, é visto como herói nacional. Ou seja, o problema não é o evento morte, mas a garantia da propriedade privada.
A síntese desse modelo econômico baseado no mercado é explorada pelo professor Ladislau Dowbor, ao apresentar uma clara leitura dos dados levantados pelo Banco Suíço UBS. Em seu relatório “a desigualdade no mundo pirâmide UBS 2023”, o economista revela que, na “economia da morte", expressão utilizada por Papa Fransisco, apenas 1,1% detém 45% de toda riqueza mundial. Mas, se for somada à segunda faixa dos super-ricos – aqueles que possuem entre US$ 100 mil e US$ 1 bilhão - verifica-se que 13% da população achacam 85% da riqueza monetária mundial. Ou seja, cultivamos uma economia para que poucos afortunados aproveitem suas benesses.
Em contraponto, um bom recorte para analisar o mundo consiste em identificar o número de pessoas em situação de fome. Um simples olhar no tradicional relatório da FAO intitulado “The State of Food Security and Nutrition in the World 2024” publicado em agosto passado, observa-se que a fome severa alcançou 868.6 milhões de pessoas. Já a fome moderada alcançou 1.611.1 pessoas. Quando somadas essas duas dimensões, fome severa e moderada, registrou-se um total de 2.311.7 bilhões de pessoas. Importa dizer que toda essa pobreza do mundo é socialmente produzida por três condições: guerras, mudanças climáticas e mal uso da economia.
Para isso é importante trazer à tona a potente fala, não de um comunista ou marxista, mas do próprio Papa Francisco quando sentenciou: “enquanto não for radicalmente solucionado o problema dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira, não se resolverão os problemas do mundo...” E completa o pontífice “a desigualdade é a raiz de todos os males sociais”.
Nesse particular, não é muito repetir a noção de justiça expressa em Leonardo Boff para quem o antônimo de “pobreza não é riqueza, mas justiça social”. Isso porque há um profundo senso de injustiça em ambientes de pobreza. Logo, se a justiça social é um imperativo ético, ela só pode ser alcançada pela virada ecológica baseada na responsabilidade universal. Isso exige de todos uma mudança radical de postura. No dizer de L. Boff, esse imperativo implica que devemos “agir de tal maneira que as consequências dos nossos atos sejam boas para todos os demais” numa incessante busca pela justa medida.
É aqui que se insere a urgente necessidade de recuperarmos a noção da Ecologia Integral. A proposta de uma economia integral deve rearticular os fundamentos da vida em todas as suas dimensões. A ecologia pensada a partir do critério da vida restabelece a dimensão social da economia, recentraliza a política e confere uma nova ordem social. Este movimento assegura que a economia será orientada pelos limites da ecologia e a serviço da comunidade de vida, e não o contrário. Assim, a produção e o consumo não deve ser o critério de dignidade, mas sim o bem-viver.
De verdade, o Papa Francisco não foi o primeiro a levantar a importância do tema. Mas, certamente, é ele quem mais tem se dedicado a construir novas alternativas ao desenvolvimento, e não um simples desenvolvimento alternativo.
Neste quadro, a partir da tarefa a mim incumbida de facilitar uma reflexão generalista da dimensão “ver” gostaria de deixar uma pergunta: qual é o papel da igreja, de forma particular da igreja católica, e dentro desta, das diferentes comunidades, movimentos e organismos para viabilizar retorno à ecologia integral?
Sei que hoje iniciamos uma importante caminhada de reflexão/ação rumo a campanha da fraternidade que este ano volta ao tema da Ecologia Integral, sobretudo para lembrar o 10º ano da Laudato Si. Estou convencido que ainda há muito por fazer. Alguns bons caminhos foram construídos como a Economia de Francisco, o Pacto pela Educação e o Sínodo da Amazônia. Outras tantas ainda há que ser realizadas, mas nenhuma ação é mais importante para colocar a Laudato si em prática do que a tarefa de “Realmar a economia.” Realmar significa devolver a alma. Alma é aquilo que anima, faz movimentar, dá sentido a matéria. Portanto, leiam, discutam, indignem-se, mas reanimem a economia a partir da articulação social e política, guardando principalmente o compromisso evangélico com os pobres. De fato, é preciso ser uma igreja em saída. Isso significa abandonar o conformismo “do tem que ser assim” e se colocar à serviço das pequenas coisas, desde nossas dioceses, igrejas, capelas e vida familiar. Até que nossa prática seja de fato igual ao nosso discurso.
Finalmente, posso assegurar não haver respostas simples para problemas complexos. Mas, no clássico “Batismo de Sangue”, Frei Betto se vale de uma parábola que nos dá algumas dicas. Conta o adágio que “certa vez, um monge retornara a seu mosteiro. No caminho, cruzou com uma criança maltrapilha, abatida pela fome e pelo frio. Na igreja, vociferou contra Deus: “por que o senhor nada faz por aquela criança? Eis que de repente, um clarão rompeu os céus, então surge Deus em sua face luminosa a dizer-lhe: eu fiz você.”