03 Fevereiro 2025
A reportagem foi publicada por Religión Digital, 01-02-2025.
Durante décadas, especialmente ao longo do pontificado de João Paulo II, o Peru foi um dos berços da Igreja ultraconservadora na América Latina. Sob o comando do todo-poderoso Juan Luis Cipriani, o primeiro cardeal da história do Opus Dei, a Igreja peruana tornou-se, ao lado da mexicana, o epicentro da restauração neocatólica.
O Peru, assim como antes o México, protagonizou a aliança entre os poderes neoconservadores no mundo da política, das empresas, do judiciário e da religião. Fez isso ocultando abusos, promovendo o crescimento de organizações radicais como o Sodalício de Vida Cristã ou o Instituto do Verbo Encarnado (o primeiro está prestes a ser dissolvido, o segundo foi intervindo por Roma) e atacando, até quase a extinção, a Teologia da Libertação, também fundada no Peru pelo teólogo Gustavo Gutiérrez, recentemente falecido.
Juan Luis Cipriani com Rafael López Aliaga | Foto: Divulgação/Religión Digital
Tudo isso ocorreu com o aval do Opus Dei, que ainda hoje exerce uma espécie de primado político em Lima por meio da figura do prefeito Rafael López Aliaga, também membro da organização. No último mês de janeiro, ele concedeu a Cipriani a Medalha Ordem ao Mérito no grau de Grande Cruz “por seu incansável trabalho pastoral, acadêmico e eclesiástico”. A homenagem ocorreu pouco antes de receber a presidente da Comunidade de Madri, Isabel Díaz Ayuso.
Durante o mandato de Cipriani, tanto o Opus Dei quanto o Sodalício atuaram livremente no país. A aliança entre Cipriani e Luis Fernando Figari (fundador do Sodalício) foi estreita por décadas. Ídolos que se revelaram frágeis, como no caso de Figari, que, assim como Marcial Maciel e a Legião de Cristo, usou a organização – e o apoio incondicional da instituição – para se tornar um predador sexual e construir uma rede de negócios praticamente infinita.
Segundo os investigadores Paola Ugaz e Pedro Salinas, os negócios do Sodalício – que começaram com a concessão de diversos cemitérios pelo país – ultrapassam um bilhão de dólares. Esse dinheiro está sob responsabilidade do delegado papal encarregado da dissolução do Sodalício, o espanhol Jordi Bertomeu, que deve utilizá-lo, entre outras finalidades, para indenizar centenas de vítimas.
Em um gesto simbólico, o primeiro denunciante de Figari foi recebido na semana passada pelo Papa Francisco no Vaticano, que lhe confirmou a dissolução da organização e assegurou total apoio às vítimas. Nos mesmos salões vaticanos antes ocupados por Figari e Maciel, um outro Papa agora acolhia suas vítimas.
Pouco depois de Cipriani completar 75 anos, o Papa Francisco o destituiu do cargo de arcebispo de Lima. Em 2019, após denúncias de abusos sexuais supostamente ocorridos em 1983, o pontífice “impôs ao cardeal uma sanção penal com certas medidas disciplinares”, conforme revelado pelo jornal El País e confirmado pelo porta-voz da Santa Sé, Matteo Bruni. Entre as restrições impostas estavam a proibição do uso das insígnias cardinalícias, a limitação de aparições públicas e a restrição de viagens ao Peru.
Carta del Cardenal Juan Luis Cipriani y carta de sus compañeros de estudios. pic.twitter.com/z8oKzttLar
— Rocío Boza (@miquita1110) January 29, 2025
Apesar disso, Cipriani – que reside em Madri desde então – viajou várias vezes ao país sul-americano, sendo a última delas para receber uma honraria das mãos do prefeito López Aliaga. O cardeal negou as acusações: “Quero esclarecer que os fatos descritos são totalmente falsos. Não cometi nenhum crime nem abusei sexualmente de ninguém, nem em 1983, nem antes, nem depois”, afirmou, chegando a alegar que teria sido reabilitado por Roma em 2020. No entanto, a Santa Sé esclareceu que as medidas impostas “seguem em vigor”.
O véu de silêncio sobre Cipriani começou então a se desfazer. O golpe final veio de seu sucessor em Lima, Carlos Castillo, que Francisco nomeou cardeal no último consistório e que é um dos poucos prelados peruanos que defenderam as vítimas do Sodalício, enquanto a maior parte da Conferência Episcopal do país manteve sua proteção à instituição.
Em uma carta aberta aos fiéis, Castillo foi direto sobre o caso Cipriani: “Nos últimos meses, após investigações sérias e precisas, há pessoas e instituições que se recusam a reconhecer a verdade dos fatos e as decisões tomadas pela Santa Sé. Convidamos a todos a entrar em um caminho de conversão que implique abandonar as vãs justificativas, a obstinação e a rejeição à verdade”.
Castillo escreveu ainda: “O que foi declarado oficialmente pela Santa Sé nos remete, antes de tudo, à imensa dor e ao sofrimento das vítimas de todos os tipos de abuso dentro de nossa Igreja e da sociedade”. Um sofrimento que “dilacera nosso espírito, nos interpela profundamente e nos compromete solidariamente com elas”.
La carta del Cardenal Carlos Castillo es extraordinaria frente al mamotreto escrito por Cipriani negando ser un pederasta. Recomiendo leerla con detalle. #NuncaMásAbusoSexual pic.twitter.com/N9ZaCEzDvF
— Carlos Cornejo A. (@CarlosCornejoA) January 28, 2025
“Todo ser humano ultrajado é um clamor de Deus”, acrescenta Castillo, conclamando a Igreja a “se esforçar pessoal e institucionalmente para acolher e acompanhar as vítimas, além de deter e punir as agressões, utilizando os meios adequados e justos, e se comprometer com sua proteção, defesa, restauração e reparação”.
Após a manifestação do cardeal de Lima, a Conferência Episcopal do Peru, tradicionalmente resistente a reconhecer o sofrimento das vítimas (estima-se que apenas cinco dos 54 bispos do país tenham tomado alguma atitude contra os abusos do Sodalício), admitiu que, no caso de Cipriani, “a veracidade dos fatos foi comprovada”.
“Nos sentimos entristecidos ao conhecer as recentes notícias sobre o Cardeal Cipriani”, afirma a nota dos bispos, na qual lamentam “a dor sofrida pela vítima de abusos e pela comunidade eclesial” e pedem “a todo o Povo de Deus que respeite a vontade da vítima de permanecer no anonimato”.
“Reafirmamos nossa proximidade com todas as vítimas de qualquer tipo de abuso”, acrescentam os bispos peruanos, que reconhecem “a sábia decisão do Santo Padre, ao unir justiça e misericórdia, de aceitar que Cipriani deixasse o Ministério Episcopal como Arcebispo Emérito de Lima ao completar 75 anos e de impor-lhe certas limitações ministeriais”. “Pedimos a todo o Povo de Deus que ofereça orações pelo denunciante, pelo Cardeal Juan Luis Cipriani e pela Igreja, para que seja um espaço seguro onde a reconciliação possa ser vivida”, finaliza o comunicado.
Cipriani não demorou a reagir. “Surpresa e dor”, afirmou em uma nova carta, na qual denunciou “a injustiça de tomarem como verdadeiras acusações sem provas contra minha pessoa”.
“Deixaram-se confundir por esta campanha de assédio e destruição de minha dignidade e honra”, alega Cipriani. Ele insiste que aceitou “medidas preventivas diante da acusação recebida até que a verdade fosse esclarecida, apesar de sua origem ser uma acusação falsa”, e afirma que não teve a oportunidade de se defender.
De Madri – onde a Arquidiocese local afirma não saber exatamente onde ele reside –, um Cipriani ferido prepara sua defesa.