21 Janeiro 2025
"Esse pensamento talmúdico pode nos ajudar a não povoar o nosso universo mental com anjos ou demônios e nos abrir para a grande fraternidade de homens capazes de compartilhar humildemente sua complexidade", escreve Bernard Ginisty, filósofo francês, em artigo publicado por Garrigues Et Sentiers, 20-01-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há vários anos estamos assistindo ao que poderíamos chamar, para usar o título de uma obra de Friedrich Nietzsche, de um “crepúsculo dos ídolos” no mundo católico. Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco viu o surgimento desse momento crítico: “A partir do Concílio Vaticano II, tivemos ideologias revolucionárias seguidas por ideologias restauradoras. Em ambos os casos, o que as caracteriza é a rigidez. A rigidez é o sinal de um espírito maligno que esconde algo. O que está escondido pode não ser revelado por muito tempo, até estourar um escândalo. Nos últimos anos, assistimos ao desaparecimento de um número significativo de grupos na Igreja, movimentos sempre caracterizados por rigidez e autoritarismo. Os líderes e outros membros se apresentavam como restauradores da doutrina e da Igreja, mas o que descobrimos a partir de suas vidas nos diz o contrário. Mais cedo ou mais tarde, haverá uma revelação chocante sobre sexo, dinheiro e controle mental” [1]. Jean Vanier, Marthe Robin, os irmãos dominicanos Philippe, alguns “pastores” carismáticos e hoje o Abbé Pierre, todos quase canonizados em vida, mostram o quanto essas afirmações são verdadeiras [2].
Talvez precisemos questionar o contexto midiático, que adora tanto pôr em cena figuras sublimes quanto sua demolição. Para citar um verso de Racine no Britannicus, eles provavelmente não mereciam “nem esse excesso de honra nem essa indignidade”. Mais fundamentalmente, somos tentados a povoar a história e a sociedade de anjos ou demônios para escapar da nossa condição humana.
Sobre esse ponto, Blaise Pascal é um mestre de lucidez quando se trata de evitar essas aberrações: “Apresentar (ou apresentar-se) fora do ambiente cotidiano significa colocar (ou colocar-se) fora da humanidade (...) é perigoso demonstrar ao homem quanto ele é igual aos animais sem lhe mostrar a sua grandeza. E é também perigoso mostrar-lhe demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É mais perigoso ainda deixá-lo ignorar uma e outra coisa (...) O homem não é nem anjo nem animal, e a infelicidade quer que quem quer se mostrar anjo se mostre animal”. A partir daquele momento, ele se distanciou tanto dos devotos dos “padres espirituais” quanto dos inquisidores, pedindo-lhes que permanecessem “aqueles que buscam”: “condeno igualmente os que tomam o partido de louvar o homem, e os que tomam de o condenar, e os que tomam o de se divertir; e não posso aprovar senão aqueles que buscam gemendo” [3].
Em um momento em que um número muito grande de líderes e mídias estão à busca de bodes expiatórios para explicar o que não está funcionando, essas palavras me parecem bem atuais. A tentação de demonizar o outro, para mostrar como exterior o mal que carregamos dentro de nós, é um grave risco para qualquer política que queira ser generosa. O pensamento binário, que divide o mundo em bem e mal, verdadeiro e falso, vício e virtude, continua sendo um pensamento infantil, incapaz de enfrentar a complexidade e a ambiguidade do ser humano. Para evitar esses impasses, o filósofo Emmanuel Lévinas nos convida a deixar para trás os catecismos religiosos ou ideológicos, para os quais existe apenas uma resposta certa para cada pergunta: “Acontece - e essa é a grande sabedoria que anima o Talmud - que os princípios gerais e generosos podem ser invertidos em sua aplicação. Todo pensamento generoso é ameaçado por seu stalinismo. A grande força casuística do Talmud é que se trata de uma disciplina especial que busca no particular o momento exato em que o princípio geral corre o risco de se tornar seu oposto, que vigia o geral a partir do particular. Isso nos protege da ideologia. A ideologia é a generosidade e a clareza do princípio que não levaram em conta a inversão que ameaça esse princípio generoso: o Talmude é a luta contra o Anjo” [4].
Esse pensamento talmúdico pode nos ajudar a não povoar o nosso universo mental com anjos ou demônios e nos abrir para a grande fraternidade de homens capazes de compartilhar humildemente sua complexidade.
[1] Papa Francesco: Un temps pour changer. Conversations avec Austen Ivereigh, éditions Flammarion, 2020, pages 84-85.
[2] Cf. Céline Hoyeau: La Trahison des pères. Emprise et abus des fondateurs des communautés nouvelles, éditions Bayard 2021; Conrad de Meester: La fraude mystique de Marthe Robin, éditions Le Cerf, 2020; Tangi Cavalin: L’Affaire. Les dominicains face aux scandales des frères Philippe, éditions Le Cerf, 2023.
[3] Blaise Pascal: Pensées, in Œuvres complètes de Pascal, bibliothèque de La Pléiade, éditions Gallimard, 1957, pages 1170-1171.
[4] Emmanuel Lévinas: L’au-delà du verset. Lectures et discours talmudiques, éditions de Minuit, 1986, pages 98-99.