13 Janeiro 2025
Políticas sociais, por mais necessárias e eficientes que sejam, não mudam a cabeça do povo. Só uma ofensiva cultural, ideológica, será capaz de disseminar na população brasileira um novo consenso progressista como o que elegeu Dilma Rousseff duas vezes e Lula, três.
O artigo é de Frei Betto.
Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.
Meu primeiro impulso foi intitular este texto de “desafios à esquerda”. Logo me dei conta de que, hoje em dia, resta pouco do que considero esquerda – que se empenha na superação do sistema capitalista.
Adoto “forças progressistas” porque a expressão inclui antibolsonaristas, apoiadores do atual governo Lula, os que se empenham para manter e ampliar a democracia formal, malgrado seu paradoxo de socializar a esfera política (sufrágio universal) e privatizar a econômica, excluindo a maioria da população brasileira de condições dignas de existência (moradia, saúde, educação, cultura, oportunidades de trabalho, que resulta em redução significativa do desemprego etc.).
Abordo em seguida desafios que considero prioritários.
Embora haja grandes feitos em apenas dois anos de governo Lula, após quatro de desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro, poucos sabem que, em 2023, a economia brasileira cresceu 2,9% (alcançou R$ 10,9 trilhões), e em 2024, 3,5%; a renda dos trabalhadores aumentou 12% e consequentemente também o consumo das famílias; o programa Bolsa Família passou a atender 21,1 milhões de famílias (1 milhão a mais que em 2022); recuperação do salário mínimo acima da inflação (embora o ajuste fiscal tenha limitado o crescimento real a 2,5%. Em 2025 deveria ser de R$ 1.528 e passa a R$ 1.518); reestruturação do IBAMA e da FUNAI; o novo programa Pé de Meia (que beneficia 3,9 milhões de estudantes do ensino médio); a instalação de mais de 100 unidades dos Institutos Federais; o programa Mais Médicos, que atende populações mais vulneráveis, conta, atualmente, com quase 25 mil médicos contratados pelo governo federal; e o protagonismo do Brasil no cenário internacional (Brics, G20, COP30 etc.). Haveria muito mais a destacar.
Apesar de tantos avanços, o governo falha na comunicação. Até agora não soube montar uma trincheira digital capaz de superar a influência da extrema-direita nas redes. Pesquisas indicam que 76% dos brasileiros se informam por redes digitais e sites de notícias.
A guerra digital exige um número expressivo de profissionais dedicados à comunicação digital, com a possibilidade de formar grandes influenciadores. O fenômeno eleitoral Pablo Marçal, que não dispunha sequer de um minuto de propaganda na TV, deveria servir para alertar sobre a importância dessa ofensiva.
Outro fator que julgo importante para que as forças progressistas não venham a ser derrotadas pelos neofascistas na eleição presidencial de 2026 é a batalha ideológica.
Convém lembrar que o fim da ditadura militar, em 1985, não resultou de suas inerentes contradições. Pesaram sobretudo o desgaste ideológico com as frequentes denúncias de violações de direitos humanos, o testemunho de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos, a pressão internacional pela redemocratização do Brasil, e as grandes mobilizações populares como a Passeata dos Cem Mil, as greves operárias do ABC paulista e as concentrações pelas Diretas Já!
Hoje, a esquerda se encontra órfã de referências ideológicas. Elas se multiplicavam antes da queda do Muro de Berlim (1989). Países socialistas serviam de parâmetros às utopias libertárias. O estudo do marxismo e a sua aplicação nas análises da realidade vigoravam. Havia uma militância aguerrida que atuava voluntariamente nas campanhas eleitorais. A extrema-direita se sentia acuada e a polarização da esquerda se dava com a social-democracia.
Isso acabou. Os tempos são outros. E sombrios. A direita se encontra em ascensão eleitoral no mundo. Sua máxima expressão, Donald Trump, ocupa o cargo mais poderoso do planeta. A direita passou a fazer intensa (des)educação política do povo, enquanto as forças progressistas deixaram Paulo Freire dormitar nas prateleiras.
As forças progressistas perderam a capacidade de promover grandes mobilizações populares diante da falta de educação política do povo, da excessiva burocratização dos partidos progressistas, da perda de referências históricas e do esgarçamento do movimento sindical.
O fenômeno do empreendedorismo não é novo. A novidade é ter se tornado um modismo para as classes populares. Vários fatores concorrem para isso: retrocessos e perda dos direitos trabalhistas, precarização das relações de trabalho, desarticulação das estruturas sindicais, supremacia da financeirização sobre a produção, esgarçamento das relações sociais provocado pelas redes digitais etc.
O neoliberalismo, em sua era digital, mina as relações corporativas. A uberização das condições de trabalho e a síndrome dos influenciadores internáuticos, bem como a monetização das redes, criam a ilusão de que todos podem ascender socialmente sem muito esforço. Basta ousar ser patrão de si mesmo. É a nova versão do self-made man.
Outrora a elite era constituída pela nobreza. Na medida em que os títulos nobiliárquicos foram sendo substituídos pelos títulos da Bolsa de Valores, o sangue azul cedeu lugar aos milionários que alcançaram o topo da pirâmide social graças ao empreendedorismo.
Há que acrescer a isso a despolitização da sociedade, agravada desde a queda do Muro de Berlim. Como falar de sociedade pós-capitalista se o socialismo real fracassou? Como incutir nas novas gerações a consciência crítica se o marxismo já não está em voga? Como ampliar o espectro social e eleitoral das forças progressistas se elas abandonaram o trabalho de base?
São desafios que ainda não encontram respostas. E a falta de respostas acelera a ascensão da direita. Faz com que se repitam fatos surpreendentes, como a vitória de Lula sobre Bolsonaro, nas eleições de 2022, por apenas pouco mais de 2 milhões votos, em um universo de 156 milhões de eleitores. Ou a reeleição de Trump em 2024, vitorioso no colégio eleitoral e no voto popular.
Hoje, o eleitor, desprovido de consciência de classe, de relações corporativas (como as sindicais) e imunizado pelos impactos da grande mídia graças às suas bolhas digitais, busca eleger quem lhe possa garantir um lugar ao sol na praia das oportunidades. Na falta de referências revolucionárias (Vietnã, Sierra Maestra, figuras como Mao Tsé-Tung e Fidel) ele vota pensando, primeiro, na prosperidade individual, e não coletiva.
Os eleitores pobres manifestam seu inconformismo ao dar apoio aos que ostentam a bandeira da “antipolítica”. Decepcionados com os políticos tradicionais, preferem os arrivistas, os messiânicos, os que ousam contrariar o perfil da institucionalidade política e se glamourizam pelo histrionismo.
Convém ressaltar que aqueles que se encontram sociologicamente na pobreza não mais se consideram pobres. Para eles, pobres são aqueles que vivem em situação de rua. Um episódio demonstra bem o que assinalo: durante a campanha eleitoral à prefeitura de São Paulo, em 2024, um líder do MTST visitou uma invasão urbana. Não se tratava de ocupação. Um terreno privado havia sido invadido por inúmeras pessoas induzidas por um espertalhão que cobrou por cada espaço em que barracos precários foram erguidos.
Na conversa com um dos invasores, o líder do movimento social indagou como ele se sentia naquela situação de pobreza. O cidadão, vendedor ambulante, reagiu: “Não sou pobre. Tenho um terreno, uma casa e paguei por esse espaço.” Espaço que, com certeza, passado o período eleitoral, o dono da área pedirá reintegração de posse e todos serão expulsos dali pela Polícia Militar.
Outro importante fator que explica como a esquerda perdeu a mística e a direita “saiu do armário” é a inversão da motivação religiosa. Entre as décadas de 1970 e 1990, a principal rede de organização e mobilização popular no Brasil eram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e as pastorais populares, inspiradas pela Teologia da Libertação. Isso foi desmantelado com os 34 anos (1978-2013) de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. Coincidiu com o espantoso crescimento das Igrejas evangélicas, cuja maioria de fiéis faz uma leitura salvacionista da Bíblia (pauta de costumes) e não libertária como faziam as CEBs.
A Igreja Católica, que havia feito “opção pelos pobres”, viu os pobres optarem pelas Igrejas evangélicas, nas quais encontram acolhimento e suporte social, inexistentes na maioria das paróquias católicas. Acresce-se a isso o erro de os legisladores brasileiros isentarem as Igrejas de pagar impostos como IPTU, ISS e imposto de renda sobre dízimos e doações. Assim, muitas novas Igrejas surgem para facilitar a lavagem de dinheiro...
As forças progressistas, acuadas pelo fundamentalismo religioso dotado de inegável poder eleitoral, ainda não sabem como enfrentar esse fator que constitui o substrato cultural de nosso povo. E o governo não encontrou ainda uma estratégia que se contraponha ao fenômeno do conservadorismo religioso, cujo impacto cultural e político é significativo.
Em resumo, a direita pode, sim, vencer as eleições presidenciais de 2026 caso o governo Lula e as forças progressistas não recalibrem suas estratégias na comunicação, nas trincheiras digitais, na educação política da população, na questão religiosa, no trabalho de base dos partidos políticos progressistas.
Políticas sociais, por mais necessárias e eficientes que sejam, não mudam a cabeça do povo. Só uma ofensiva cultural, ideológica, será capaz de disseminar na população brasileira um novo consenso progressista como o que elegeu Dilma Rousseff duas vezes e Lula, três.
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Desafio às forças progressistas em 2025. Artigo de Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU