19 Novembro 2024
"Hoje, mais do que nunca, a perspectiva delineada por Bianchi é fecunda para ler a dramática ambivalência do nosso tempo, no qual a fraternidade é negada por meio de barreiras e guerras fratricidas, precisamente enquanto hoje ela se impõe não apenas como uma filiação comum, mas também como um destino comum, produzido por uma possibilidade sem precedentes de 'perdição' comum, de autodestruição global, por meio de armas nucleares e do impacto das tecnologias na biosfera".
O artigo é de Mauro Ceruti, escritor e jornalista, publicado por Il Sole 24 Ore, 17-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pensamentos para o futuro. De acordo com Enzo Bianchi, o ecúmeno terrestre é uma realidade concreta e a interdependência nos obriga a pensar em um único mundo, em um projeto comum para o desenvolvimento de todos os homens.
Falar de fraternidade em uma época como a nossa, marcada globalmente por guerras fratricidas, parece inevitavelmente destinado à irrelevância e a remeter ao espaço irrealista da utopia. No entanto, algumas vozes estão se levantando, justamente hoje, para nos fazer refletir sobre o concreto realismo da fraternidade como condição para poder imaginar uma paz que, de outra forma, pareceria impossível. Entre elas, destaca-se, por sua autoridade, a de Enzo Bianchi, monge leigo, uma das figuras mais significativas da Igreja pós-conciliar, que, por meio de sua biografia e pensamento, sempre foi um defensor do diálogo ecumênico e intercultural.
Enzo Bianchi, Fraternità, Einaudi, pp. VIII-96, € 16,50 (Foto: Divulgação)
Com um livro pequeno, mas de grande visão, Fraternità (Fraternidade), Enzo Bianchi nos dá a oportunidade de refletir sobre as crises e as potencialidades antropológicas de nosso tempo precisamente por meio de uma meditação sobre a fraternidade como uma dimensão constitutiva da identidade humana.
A fraternidade é uma experiência ambivalente, e assim aparece desde as origens nos relatos da história humana, e desde sua fonte mais profunda, a necessidade do “eu”, que, para florescer, precisa de um “nós” e de um “tu”. Com fulgurantes traços, Bianchi conduz aos meandros dessa ambivalência por meio do relato bíblico, começando pelo livro de Gênesis: “Há uma unidade do gênero humano que deve ser reconhecida como fraternidade. (...) Deus criando o terrestre (adam) da terra (adamah) e o fazendo à sua imagem e semelhança, criando-o homem e mulher, e lhe deu justamente o nome de Terrestre (Adam), expressão de uma vocação humana comum”. Mas é imediatamente a partir daí que começa a história da “difícil” fraternidade, como prova, esforço, que “não prevê uma aceitação automática”, mas que deve ser construída e vivida. O fratricídio posto no início da história humana atesta como a fraternidade também pode ser dolorosa. A fraternidade “é tanto um dom quanto uma tarefa”. E, escreve Bianchi, “essa passagem do dom à tarefa, essa aceitação do limite que intervém com a presença do irmão ou da irmã exige que se coloque à morte a ‘singularidade’, que se supere o medo de perder ‘o único lugar’. E é aqui, no coração da fraternidade, que ressurge o medo do outro, a possibilidade de que o outro seja o inferno e, por fim, o medo da morte...”.
É precisamente a necessidade de escolher qual relacionamento manter com a alteridade, com o irmão, semelhante e diferente, que gera as possíveis tensões entre amor e ódio, entre rivalidade e atração incestuosa, entre solidariedade e remoção. A meditação de Bianchi encontra sua força motriz na pergunta que Deus dirige ao fratricida Caim: “onde está teu irmão?”. Ou seja, “qual a relação que você tem com o outro?”. Que é, em essência, a mesma pergunta que por fim encontramos no Evangelho de Lucas. E para avaliar o valor do livro de Enzo Bianchi, bastariam as seis páginas dedicadas à parábola do samaritano, que com grande clareza hermenêutica e radicalismo espiritual mostram o abismo que separa e contrapõe as duas perguntas sobre a fraternidade, a do escriba e a de Jesus. “A pergunta errada de um homem crente, religioso, perito na leitura e na interpretação das Escrituras: “quem é o meu próximo?”. Ou seja: a quem a fraternidade deve ser restrita? Aos membros da família? Aos amigos? Aos compatriotas? Aos correligionários?... A essa pergunta do rabino, por meio da parábola, Jesus contrapõe a pergunta, correta: “quem se tornou o próximo do homem que se deparou com os ladrões?”. Bianchi comenta: “O próximo é aquele de quem você decide se aproximar. Não existe o próximo: eu me torno próximo de alguém!”. E acrescenta: “É verdade que esse homem que se tornou presa dos ladrões poderia ser um delinquente, um pecador, um inimigo dos judeus. (...) Mas a indiferença é esse mal radical que, na realidade, não é apenas omissão, mas cumplicidade com aqueles que praticam o mal. Aquele que se vira para o outro lado quando vê uma vítima sofredora é tão culpado quanto quem atacou a vítima e pode se tornar assassino se não fizer nada e não se importar a ponto de deixar morrer aquele ser humano”.
Hoje, mais do que nunca, a perspectiva delineada por Bianchi é fecunda para ler a dramática ambivalência do nosso tempo, no qual a fraternidade é negada por meio de barreiras e guerras fratricidas, precisamente enquanto hoje ela se impõe não apenas como uma filiação comum, mas também como um destino comum, produzido por uma possibilidade sem precedentes de “perdição” comum, de autodestruição global, por meio de armas nucleares e do impacto das tecnologias na biosfera.
Uma coisa é peremptoriamente destacada hoje pelas crises globais: ninguém se salva sozinho. E é exatamente essa condição inédita que Enzo Bianchi nos ajuda a ler.
A fraternidade é fundada no sentimento de um pertencimento mútuo e é vivida na consciência de pertencer à mesma comunidade e de agir nesse sentido. O novo limiar é que hoje, pela primeira vez, a humanidade pode aprender a pensar em si mesma como “humanidade” e desenvolver a consciência de uma fraternidade universal, precisamente a partir do perigo comum que liga todos os seres humanos ao mesmo destino, de vida ou morte. Hoje, pela primeira vez na história humana, o ecúmeno terreno se tornou realidade concreta.
“A interdependência nos obriga a pensar em um só mundo, em um projeto comum para o desenvolvimento de toda a humanidade” escreveu o Papa Francisco. E é nesse horizonte, como ainda pontua o Papa Francisco no Prefácio do livro, que “Enzo Bianchi, com a sua habitual profundidade humana e inteligência espiritual, mostra que a fraternidade é a vocação da humanidade”, ajudando a compreender como precisamente uma fraternidade universal e aberta pode constituir um desenvolvimento e uma novidade em relação às experiências de fraternidade “fechadas”, historicamente realizadas até hoje. Utopia?
Talvez. Mas hoje concreta, necessária. E ao ler essas páginas de Enzo Bianchi nos volta à memória Blaise Pascal: “l'homme passe infiniment l'homme”.
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Uma fraternidade aberta para superar as crises - Instituto Humanitas Unisinos - IHU