05 Outubro 2024
O importante não é rejuvenescer ou consertar a Igreja, mas ser portadores da Boa Nova no coração do mundo, ser sal e luz. E é vivendo tudo isso juntos que o povo de crentes que somos oferecerá vida ao nosso mundo e, além disso, correrá o risco de oferecer uma face realmente renovada da Igreja no nosso tempo.
O artigo é de Jean-Luc Lecatin, publicado por Garrigues Et Sentiers, 03-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Toda uma série de expressões sugere que a Igreja está no centro de tudo o que os cristãos são chamados a viver, expressões como: “a Igreja precisa de todos para cumprir sua missão”, “devemos construir a Igreja de Cristo”, “é uma questão de entrar na fé da Igreja, devemos reparar a Igreja”, ou as palavras de Francisco dirigidas aos sacerdotes nos últimos dias: estamos em “tempos de purificação da Igreja”, “o Senhor está purificando sua Esposa, está soprando seu Espírito para restaurar a beleza de sua Esposa apanhada em flagrante adultério”... até aquele anúncio publicitário convidando as pessoas a doar, e que desencadeou minha indignação e minha reflexão: “Eu creio na Igreja, deixo em herança para a Igreja” (anúncio no La Croix no sábado e domingo, 29 e 30 de junho de 2019)!
A Igreja não é um ser, uma pessoa: é a multidão inumerável de crentes.
Jesus que habita em seu povo, essa é a Igreja, um modo de vida dos discípulos de Cristo à luz do Evangelho, que pode parecer estranho, utópico, diferente daquele do lucro, do dinheiro, do poder, do cada um por si; uma imagem da eternidade, talvez...
Sem os homens e as mulheres que a compõem, a Igreja não tem existência, não tem realidade própria.
Dizer: “a Igreja pensa assim”, “exige que”, “ordena que”, “proíbe que”, não faz sentido. A única coisa que pode ser dita é: “os crentes em Cristo reunidos naquele determinado lugar, naquele determinado tempo e em determinadas condições de existência, pensam que, dizem que...”.
Não há palavras definitivas, não há opções irreformáveis, há homens e mulheres crentes às voltas com as realidades da vida de hoje para construir o mundo de hoje. A Igreja não pode ser uma verdade na qual se deve acreditar, uma realidade intocável, uma quase pessoa. No entanto, ao longo da história, a Igreja tem se posto como um absoluto...
Jesus não fundou uma igreja. Foram seus discípulos que pensaram lhe serem fiéis assumindo o comando. Os homens usaram e abusaram do versículo “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. Certamente desejosos de fazer o bem, quiseram organizar, controlar, não se deixar dominar: usaram essas poucas palavras para se autorizarem a criar uma estrutura, uma organização, que se institucionalizou para governar a Boa Nova anunciada por Jesus...
As comunidades escolheram líderes e lhes concederam um poder sagrado, e pouco a pouco foi estabelecida uma hierarquia para governar a Igreja. Bispos, clérigos, teólogos, até mesmo autoridades civis, impuseram regras de funcionamento, afirmações ditas intangíveis, instituições que lhes pareciam apropriadas, e tudo isso foi chamado de Igreja, ao mesmo tempo, de forma inseparável e inextricável, assembleia de crentes e instituição. Aqui está o problema!
A Igreja se instalou em uma situação de permanente ambiguidade e dominação. Hierarquias, teólogos e religiosos sacralizaram essa igreja, sua organização, suas afirmações, suas decisões e seus mandamentos, mesmo lembrando, em sã consciência, que, é claro, a Igreja é todo o povo crente. Mas a Igreja se tornou, assim, um objeto de fé, de veneração e de dominação sagrada. Em vez de considerar todas as inovações e as formulações como exigências de um determinado tempo ou lugar, o poder hierárquico tendeu a somar, universalizar e tornar sagradas afirmações ditas irreformáveis, bem como as “invenções” de funcionamento e de organização. O poder hierárquico e teológico fixou o status quo, congelado no dogma e na tradição, em vez de ser capaz de relativizar, de questionar à luz dos tempos, dos progressos humanos e científicos, da crescente conscientização daqueles que são o próprio tecido da Igreja, os crentes que vivem sua fé em seu tempo.
Embora uma multidão de mulheres, homens e crianças da Igreja tenha dado uma contribuição infinitamente positiva para o mundo, devemos renunciar à ideia de uma Igreja que seja a dona do pensamento e da vida. A chamada Igreja instituição, em si só, nada mais é do que um instrumento. Não tem nenhuma autoridade sobre as pessoas. Tomá-la como referência à qual se submeter significaria transformá-la em um absoluto. Ela é simplesmente uma organização tão complexa que reformá-la parece um desafio insuperável. Mas “nada é impossível para Deus”!
Não é a Igreja instituição que tem a solução para os problemas que ela precisa enfrentar no século XXI, embora seja com a Igreja que devemos buscá-la. Cabe aos cristãos de hoje inventar uma maneira de viver Cristo e sua palavra no nosso tempo.
Diante dos grandes desafios que a instituição Igreja deve enfrentar atualmente, ligados ao poder, à sexualidade e ao dinheiro, não cabe à “máquina-Igreja” decretar do alto de sua hierarquia: “Agora temos de fazer isso, temos de reformar assim, temos de criar esta instituição, abolir aquela...”.
Cabe a todos nós, crentes em Jesus Cristo, leigos, clérigos e religiosos juntos, arregaçar as mangas e tomar novamente consciência de quem somos, de nossa responsabilidade em relação à Boa Nova. Cabe a todos nós nos pôr à obra, individualmente e com outros, para inventar maneiras, nos vinte anos deste século, para viver plenamente a palavra de Jesus neste mundo assim como ele é, com suas descobertas, suas ansiedades, suas riquezas, suas buscas e suas aspirações.
A renovação do espírito cristão, da vida cristã hoje, parece-me ser possível somente se aceitarmos em não nos concentrar na Igreja instituição, nas mudanças que precisam ser feitas, no rosto que precisa ser dado a ela. A instituição, com seus clérigos e teólogos, nada mais é do que um instrumento a serviço dos crentes; não cabe a ela decidir o que devemos fazer.
Cabe a todos nós, os batizados, sem qualquer distinção, mas escutando juntos o Espírito, encontrar soluções; cabe às nossas comunidades cristãs, com seus clérigos, se houverem, enfrentar os problemas e implementar soluções para os tempos em que vivemos e os lugares em que nos encontramos. Não cabe aos padres decidir ou comandar, sob pena da recaída imediata no clericalismo, mas cabe aos padres, em minha opinião, manter-nos unidos na riqueza de nossa diversidade, cuidar de cada um e de todos, permitir que nos mantenhamos de pé sozinhos, reconhecendo nossa liberdade de pensamento e de consciência, reunir-nos, confortar-nos e nutrir-nos nessa jornada de aventura a serviço de nossa terra!
O importante não é rejuvenescer ou consertar a Igreja, mas ser portadores da Boa Nova no coração do mundo, ser sal e luz. E é vivendo tudo isso juntos que o povo de crentes que somos oferecerá vida ao nosso mundo e, além disso, correrá o risco de oferecer uma face realmente renovada da Igreja no nosso tempo.
O objetivo é viver como crentes em Cristo e, como ele, ter uma paixão pelos seres humanos, mulheres e homens, neste mundo de hoje.
Vinho novo, odres novos!
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A Igreja: uma ambiguidade a ser superada. Artigo de Jean-Luc Lecatin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU