Eu sou o caminho, a verdade, a vida e o desejo. Artigo de Massimo Recalcati

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29 Agosto 2024

"No nome de Jesus há o segredo que o marca. Na língua hebraica, Yeshua significa, de fato, o Deus que salva. Sua palavra tem a força de um ímã irresistível, transporta, agita, erotiza, provoca o desejo, assemelha-se a um fogo sempre aceso, salva mostrando que a verdade não está toda escrita na Lei, mas espera para se tornar verdade a cada oportunidade, na dimensão encarnada do testemunho. São os atos realizados por Jesus que tornam a salvação possível nesta Terra", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 27-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Um fora de si, um falsário, um vigarista, um demônio chefiando outros demônios, um delirante, um narcisista, um falso profeta, um exaltado, um beberrão e glutão, um frequentador de prostitutas e ladrões, um malfeitor, um impostor. Esse é o retrato de Jesus que podemos traçar a partir do julgamento de seus inimigos: escribas, doutores da lei, sacerdotes do templo. Os homens religiosos não sabem, de fato, o que significa passar a vida inteira no amor, não sabem o que significa desejar e amar a vida.

Seu ressentimento os envenena, sua impotência os intoxica, sua tristeza os torna áridos. Eles não têm a possibilidade de pensar sobre o evento do impossível que irrompe e subverte a ordem já estabelecida da existência, reconstituindo-a como nova. Sua hipocrisia cínica não lhes permite ter fé no milagre do desejo. Em vez disso, ela os empenha em uma obra permanente de difamação e demolição daqueles que, em vez disso, encarnam o impossível que se torna possível. “O que há em um nome?”, perguntava-se Stephen Dedalus, um dos dois protagonistas do Ulysses, de James Joyce. No nome de Jesus há o segredo que o marca. Na língua hebraica, Yeshua significa, de fato, o Deus que salva. Sua palavra tem a força de um ímã irresistível, transporta, agita, erotiza, provoca o desejo, assemelha-se a um fogo sempre aceso, salva mostrando que a verdade não está toda escrita na Lei, mas espera para se tornar verdade a cada oportunidade, na dimensão encarnada do testemunho. São os atos realizados por Jesus que tornam a salvação possível nesta Terra.

Sem esse testemunho de cuidado por aqueles que estão no sofrimento e na tristeza, na pobreza e no abandono, na tribulação e no desespero, mas também por aqueles que estão mergulhados na hipocrisia e na ganância, na preservação obtusa de suas posses e na rejeição do amor, o destino que ele carrega em seu nome não se teria realizado. É por isso que seu primeiro e decisivo passo é ressignificar a relação entre a Lei e a vida. Se, de fato, a Lei tende a extirpar o desejo da vida, ela se torna murcha, se esvazia, endurece, fica sem coração, torna-se uma norma repressiva que não age mais a serviço da vida, mas a serviço da morte. Ao estabelecer uma nova aliança entre a vida do desejo e a Lei, Jesus não renega a Lei de Moisés, mas a herda plenamente, ou seja, como escreve Mateus, ele a leva ao seu pleno “cumprimento” (Mt 5,17).

Jesus é um judeu, sua pregação seria incompreensível se não considerássemos suas raízes judaicas e seu profundo conhecimento da Torá. É o movimento que empenha todo herdeiro digno desse nome. Freud nos lembra disso no final de sua obra, citando Goethe: “O que você herdou de seus pais, reconquiste-o, se realmente o quiser possuir”. A herança não é uma aquisição passiva de rendas, mas um salto no vazio, um movimento para frente, uma retomada, um salto em direção ao futuro. Para ser herdada em sua substância, a Lei deve ser reconquistada. Esse é o traço mais característico do magistério de Jesus: nenhum cancelamento da dívida simbólica, nenhuma rejeição de sua origem, nenhuma recusa da Lei. Não é por acaso que na Lei de Moisés o mandamento mais decisivo do Novo Testamento, o do “amor ao próximo”, já estava escrito (Lv 19,34). De fato, é justamente a partir da centralidade desse princípio que Jesus relê a Bíblia: ame o seu próximo, o estrangeiro, pois “vocês também foram estrangeiros no Egito” (Êx 23,9; Lv 19,34).

Mas o que significa então levar a cumprimento a Lei se a Lei Mosaica já era em si mesma exaustiva da verdade da Lei? A reconquista da herança dessa Lei acontece em Jesus por meio da afirmação inaudita da excedência da Lei do desejo. Essa é a tese central deste livro: a Lei não pode se limitar a interditar o desejo porque a verdadeira face da Lei coincide precisamente com a do desejo. É isso que empenha Jesus até o fim de seus dias: testemunhar que a Lei não é adversa ao desejo, não é sua antagonista implacável, não é sua censora severa, porque a Lei é, na realidade, o nome mais próprio do desejo, é o nome mais próprio da vida viva, da vida superabundante de vida.

É por isso que o desejo elevado à dignidade da Lei encontra sua expressão máxima na radicalização do amor ao próximo atuada por Jesus, que rompe toda representação narcisista-especular do amor para se tornar - em seu auge mais desconcertante - “amor ao inimigo”.

Ao formular a tese de que o magistério de Jesus introduz a ideia de que o desejo é Lei, estou evocando, na realidade, um grande tema freudiano, retomado com força por Lacan, cujas raízes estão no logos bíblico, ou seja, aquele da relação constitutiva entre Lei e desejo. O cumprimento cristão da Lei consiste em libertar a vida da Lei, não mais opondo a Lei à vida, mas inscrevendo a Lei no próprio coração da vida. A Lei é redescoberta como expressão de uma vocação que sabe como dar nova forma à vida, convertendo, como diria Lacan, a força da pulsão na ordem ética do desejo. Enquanto toda religião da Lei é inimiga do desejo - religião vem de religio, que significa encerrar, cercar o poder (dynamis) afirmativo do desejo -, a palavra de Jesus liberta o desejo de toda preocupação securitária. Nesse sentido, o evento da ressurreição assume o valor da força indestrutível da Lei do amor e do perdão, que devolve a vida à vida, removendo-a para sempre da maldição da morte.

Toda vez que essa nova Lei interrompe o exercício de fustigação da Lei, há, de fato, ressurreição: a morte não pode ser a última palavra sobre o sentido da vida, assim como a Lei do castigo e do sacrifício não pode ser a última palavra sobre o sentido da Lei.

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