23 Julho 2024
José Tolentino de Mendonça é conhecido em Roma como "o cardeal poeta" porque o Papa Francisco lhe disse "tu és poesia" no Colégio Cardinalício quando lhe concedeu o barrete vermelho. Isso ocorreu em 06-10-2019, quando ele trabalhava como arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana, cargo que ocupou de 2018 a 2022. Em 2022, o papa nomeou Tolentino como prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação.
A reportagem é de Gerard O’Connell, publicada por America Magazine, 17-07-2024.
Hoje, o cardeal português de 58 anos é amplamente reconhecido não apenas como poeta (ele representou Portugal no Dia Mundial da Poesia em 2014), mas também como um dos principais intelectuais da Cúria Romana. Sétimo membro mais jovem do Colégio Cardinalício, ele organizou dois eventos culturais significativos este ano envolvendo o Papa Francisco. O primeiro foi o encontro do papa com artistas em uma prisão feminina no Festival de Arte Contemporânea da Bienal de Veneza em 28 de abril; o segundo foi a reunião com alguns dos comediantes mais famosos do mundo na Sala Clementina em 14 de junho.
Para saber mais sobre este poeta, teólogo e intelectual, sentei-me com ele - comumente referido por um de seus nomes batismais, Tolentino - em 10 de julho para uma entrevista de uma hora no dicastério que ele lidera, com uma vista deslumbrante da Basílica de São Pedro. A entrevista está dividida em duas partes. A Parte I enfoca sua vida inicial em Angola, sua entrada no seminário e sua estreia como poeta adolescente em um dos principais jornais portugueses, além de sua experiência como professor em universidades católicas no Brasil. A Parte II aborda sua relação com o Papa, a vida na Cúria Romana, os principais desafios enfrentados pela Igreja hoje e sua visão sobre o Sínodo sobre a Sinodalidade.
O Cardeal Tolentino nasceu na ilha da Madeira, em Portugal, no dia 15-12-1965, para ser o caçula de cinco filhos. Quando tinha 1 ano de idade sua família se mudou para Angola, então uma colônia portuguesa. "Passei minha infância lá, o que certamente marcou minha vida", disse ele. "Isso ajudou a formar minha alma, minha perspectiva. Não apenas porque o segredo de um homem é o que ele vive na infância, mas também porque a África nos permite uma experiência do mundo com amplitude, originalidade, com um sentido intacto e ainda primordial do mundo, já que ela nos faz sentir como os primeiros humanos, os primeiros habitantes da terra".
Lá, ele experimentou em seu coração espaços sem fronteiras, descobrindo que "o espaço e o nosso modo de viver não têm fronteiras". Ele lembrou: "Os espaços eram enormes, tanto os espaços de convívio quanto a paisagem, e isso formou em mim uma disposição para a contemplação, para a atenção à realidade". Ele experimentou "um mundo encantado, não este mundo desencantado da modernidade, mas um mundo anterior à modernidade, e isso me marcou muito depois".
"Cresci em uma família grande, uma família estendida que incluía tias, primos, como típicas grandes famílias portuguesas que realmente gostam de viver juntas", lembrou o cardeal. "Então, passei minha infância não apenas em minha casa, mas na casa de minha tia, e não havia diferença entre nossa mesa e a mesa de outros parentes. Então havia realmente uma ideia de comunidade que esteve comigo desde que me lembro, e a alegria de estar juntos".
Seus colegas de escola e nas aulas de catequese "eram africanos, e sempre tive uma boa relação com eles porque as crianças derrubam barreiras; para mim, não havia diferença entre um amigo africano negro e eu". Foi apenas mais tarde, ele disse, "que refleti sobre a experiência colonial. E recentemente, visitando Angola novamente, percebi o quanto o sistema colonial, que também era um sistema racista, bloqueia a realidade e não permite que a fraternidade flua de maneira correta. Hoje, olhando para trás em minha história, leio alguns episódios como episódios de racismo. Não havia igualdade de oportunidades para todos, mas esse era o sistema colonial que, graças a Deus, agora foi superado".
Os portugueses se retiraram de Angola em novembro de 1975 sem entregar formalmente o poder a nenhum dos movimentos de independência, e muitos europeus que viviam lá, incluindo a família do cardeal, fugiram do país. O cardeal, que tinha 9 anos na época, lembra isso como "um momento dramático. Centenas de milhares foram retirados de Angola em um esforço aéreo e marítimo para retornar a Portugal praticamente sem nada para reconstruir suas vidas. Para meus pais, como para todos os pais daquela geração, foi um desafio dramático porque, com seus cinco filhos, tiveram que encontrar empregos, encontrar casas, reconstruir sua vida, reconstruir tudo".
"Essa experiência nos uniu muito", disse ele. "Isso me ajudou muito a entender o valor da família porque nessas horas não tínhamos mais nada, exceto a família. E aos poucos, com amor e mantendo-nos unidos, seguimos em frente".
"Tão dramático quanto foi aquele momento de descolonização", disse ele, "me deu um grande senso da beleza da família como um lugar de segurança e da construção comum de nossa humanidade, e ver como os pais preservam a alegria de seus filhos". Ele disse que viveu esse êxodo de Angola "não como um trauma, mas como uma abertura para novos mundos".
Ele lembrou a reentrada em Portugal, na ilha da Madeira, como algo "muito agradável" por causa da influência de sua avó materna, que morava com eles em Angola. "Embora fosse uma mulher analfabeta", explicou o cardeal, "ela nos introduziu, a todos os seus netos, ao cancioneiro oral, contando-nos as histórias, os poemas de Portugal, e assim quando voltamos à Madeira, era como voltar ao ambiente daquelas histórias que costumávamos ouvir dela na África".
Refletindo sobre sua experiência na África, o religioso português diz: "Diria que o contato com a África sempre nos deixa três coisas. A primeira é o 'mal d'África', ou nostalgia. Sempre queremos voltar, vem de uma paixão por aquelas pessoas, sua espontaneidade e a alta qualidade humana que os africanos culturalmente têm".
"Segundo", continuou ele, "a juventude da África; onde quer que olhemos, vemos crianças, jovens. É verdadeiramente um continente onde a juventude explodiu e isso é uma esperança, mas também um enorme desafio. Em termos de educação, por exemplo, como oferecer propostas educacionais, como realmente promover essas gerações e não condená-las a um futuro incerto, à migração".
"O terceiro aspecto é a necessidade premente de um quadro de pensamento internacional que tenha respeito pela justa independência de cada país, de cada povo, que possa ajudar a África porque lá o nível de pobreza e desigualdade social é massivo. Os países ocidentais têm uma responsabilidade histórica aqui; isso também é um desafio para eles, pensar em formas alternativas de construir uma justiça social real".
Tolentino se regozija que o Dicastério para a Cultura e Educação possa ajudar a África investindo e fortalecendo sua rede universitária, que ele vê como "um recurso de esperança tanto para a Igreja quanto para a sociedade na África".
Ele observou que o continente também possui comunidades artísticas "com uma vitalidade incrível em todas as disciplinas do ponto de vista cultural. Elas podem oferecer testemunhos, experiências que podem ser muito esclarecedoras". Ele imagina "a crescente inclusão de artistas e teólogos africanos em nossos comitês [do dicastério]" e disse que viu de perto "o entusiasmo da teologia africana".
Refletindo sobre o papel da Igreja Católica na África, o Cardeal disse: "A Igreja lá realmente antecipou o que as nações europeias entenderam apenas mais tarde... por exemplo, ao confiar episcopados inteiros a padres nativos como no caso de Angola ou ao promover a vida das comunidades locais na África". Ele lembrou que quando o Papa Paulo VI recebeu os líderes dos movimentos de independência das antigas colônias portuguesas no Vaticano em 1970, isso foi visto com hostilidade pelo governo autoritário de António de Oliveira Salazar.
"Isso significa que a Igreja teve um papel profético", disse o cardeal, "e acho que continua a tê-lo hoje porque não podemos pensar no futuro sem a África, embora os níveis de desenvolvimento não pareçam estar no nível dos países do chamado Primeiro Mundo. No entanto, eles têm recursos antropológicos, recursos futuros, além dos nossos próprios. Promover o diálogo, a colaboração, a integração da África em tudo o que fazemos e pensamos é tão importante".
Em 1976, um ano após retornar a Portugal, Tolentino entrou no seminário menor em Funchal "com 10 ou 11 anos". Hoje, no entanto, o cardeal não "recomenda tanto" uma entrada tão precoce no seminário. "Acho que o discernimento vocacional deveria ser feito de forma mais integrada nas famílias em uma idade mais avançada. Mas esses eram os tempos, os paradigmas em que eu cresci".
Olhando para trás, ele lembrou que o seminário abriu um mundo completamente novo para ele. "Porque tinha duas bibliotecas enormes, me deu a oportunidade de ser um leitor, um leitor onívoro, como adolescente que apropria o mundo através de livros e cultura", disse ele.
No seminário, ele disse, "comecei a escrever, como muitos adolescentes fazem". Ele observou: "Acho que todo adolescente no mundo escreveu nessa idade um poema ou tentou. Mas no caso dos poetas, é algo que se torna cada vez mais sério e se torna uma questão de vida, e não apenas uma antena para interceptar o mundo. Também se torna uma linguagem, decisiva para a expressão vivida de nossa visão de mundo".
Ele lembrou que naquela época "os grandes jornais tinham um suplemento literário onde jovens poetas e escritores estreavam. Como seminarista, também estreei em um jornal nacional, o Diário de Notícias, onde começou minha geração de escritores".
Ele reconheceu que "foi um pouco estranho porque alguém que está no seminário parece um pouco fora do mundo". Mas, ele disse, "talvez a literatura me tenha chamado para o mundo, e isso também marcou parte da minha história pessoal. Senti um desejo muito grande de dialogar com [o mundo de] meu tempo".
"Sempre tive uma paixão pelo diálogo com o mundo", disse o cardeal. "Como padre, trabalhei durante 20 anos em uma universidade e isso me abriu para um mundo muito, muito diferente, interdisciplinar".
Perguntado por que ou como começou a escrever poesia, respondeu que era difícil dizer. "Ninguém sabe como a poesia começou", disse ele. E prosseguiu:
"Dizem que está relacionada ao culto aos mortos. Dizem que está relacionada à canção de ninar das mães. Dizem que é a linguagem da infância. Dizem que é uma forma muito sofisticada de linguagem. Não se sabe historicamente como a poesia começou como arte, como forma de conhecimento. Mesmo na vida de uma pessoa você não sabe, não sabe como um poeta é feito. Certamente, há condições de vida, sensibilidade e cultura que levam a um certo tipo de relacionamento com a linguagem e fazem da linguagem uma forma de atenção, de hospitalidade, de experiência humana, de reflexão sobre si mesmo."
Tolentino iniciou seus estudos para o sacerdócio em 1982 na Universidade Católica de Portugal, em Lisboa, e obteve uma licenciatura em Teologia em 1989. Em 1990, foi ordenado padre e enviado a Roma para obter uma licenciatura em estudos bíblicos no Instituto Bíblico Pontifício, que concluiu em 1992.
Ele morou por um ano em Nova York (2011-2012), envolvendo-se em pesquisas pós-doutorais sobre religião e razão pública no Instituto Straus para o Estudo Avançado da Lei e da Justiça da Universidade de Nova York. Descreveu Nova York como "uma das cidades mais belas e diversas do mundo". De fato, ele disse que para aqueles que amam cultura "é como ir às cidades antigas; Nova York é um grande marco".
Ele se regozijou que enquanto morava lá, "pude seguir os passos de Dorothy Day" e entender "um cristianismo social em Nova York que está mais próximo da tradição da Doutrina Social da Igreja do que do poder cultural apenas". Ao mesmo tempo, ele disse, "também fui muito tocado pela solidão que se pode sentir ao caminhar pelas ruas da cidade".
Após retornar de Nova York, ele virou vice-reitor da Universidade Católica de Portugal em 2012 e ocupou esse cargo até mudar-se para o Vaticano em 2018. Ele foi diretor do Centro de Estudos de Religiões e Culturas da universidade de 2012 a 2017, período durante o qual ocupou múltiplas cátedras visitantes em duas instituições jesuítas de ensino superior no Brasil.
De sua longa experiência como professor, ele disse que sabe que "os estudantes são sempre magníficos porque estão em uma fase de abertura, de curiosidade". Mas ele ficou especialmente impressionado com a qualidade e "liberdade de associação na leitura" dos estudantes no Brasil. Por exemplo, ele disse que "eles pegavam um filósofo contemporâneo junto com um Pai da Igreja e faziam isso com naturalidade, o que não é comum na Europa.... Eles juntavam tudo com criatividade e profundidade que me surpreendiam e fascinavam".
Ele também está impressionado com os bispos latino-americanos e como trabalharam juntos na conferência episcopal da América Latina e do Caribe, "apesar de terem duas línguas diferentes e culturas e histórias muito diferentes, eles produziram algo juntos que é realmente admirável e dá um exemplo para os outros continentes".
O Cardeal Tolentino destacou especialmente o que os bispos alcançaram em sua assembleia em Aparecida/SP, em 2007, "onde o Cardeal Bergoglio desempenhou um papel muito importante". Ele saudou Aparecida como "um momento-chave na Igreja contemporânea" e disse que, de certa forma, "só poderia acontecer na América Latina porque os episcopados fizeram uma jornada juntos, também em suas diferenças, uma jornada verdadeiramente conjunta da Igreja. E isso é o que mais admiro".
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Conheça o poeta do Papa Francisco no Vaticano: Cardeal José Tolentino de Mendonça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU