08 Julho 2024
A também primatóloga explora em seu último livro a evolução da paternidade e sua relação com uma masculinidade tóxica que “leva à destruição”: “O fato de que os homens manifestem seus sentimentos através do cuidado lhes faz muito bem e não deveria ser uma ofensa, mas o é para muitos”.
A entrevista é de Sergio Ferrer, publicada por El Diario, 01-07-2024. A tradução é do Cepat.
O ser humano é um animal muito raro em termos de sexo e reprodução quando comparado a outros primatas e mamíferos. Na lista de excentricidades está o fato de que os machos do Homo sapiens cuidam cada vez mais de seus filhotes. Sarah Blaffer Hrdy (Estados Unidos, 1946) é uma antropóloga e primatóloga conhecida por seus livros sobre a evolução das mulheres, das mães e dos cuidados compartilhados. Em seu último livro Father Time: A natural History of Men and Babies (que, no próximo ano, será publicado em espanhol pela Captain Swing) ela se concentra nos homens para quebrar preconceitos biológicos e sociais sobre o papel que desempenham na criação dos filhos.
A tese de Blaffer Hrdy resume-se no fato de que as duras condições de vida dos nossos antepassados forçaram todo o grupo a se dedicar aos cuidados, inclusive os homens. Mais tarde, o aparecimento dos Estados e do patriarcado dividiu os papéis de gênero e, com eles, o cuidado. Somente os avanços da modernidade (do feminismo à mamadeira) trouxeram à tona algumas características de nossa espécie que estavam escondidas há muito tempo. Sua conclusão pode não parecer surpreendente hoje: nada em nossa biologia impede que os homens sejam capazes de cuidar dos pequenos tão bem quanto suas companheiras.
Nota: a língua inglesa permite fazer uma diferenciação entre fathers e parents, mas ambas as palavras são traduzidas para o espanhol [e o português] como “pais”. Para maior clareza, nesta entrevista o termo “pais” referir-se-á sempre ao plural de “pai”, salvo indicação em contrário para esclarecer que também inclui as mães.
São os mamíferos e primatas “bons” pais?
Cinco porcento dos mamíferos são bons pais, mas a maioria não é. Em relação aos símios, somos grandes exceções: alguns macacos como os saguis, micos e lêmures têm muito cuidado paterno, mas isso não é visto em nenhum dos grandes símios dos quais fazemos parte. Chimpanzés, bonobos, orangotangos e gorilas são parentes muito próximos e os machos não se importam com filhotes pequenos.
Há casos, como o de um chimpanzé macho adulto num zoológico que adotou um órfão que estava quase prestes a desmamar, mas são exceções. Acontece que os circuitos neuronais existem, as inclinações existem, mas as condições para que despertem são muito raras. Na natureza, não creio que um chimpanzé macho teria acesso ao bebê de uma mãe, porque são muito protetoras com seus recém-nascidos.
Como surgiu uma exceção como a nossa?
Tudo começou com a evolução dos mamíferos, porque a fertilização interna significa que os machos não podem ter certeza da sua paternidade. Os primatas ainda menos: desde que existe o infanticídio, as fêmeas acasalam com muitos machos para manipular as informações sobre a paternidade. Assim, a evolução selecionou os machos de primatas para ficarem perto das fêmeas após o acasalamento, algo incomum para os mamíferos. Não era para cuidar dos pequenos, mas para protegê-los de serem mortos por outro macho e para salvaguardar o seu acesso à fêmea. A partir daí tem a ver com o tempo e a proximidade íntima que passam com os bebês desde o nascimento, e que parece ativar antigos potenciais [do cérebro orientado para o cuidado paterno].
Tudo começou antes da nossa espécie?
Existem circuitos neuronais e moléculas, ancestrais da ocitocina e da prolactina, por exemplo, que já estavam presentes nos peixes. O hormônio da lactação já existia nos peixes muito antes da evolução dos mamíferos, há mais de 400 milhões de anos. Temos esses genes dentro de nós, fósseis herdados de nossos ancestrais vertebrados. O cuidado parental em peixes nem sempre existe, mas quando existe é sempre masculino. São os machos que protegem o ninho, os ovos e os filhotes, e os circuitos para isso parecem ser persistentes. A mãe natureza, minha metáfora pessoal para a seleção natural, é muito econômica. Guarda esses ingredientes na despensa e se precisar deles depois vai lá pegá-los. Se existirem condições que afetem o sucesso reprodutivo e a sobrevivência, essas características serão favorecidas pela evolução.
A ‘mãe natureza’ tinha os ingredientes. Por que os nossos antepassados humanos tinham necessidade deles?
Nossa espécie tem uma maturação muito lenta, com crias muito caras que demoram muito para se defenderem sozinhas. Não teríamos sobrevivido no Pleistoceno se as mães não tivessem tido muita ajuda. Antes, presumia-se que isso vinha do pai, a hipótese do homem caçador. O problema é que os etnólogos que trabalharam com pessoas como os hadza demonstraram que um pai sozinho não pode fornecer carne suficiente para manter vivos um bebê e a mãe. Tinha que haver partilha e mais de um homem caçando.
A maior parte das calorias provavelmente veio de alimentos vegetais coletados pelas mulheres. Necessitava-se de uma grande variedade de alomães [membros do grupo que não são a mãe e que podem ser homens ou mulheres] além das mães, e os pais ajudavam quando estavam presentes. Essa criação com os outros era essencial. Hoje, muitos filhos de caçadores-coletores crescem em comunidades onde seus pais não estão presentes e são alimentados da mesma forma que todos os outros.
A criação humana não é tarefa nem de um nem de dois?
Em Mothers and Others [2009] apresentei a ideia de que os seres humanos eram criadores cooperativos, porque as mães deviam ter tido ajuda para manter os seus bebês vivos. Eu era conservadora e disse que tudo começou no Pleistoceno, com o Homo erectus. Há cerca de 1,8 milhão de anos, começávamos a desmamar os bebês mais cedo e as mães tornavam-se muito mais dependentes dos outros, mas na realidade todos dependiam mais dos outros. Partilhar a comida foi uma mudança radical na evolução humana junto com a linguagem.
Já escrevi muito sobre quanto apoio as mães precisam, porque é muito difícil para uma mulher cuidar de um bebê completamente sozinha, mas acho que não ressaltei o suficiente quanto apoio os pais precisam. Até eles precisam de muita ajuda, e também de um aval social. Ninguém deveria ter de cuidar de um bebê sozinho 24 horas por dia.
A necessidade da criação cooperativa fez com que todos nós evoluíssemos para sermos cuidadores?
Penso que a maioria dos humanos, talvez todos, tem um substrato aloparental no cérebro que nos torna receptivos aos bebês. Os homens que estão em proximidade íntima e prolongada atingem um ponto crítico que estimula essas áreas cerebrais antigas.
No livro especulo que a decisão de cuidar – ou não – é tomada no córtex pré-frontal do cérebro do homem. É uma porção muito nova que evoluiu na última metade do Pleistoceno, quando começou o cuidado cooperativo. Acho que o córtex pré-frontal e a criação cooperativa evoluíram juntos.
No entanto, um estudo de 2014 sobre casais de homens homossexuais que cuidavam de bebês desde o nascimento, sem nenhuma mulher envolvida, revelou que o que estava acontecendo nos seus cérebros não ocorria apenas no córtex frontal: também envolvia áreas cerebrais muito antigas, profundamente envolvidas no cuidado materno, como o sistema límbico, o hipotálamo e as amígdalas.
No livro, você argumenta que mudanças socioculturais, como o patriarcado, distanciaram os homens e os bebês porque os Estados precisavam de soldados e mães. O feminismo moderno contribuiu para trazer à tona a nossa biologia oculta?
As mães sempre trabalharam, mas antes não recebiam uma remuneração significativa, mas à medida que o mundo mudou e elas começaram a contribuir significativamente para a economia familiar, os homens reconheceram que precisavam dos seus rendimentos. Queriam ajudar mais, as ideologias estavam mudando, as rígidas normas de gênero estavam afrouxando e os homens podiam expressar sentimentos de cuidado para com os outros com um pouco mais de facilidade, sem serem desprezados.
A sociedade estava mudando de uma forma que possibilitava aos homens passar mais tempo perto das crianças, uma coisa às vezes até necessária. Quando os homens passam mais tempo próximos e cuidando dos bebês, este potencial ancestral que não tinha sido expresso ao longo da evolução, mas que agora está sendo exposto pela primeira vez em centenas de milhões de anos, é despertado e ativado. É algo que me impressiona.
Os desenvolvimentos tecnológicos também contribuíram, juntamente com as mudanças históricas, ideológicas, socioeconômicas e educacionais, para os direitos e a influência das mulheres. O leite já foi essencial para a sobrevivência, mas isso mudou com as mamadeiras com bicos de borracha e as melhorias na fórmula do leite. Além disso, temos extratores [de leite], então não há mais necessidade de ter a mãe por perto.
No entanto, não sei se isso acontece na Espanha, mas está certamente acontecendo no meu país: há um enorme retrocesso em relação aos direitos das mulheres, especialmente contra os direitos reprodutivos. E devo dizer que esta história termina quando as mulheres perdem a autonomia reprodutiva.
O que você quer dizer com “esta história termina”?
Se as mulheres já não conseguem controlar quando dão à luz, pensa no quanto isso afeta o seu acesso à educação, o seu desenvolvimento profissional e a sua capacidade de trabalhar fora de casa. De repente, uma mulher que quer sustentar a sua família só pode fazê-lo, mais uma vez, com o apoio masculino, porque ela sozinha não pode fazê-lo. [Controlar quando dão à luz] foi uma grande mudança, e se houver uma guerra toda a ênfase recai sobre a necessidade de guerreiros do sexo masculino para proteger o povo. Temos uma congressista nos Estados Unidos que diz que precisamos de mais masculinidade tóxica, e não menos, porque precisamos de guerreiros ferozes.
Vemos essa busca masculina por status, de querer ser dominante, o macho alfa, nos homens. Trump, Putin e Netanyahu preocupam-se com o seu status e com a possibilidade de permanecerem fora da prisão. Eles têm impulsos sexualmente selecionados descontrolados. É uma masculinidade nostálgica.
Como lutar contra esses impulsos que também têm um fundo biológico?
Somos humanos, passamos por períodos em que éramos muito dependentes dos outros e nos preocupávamos com a nossa reputação: é aqui que entra em jogo a seleção social, à qual estranhamente os humanos são suscetíveis porque se preocupam com o que os outros pensam deles. Esta é uma proteção contra os impulsos sexualmente selecionados desenfreados, que podem levar à destruição do seu grupo.
No livro menciono uma espécie de macaco em que a cada 27 meses entra um novo macho, expulsa o morador e mata todos os bebês. Se isso acontecer com frequência suficiente, esses grupos desaparecem. Se um destes líderes, desesperado por status acima de tudo, iniciar uma guerra nuclear ou não se importar com as mudanças climáticas, isso poderá levar à destruição da sua própria posteridade. Se a seleção sexual estiver no comando, tudo o que importa é o seu status pessoal. Precisamos que as pessoas se preocupem com o mundo que oferecerão aos seus herdeiros.
É por isso que você diz no livro que as crianças estão em melhor situação em sociedades onde as mulheres têm mais poder?
Se tivermos sociedades em que os homens estão mais envolvidos com as crianças, eles também se preocupam, mudam as suas prioridades, tornam-se mais maternais. Não creio que os homens sejam o problema; o problema é a seleção sexual irrestrita. Os homens têm dentro de si o potencial para cuidar, só precisa ser exercitado. Isto cria “ambientes mais agradáveis”, um termo para peixes, aves e espécies em que as fêmeas selecionam os parceiros com base na sua utilidade para a prole, resultando numa maior sobrevivência da prole.
Os bonobos machos também brigam, mas nunca matam ninguém e não existe infanticídio, são muito menos agressivos e violentos. Os chimpanzés às vezes tentam eliminar o grupo vizinho, e algumas sociedades humanas também o fazem e estão fazendo isso neste exato momento.
Que conselho daria a um futuro pai?
Ah, o meu principal conselho seria para os legisladores: precisamos de uma licença parental mais longa, horários de trabalho mais flexíveis e mais apoio, tanto para as mães como para os pais e para aqueles que os ajudam. O velho debate sobre se é melhor o cuidado em creche ou o maternal estava muito errado, porque sempre evoluímos como uma espécie com cuidado maternal, o que faz com que nossos filhos sejam mais empáticos e mais capazes de se comunicar. Há muitas evidências de que o bom cuidado prestado por outras pessoas é altamente benéfico para o desenvolvimento infantil.
Em vez do velho debate, hoje a questão é simplesmente pagar por essas coisas e fazer com que os governos reconheçam que isso é benéfico. Relatórios de empresas de consultoria mostram que seus resultados melhoram se seus funcionários estiverem mais satisfeitos com a vida familiar e com o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Um estudo da Harvard Business School diz que mesmo os homens muito ricos querem passar mais tempo com as suas famílias. É uma coisa geracional e é incrível a rapidez com que as coisas mudaram ao longo da minha vida. Mudaram não apenas as oportunidades das mulheres, mas também as dos homens.
Um dos estudos mais famosos que você cita no livro é aquele que mostra que os níveis de testosterona caem com a paternidade. Esses estudos são comunicados de forma excessivamente negativa, com certo sarcasmo?
Um estudo longitudinal muito bem realizado analisou os mesmos homens desde o nascimento, durante a infância, durante a puberdade, antes do casamento, depois do casamento e depois de ter um filho. Foi quando a testosterona caiu. Na sociedade ocidental há tanta ênfase na genitália masculina... às vezes os homens comparam seus órgãos genitais. Portanto, a ideia de que a testosterona diminui depois que os homens passam muito tempo com os bebês, embora não permaneça sempre baixa mas depois suba, incomoda alguns homens. Isto tem a ver com as nossas definições de masculinidade: se a definimos como ser uma pessoa boa e amorosa, o problema desaparece.
A masculinidade também precisa ser redefinida?
Nossas definições de masculinidade, de que os homens devem ser fortes e emocionalmente seguros e dominantes e nunca podem mostrar fraqueza, prestam um péssimo serviço aos homens. Quando olhamos para os dados nos EUA sobre as “mortes por desespero”, overdoses e suicídio, três em cada cinco são homens. Muitos homens de meia-idade estão tão zangados e magoados que sentem que perderam o seu propósito. Tinham a ideia de que deviam ser o provedor da família, o que nunca foi possível: não foi assim no Pleistoceno e não é hoje. Não é possível que um estilo de vida de classe média possa ser sustentado por um único homem, mas sentem que fracassaram e que uma mulher tomou o seu emprego.
O fato de que os homens manifestem seus sentimentos por meio do cuidado e terem uma nova fonte de satisfação e propósito em suas vidas lhes faz muito bem. Não deveria ser uma fonte de queixa, mas é para muitos e tem a ver com as nossas definições muito tendenciosas e unilaterais de masculinidade.
No livro você menciona o conceito de “paternidade múltipla” que algumas culturas possuem, em que alguns homens consideram como seus filhos aqueles que sabem que não são seus filhos. Estamos muito obcecados com genes?
Não creio que isso [a obsessão pelos genes] tenha servido para alguma coisa. Foram encontradas dezenas de tribos na América do Sul com essas crenças, depois se viu a mesma coisa na África Central. É muito mais comum do que se pensava, e há muitas razões para isso, como quando os recursos são escassos e a mãe precisa de mais ajuda.
Também reduz a tensão dentro do grupo, não que o ciúme sexual desapareça, mas o modera: se algo acontecer comigo, meus filhos serão mais bem cuidados. A essa altura [os pais não biológicos] já passaram algum tempo com esses bebês e passaram a amá-los. Há 11 milhões de crianças nos Estados Unidos vivendo como enteadas e muitas estão bem. Um estudo realizado na Alemanha mostrou que alguns padrastos que passam muito tempo com estas crianças investem nelas quase tanto como o pai [biológico].
Como será o pai do futuro? Aonde essa evolução nos levará?
É muito difícil e não há provas de que isso vá acontecer, mas poderíamos evoluir para cuidados masculinos obrigatórios se o fizéssemos o suficiente e isso afetasse a sobrevivência infantil. Dependerá de onde os homens veem o seu interesse próprio alinhado, mas não creio que tenhamos esse tempo. Vejo ameaças como as mudanças climáticas. Se houver uma guerra, todas as apostas na criação dos filhos serão canceladas. E quem se importará? Já estamos numa crise de cuidados, é óbvio que não há cuidados suficientes e há muitas crianças abandonadas no mundo. E haverá ainda mais. Se, porventura, as guerras na Ucrânia e em Gaza acabarem, haverá muitos órfãos.
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“Nossas definições de masculinidade fazem os homens sentirem que fracassaram”. Entrevista com Sarah Blaffer Hrdy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU