"O dogma da Imaculada só tem sentido na perspectiva do olhar da Graça de Deus que atuou em Maria e atua em nós. Maria cresceu na fé. Nós também somos chamados a fazer o mesmo", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze.
O texto sobre o qual vamos refletir é Gn 3,9-15.20. Ele faz parte do mito de Gn 2,4b—3,24, o qual reflete sobre a condição humana no paraíso e fora dele. Que relação existe entre essa passagem e o dogma da Imaculada Conceição? Entre a serpente, a Eva e Maria? Quem iria esmagar a cabeça da serpente: Eva, Maria ou a sua descendência?
A celebração da Imaculada Conceição nos recorda a importância de Maria para a fé cristã. Trata-se de um dogma, isto é, uma orientação de fé que a Igreja Católica nos propõe, depois de ouvir a tradição. Dogma é um caminho de fé! Qual é o real sentido do dogma da Imaculada Conceição? Qual a relação desse dogma com o bicho da goiaba e o vírus do computador? Boas metáforas para entender esse dogma de fé. Vejamos!
Desde os primeiros séculos do cristianismo, encontramos uma relação estreita entre Eva e Maria, bem como um apreço muito grande por Maria, ainda que ela não tenha morrido como mártir, mas por ser a “Mãe de Deus”
Desde o séc. VIII, na Igreja do Oriente, era celebrada a festa da concepção de Maria, no dia 9 de dezembro. Aos poucos essa tradição se espalhou pela Europa, mas foi somente em 8 de dezembro de 1854, que o Papa Pio IX declarou, por meio da Bula Ineffabilis Deus, o dogma da Imaculada Conceição, que diz: “Declaramos, confirmamos e definimos a doutrina, revelada por Deus, que a Bem-aventurada Virgem Maria foi preservada e imune de toda mancha do pecado original, desde o primeiro instante da sua concepção, por graça particular e privilégio de Deus Todo-Poderoso, pelos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano”.
Pio IX fez essa declaração de fé, depois de, em 1852, consultar teólogos e bispos do mundo sobre os critérios para estabelecer o dogma. Para Santo Agostinho, ao interpretar Gênesis, Maria foi purificada do pecado original.
Na Idade Média, quando a devoção a Maria voltou a ficar forte, sobretudo por causa do medo de morrer e ir para o Inferno, surgem ordens religiosas de devoção mariana. Dentre elas, houve uma batalha teológica entre os dominicanos e os franciscanos, os quais foram classificados de maculistas e imaculistas. Para os dominicanos maculistas, a purificação de Maria aconteceu durante a sua gestação. Para os franciscanos, defendida pelo escocês e frade Dans Scot ou Scotus (1266-1308), um dos brilhantes filósofos e teólogos da Idade Média, Maria foi liberta do pecado original no momento da sua concepção. Para ele, a graça de Cristo atuou de forma preventiva em Maria! Na famosa disputa com os dominicanos, na Universidade de Paris, Dans Scotus venceu a polêmica.
Era o ano de 1308. Dessa data até a proclamação do dogma, longos séculos se passaram. Para Martinho Lutero, o frade beneditino que mudou os rumos da Igreja Católica, a salvação só vem pela fé. O ser humano está marcado pelo mal. O Concílio de Trento (1547) contrapôs Lutero, ao afirmar que o pecado nos leva a fazer o mal.
Frei Humberto Randag, um frade franciscano holandês e artista, pintou, em 1945, no Santuário Santo Antônio, em Divinópolis (MG), a imagem da Imaculada de modo muito sugestivo. Ele pintou o menino Jesus com uma lança na mão, a qual transpassa o ventre de Maria e mata a serpente. O que isso quer dizer? Que a imagem é mais cristológica que mariológica. O que nasce do ventre de Maria, Jesus, é que vai vencer o mal. A espada que transpassa o lado de Jesus na cruz (Jo 19,34) também vence o mal, já no nascimento do menino Jesus. A Imaculada acolhe Deus no seu ventre e oferece o apoio na luta contra o mal.
Na elaboração do dogma da Imaculada, a Igreja usou a tradução equivocada de São Jerônimo de Gn 3,9-15.20, onde diz que a descendência da mulher iria pisar sobre a cabeça da serpente. Ele traduziu do hebraico para o latim que a mulher iria pisar sobre a serpente. Além disso, o Adão e a Eva, quando da elaboração desse dogma, eram considerados personagens históricos, reais. Hoje, não mais. Portanto, Gn 3,9-15.20 não é base bíblica para o dogma da Imaculada.
O dogma da Imaculada só tem sentido na perspectiva do olhar da Graça de Deus que atuou em Maria e atua em nós. Maria cresceu na fé. Nós também somos chamados a fazer o mesmo. Maria nasceu com a Graça de Deus, viveu a fé e recebeu no seu seio, por obra e graça de Deus, Jesus Cristo, o Verbo encarnado. Tudo isso ocorreu por causa do dom de Deus que agiu nela.
Voltando à imagem da goiaba com bicho e o computador sem vírus para entender o dogma da Imaculada, imagine que todas as goiabas nunca deveriam ter bichos e que o computador jamais teria um vírus sequer. [1]
Isso é impossível! Goiabas sem bicho e computador sem vírus somos todos no ato criador de Deus. No entanto, no decorrer da vida, vamos adquirindo os vícios, as maldades que nos afastam de Deus, de sua Graça.
Maria foi a humana que deixou a Graça de Deus agir nela. Isso é o sentido do dogma da Imaculada, a esperança que alimenta a nossa fé. Que Maria continue sendo o farol que nos aponta o bom caminho para superar a força negativa que habita em nós. Amém!
[1] MURAD, Afonso. Maria toda de Deus e tão humana: compêndio de Mariologia. São Paulo: Paulinas/Santuário, 2014, p. 175-176.