27 Setembro 2023
"É muito cômodo usar da condenação das mulheres como arma para defender a vida de um provável devir de ser humano. E é também mais cômodo atribuir a Deus as suas decisões rígidas sem abrir as portas do coração à compaixão necessária à sobrevivência humana e do planeta", escreve Ivone Gebara, religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, filósofa e teóloga, que lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER e que dedicou-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso.
Escrevem os bispos católicos brasileiros a respeito da ADPF ou Arguição de Descumprimento do Preceito Fundamental e da posição da ministra Sra. Rosa Weber que foi a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
“Jamais aceitaremos quaisquer iniciativas que pretendam apoiar e promover o aborto”.
“Jamais um direito pode ser exigido às custas de outro ser humano, mesmo estando apenas em formação”.
“Se até hoje o aborto não foi aprovado como querem os autores da ADPF não é por omissão do Parlamento, senão por absoluta ausência de interesse do povo brasileiro, de quem todo poder emana, conforme o parágrafo único do artigo primeiro da Constituição Federal”. (Cf. Nota da CNBB – Vida: direito inviolável - 14 de setembro 2023)
Atrevo-me a comentar em grandes linhas esse texto que me moveu as entranhas de tristeza e espanto frente a ‘insustentável leveza” de seus argumentos. Um pensamento tão categórico e tão cheio de argumentações conclusivas e limitadas como esse merece uma breve reflexão filosófica feminista como convite ao pensamento. Exige que abramos pequenos espaços de reflexão sobre a moralidade e religiosidade que marcam nossas condutas no interior do complexo pluralismo no qual vivemos. O pluralismo atual convida-nos a uma reflexão que vai mais além de nossas velhas tradições, convicções e temores muitas vezes implantados em nós como uma segunda ou até primeira natureza. Convida-nos a uma atenção mais aguda aos valores que dizemos viver e sua real possibilidade traduzidos como comportamentos habituais.
A questão do aborto é apenas a ponta de um iceberg que toca a compreensão que o cristianismo patriarcal tem dos seres humanos e das forças que o constituem. Compreensão significa pensamento e pensamento situado e datado a partir dos vários aspectos da vida humana. Compreender é apreender algo a partir da situação vivida. Por exemplo, se falamos que somos seres violentos por natureza, muitos imediatamente tentarão negar isso e afirmar a perfeição através da chamada ‘não violência’ como se a oposição não estivesse contida na própria afirmação.
Uma lógica dualista persiste na formação filosófica e teológica dos prelados que não conseguiram ainda apreender na prática a unicidade e interdependência de tudo com tudo. A não violência é também uma sementeira de violências. E é isso que está presente também nas elucubrações absolutas e dogmáticas dos senhores bispos fundadas em uma limitada compreensão da chamada ‘vontade divina’.
Sabemos bem que todo problema nasce de uma situação dada. Se modificamos a situação modifica-se o problema e até a possível solução. Dependendo da situação um suicídio pode ser válido, diante de outra situação matar pode ser uma saída frente a uma ameaça que exija defesa da própria vida. Servir o exército e ser convocado para uma guerra é admitir que se pode matar o outro considerado inimigo. E nas muitas ‘guerras santas’ empreendidas também pela Igreja Católica aliada dos poderes estabelecidos, jovens guerreiros sabiam que iam matar ou morrer. Por isso, o uso do jamais é uma petição de princípio dentro da mais elementar lógica clássica, uma petição de princípio também inaceitável dentro da lógica do próprio Evangelho que os bispos afirmam conhecer, difundir e amar.
Por que pensam ou falam especificamente de crime e de defesa da vida quando se trata de interrupção da gravidez? O que sabem das razões e situações das várias interrupções da gravidez? É quem são as pessoas vítimas das advertências dos bispos?
E mais, por que culpabilizam as mulheres e se esquecem dos homens, dos estupradores, da violência impetrada continuamente contra mulheres e crianças? Por que se arvoram a exigir do Estado laico a obediência às suas normas religiosas e não exigem cuidados e direitos às cidadãs e aos cidadãos marginalizados ou excluídos?
Além disso, sabemos bem que na prática quem tem dinheiro tem direito ao aborto! Para que possui o ‘vil metal’ esse procedimento é tornado legal, pois não sofre nenhuma censura pública. O dinheiro é capaz de encobrir tudo o que não se quer mostrar e dar a impressão de legalidade. Por essa razão bem conhecida, me parece que os bispos dirigem sua advertência à população pobre, notadamente aquelas mulheres vítimas da falta de condições econômicas que precisam se sujeitar às leis do país e aos diferentes grupos que as manipulam para terem um tratamento de saúde minimalista. É triste constatar isso quando gastamos anos na Igreja Católica falando da opção preferencial pelos pobres!
Não poderíamos pensar a partir de outra lógica entre as muitas que povoam nossas vidas e culturas? Porque não pensar que a vida nos obriga muitas vezes a escolher no imediato e, escolher não é sempre escolher o melhor, mas aquilo que é possível na luta pela sobrevivência de cada dia. É como ter que privilegiar uma vida e não outra por múltiplas razões. É assumir o limitado e triste poder de ter que privilegiar ou até substituir uma vida pela outra e afundar-se na imperfeição dos seres humanos, dos nossos limites, de nossa precária imanência constitutiva, nas dores e dúvidas que tudo isso nos causa.
A interrupção da gravidez poderia ser considerada uma substituição de uma vida em germe por outra com responsabilidade social, com obrigações, direitos e deveres, com história vivida, com escolhas, com certa independência e responsabilidade de vida. Os argumentos sempre podem conter dúvidas, porém a dúvida é parte da vida e dos riscos que vivemos. Alguns homens cristãos nos campos de concentração foram capazes de morrer para que outros vivessem sobretudo em eventos de troca de prisioneiros. É uma vida por outra e isto está bem presente na tradição cristã e em outras tradições.
Um pai aceita morrer doando ao filho um órgão vital para transplante. Uma mãe prefere morrer para que a filha viva. Essa ‘troca’ está na lógica da vida e da tradição do Movimento de Jesus a partir da qual até se afirmou que Jesus morreu por nós.
O espantoso é que os homens da Igreja, sobretudo alguns que detêm responsabilidades religiosas e sociais, não percebem que a lógica do JAMAIS está distante da vida ordinária que vivemos. Continuam usando uma lógica absoluta sobretudo quando se trata da vida das mulheres. Por quê? De onde nos vêm esse privilégio às avessas?
Vida e morte estão absolutamente entrelaçadas, é obvio. Por isso, temos que fazer as perguntas que podem ser respondidas de forma sempre diversa pelas pessoas de nosso tempo. O JAMAIS não responde a nada. Apenas levanta muros, cria ilusões, falsos argumentos e mentiras. Por isso, suspeito que há um outro fundo oculto do problema nesse problema do aborto abordado pelos bispos. E este se chama sexualidade ou simplesmente sexo. No fundo o cristianismo sobretudo católico sempre temeu a força vital do sexo por sua impressionante magnitude, pelo lugar que ocupa nas relações humanas, pelo inebriamento e atração dos corpos que provoca sobretudo naqueles que prometeram viver como célibes negando ou renunciando a essa força em si mesmos. A negação do sexo seria a negação do prazer, a negação do prazer corpóreo, da natureza constitutiva dos corpos. Seria a pretensão de viver para além do corpo no corpo, seria fazer-se ‘eunuco pelo reino de Deus’, como costumam dizer. Filosoficamente seria a oposição e luta contínua entre espírito e matéria apostando-se na vitória do espírito.
Entretanto, quando o sexo se apresenta de forma violenta trazendo as consequências de uma gravidez, castiga-se a vítima, sobretudo a menina, a mulher porque ela é considerada a tentadora, ela é a iniciadora da confusão dos corpos e é dela que depende em grande parte a continuação da espécie. Os velhos fantasmas do sexo voltam e buscam os dogmatismos para defender-se da verdade que habita no fundo de cada uma/um de nós.
O princípio idealista e imaginário do respeito absoluto à vida vem então à tona e se apela a ele como última instância legisladora dos comportamentos. Não se percebe que a mobilidade da vida com suas afirmações e negações está presente nesse princípio como uma espécie de horizonte para o qual tendemos e tentamos caminhar sempre. Da mesma forma, o sistema arcaico de pureza que se impôs na Igreja e se impõe ainda hoje leva a continuas transgressões de comportamento e falsidades discursivas que acabam atingindo sempre a vida dos mais pobres.
A crise existencial está instaurada de diferentes maneiras, inclusive no apego aos dogmatismos e moralismos que se manifestam em muitas instituições religiosas. Não se ousa mudar porque perde-se poder e perde-se o frágil equilíbrio pessoal e institucional. Então se fala em JAMAIS e se argumenta através de perfeições impossíveis.
A ambiguidade da vida, os limites da condição humana, as mentiras que nos sustentam assim como as verdades exigem de cada um/uma de nós o esforço para sair de uma fé imaginária, de uma afirmação ilusória das exigências de Deus que sustenta o poder de muitos. Sei que estou talvez pedindo muito, porém um esforço em vista de acolher o que é ‘nossa vida de fato’ e não apenas o que ‘deveria ser’ poderia se tornar um processo educativo transformativo e eficaz em vista do bem comum.
Infelizmente a real situação da vida de muitas mulheres, adolescentes e crianças cuja vida é constantemente ameaçada, inclusive pelos detentores do poder religioso, nos levam a perceber o quanto é mais fácil preferir uma ilusão, uma imagem aparentemente justa mas ao mesmo tempo mentirosa da vida do que acolher a verdade de nossas limitações e ações. E, a partir desse realismo maior ajustado à nossa condição, trabalhar para nos ajudar mutuamente a sair da mentira. Sinto o quanto para muitos a ilusão se tornou ‘sagrada’ e as dores humanas, e em especial as dores das mulheres que eles mesmos alimentam, são consideradas ‘profana’ e é até proclamadas como pecado ou profanação da vida. Os prelados não tocam os corpos reais, as histórias reais, as mulheres de carne e osso com suas misérias e qualidades, com suas grandezas e pequenezes. Giram em torno de princípios abstratos e com eles continuam cúmplices dos sistemas de opressão e das políticas excludentes que louvam apenas uma ideia de vida, mas amaldiçoam as vidas reais, seus escorregos contínuos e seus breves prazeres. Assim os que julgam as outras em nome de Deus talvez acreditem que eles mesmos são puros, que defendem a transcendência da vida, a ética divina. Mas de qual vida defendem a transcendência? Na mesma linha se arrogam igualmente o direito de julgá-las e de proibir que leis justas de cuidado provindas do Estado possam ajudá-las a viver e seguir assumindo o atribulado curso de suas vidas.
Menina de 9 anos estuprada pelo pai. Grávida!
Jovem perseguida por uma gang e estuprada por 5 homens. Grávida!
Mãe de 3 filhos com problemas graves de saúde. Grávida!
Religiosa estuprada por seu confessor. Grávida!
Milhares de mulheres pobres mortas por abortos clandestinos mal feitos! Mulheres pobres condenadas e aprisionadas por escolherem caminhos abortivos de proteção de si não legalizados! Ódios de homens e de mulheres contra mulheres que abortaram!
Sem dúvida alguns dirão que em caso de estupro ou mal formação fetal as leis do país permitem a interrupção da gravidez, porém sabemos também que a burocracia para a verificação dos diferentes casos é um tormento para as pobres que vivem o problema.
Apostar na capacidade e no critério das mulheres envolvidas em situações trágicas e nos critérios das pessoas que as ajudam deve ser um comportamento que indica solidariedade e compreensão da bondade que também nos habita. A ajuda mútua e a solidariedade efetiva ainda brotam em nosso chão!
Muitos dos senhores e muitos grupos sociais seguem vivendo em renovadas ilusões, defendendo-se contra uma compreensão mais integral e complexa da vida. Não ouvem os clamores reais das mulheres e, no entanto, dizem ‘ouvir os clamores do povo’ e ‘fazer a vontade de Deus’. Como fazem isso frente aos diferentes problemas que nos assolam?
Nessa linha ouso dizer que o JAMAIS dos bispos declara a morte dessas mulheres. Condena-as ao julgamento da terra e ao fogo do inferno. Impede a aprovação de leis mais justas necessárias à manutenção precária da vida.
Mais uma vez, que dizem e fazem de concreto os bispos com os estupradores? Acaso os procuram, conversam com eles, têm diretivas para eles? Falam da vida que desrespeitaram? Propõem caminhos de educação? Talvez essa seja uma pauta importante a ser proposta e desenvolvida!
Senhores bispos e outros responsáveis revejam sua lógica filosófica, revejam o reducionismo de seu pensamento cristão e o limite imaginário de sua teologia. Apegados a seus princípios, os senhores se negam a enfrentar-se às dores reais do mundo, ao sofrimento das mulheres, às vítimas da humanidade contra ela mesma. O desprezo à causa das mulheres em nome de um princípio imaginário tornado absoluto os conduz cada vez mais a uma representação falsa e decadente do Evangelho de Jesus que aceitou os limites e contradições da vida lembrando-nos de atirar a primeira pedra se nos julgamos santos ou inocentes de qualquer pecado.
Consentir aos nossos limites inevitáveis abre as portas da misericórdia e da solidariedade humana. De fato, não somos inocentes. Sabemos bem disso. E sabemos o quanto os jogos do poder e a adesão a Narciso são sedutores também para os clérigos e epíscopos que dizem obrar em nome de Deus. É muito cômodo usar da condenação das mulheres como arma para defender a vida de um provável devir de ser humano. E é também mais cômodo atribuir a Deus as suas decisões rígidas sem abrir as portas do coração à compaixão necessária à sobrevivência humana e do planeta.
Acolhamos a finitude de nosso mundo humano, único lugar onde o amor para além das leis é possível. Não temamos as causas que nos movem as entranhas, que nos enchem de calafrios, de dúvidas e de medos. Não temamos colocar-nos no lugar daquelas que sofrem, a imaginarmo-nos em seus corpos, em suas carências, em suas angústias, em seus temores diários. Não temamos ser imperfeitos, visto que não podemos ser perfeitos. O amor é sempre imperfeito e aí está a sua força renovada e renovadora.
Este é o nosso limitado mundo e é nele que há que escolher as causas que abraçamos e acolher sobretudo que nada é puro, mas apenas misturado e limitado. Porém, ainda ouso dizer para concluir: quando nossa fraqueza for grande demais e as trevas da confusão nos atingirem e impedirem de falar com propriedade é melhor escolher o silêncio do que levantar impropriamente a voz e impedir o caminho e as escolhas que representam a luta vital de muitas pessoas. Calar pode ser também um caminho que freia as tentações absolutistas do JAMAIS dos senhores.
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As fantasias e elucubrações sobre o conceito JAMAIS no pronunciamento da CNBB - Instituto Humanitas Unisinos - IHU