12 Setembro 2023
O pesquisador Peter Kornbluh foi fundamental na desclassificação de documentos sobre a participação dos Estados Unidos no golpe de 11 de setembro de 1973, que pôs fim à presidência de Salvador Allende.
A entrevista é de Cecília Valdez, publicada por El Salto, 11-09-2023. A tradução é do Cepat.
Peter Kornbluh pesquisa o papel dos Estados Unidos no golpe chileno de 1973 há quase 40 anos. Como diretor do projeto de documentação sobre o Chile no Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, foi quem mais pressionou os diferentes governos dos EUA para desclassificarem os documentos.
Com base nestes documentos, existem provas claras de que o ex-presidente dos EUA, Richard Nixon (1969-1974) e seu conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger, promoveram o golpe de Estado porque temiam que a experiência iniciada por Salvador Allende no Chile pudesse ser replicada no restante da América Latina. Alguns documentos revelam que o apoio americano ao golpe foi marcado pela decisão do governo de Allende, de nacionalizar sem indenização as empresas norte-americanas que dominaram a economia chilena durante décadas.
Cinquenta anos depois do golpe de Estado, Kornbluh publicou um livro com novos documentos e presta assessoria a autoridades do governo de Gabriel Boric no trabalho de busca de pessoas desaparecidas.
Durante os governos de Clinton (1993-2001) e de Obama (2009-2017), você pressionou pela divulgação dos documentos até agora desclassificados [isto é, não mais secretos]. O que pode me contar sobre isso?
Existe um conceito chamado Declassification diplomacy [Diplomacia de desclassificação], que tem a ver com a divulgação de documentos secretos, e que está no mesmo patamar da ajuda econômica ou do apoio militar ou político. Quando Pinochet (que governou entre 1973 e 1990) esteve preso em Londres, a Comunidade de Transparência e Liberdade de Informação, o Arquivo de Segurança Nacional e algumas famílias de vítimas de Pinochet bastante conhecidas pressionaram a administração Clinton para que divulgasse as evidências das violações dos direitos humanos cometidas por Pinochet para que os espanhóis pudessem utilizar esses documentos nesse caso e divulgá-los ao mundo.
Também pressionamos por uma investigação sobre o papel de Pinochet num ato terrorista internacional nos Estados Unidos, os assassinatos de Orlando Letelier [ex-chanceler e ministro de Defesa do governo Allende] e Ronni Karpen Moffitt [ativista de esquerda assassinada junto com Letelier em 1976]. Naquela época, o governo Clinton estava repleto de pessoas muito sensíveis a estas questões, que também ocupavam cargos importantes na burocracia da segurança nacional, e conseguimos obter uma ordem do presidente dos Estados Unidos para desclassificar milhares de documentos.
Foi a primeira vez que obtiveram uma ordem de um presidente dos EUA para acessar esse tipo de documento?
Exatamente. Em 1975, o Chile foi objeto de uma investigação por parte do Senado americano, a Comissão Church [encarregado de investigar as operações do governo em relação aos serviços de inteligência], e este comissão pôde ver e tomar nota de muitos documentos da CIA, mas não poderia torná-los públicos. Portanto, sabíamos desses documentos e da intervenção secreta da CIA no Chile, mas não conseguimos acessar os documentos até Clinton dar a ordem. Havia quase 24.000 documentos e as diferentes organizações envolvidas levaram quase dois anos para repassá-los e classificá-los.
De alguma forma, o Chile tornou-se um dos casos mais documentados. A ironia é que pressionamos por uma investigação sobre o papel de Pinochet num ato de terrorismo e, em vez de divulgar os documentos sobre o seu papel no caso Letelier, o FBI e o Departamento de Justiça mantiveram esses documentos para a sua própria investigação. Eram quase 300 documentos e eu era quem que mais conhecia o assunto, e inicialmente falei: “Bom, se for por uma causa legítima, se eles querem que essa prova seja usada na Justiça, e não puderem torná-los públicos porque há uma investigação em andamento, então apoiamos esta decisão”. Mas, com o término do governo Clinton e a chegada do governo Bush, que não teve o mesmo compromisso, tivemos o pior dos dois mundos: nem o julgamento contra Pinochet, nem o acesso às provas.
Quando você os conseguiu?
Passei 15 anos solicitando esses documentos, falando com funcionários do Departamento de Justiça e pressionando, até que finalmente, em 2015, no 40º aniversário do assassinato de Letelier, com dois governos muito interessados na questão, o de Michelle Bachelet no Chile e de Obama nos EUA, conseguimos obtê-los. Como Obama queria coisas do Chile, a decisão de desclassificar documentos não foi tão difícil. Naquela altura, os Estados Unidos queriam a ajuda do Chile porque queriam fechar a prisão de Guantânamo, precisavam transferir os prisioneiros para outros países e o Chile era um possível destino.
Era uma questão diplomática e não demorou muito para que Obama emitisse outra ordem para rever e desclassificar documentos muito sensíveis da CIA sobre o papel de Pinochet no ataque contra Letelier e no plano para assassinar o seu próprio chefe de inteligência, Manual Contreras [oficial militar chileno e chefe da Diretoria de Inteligência Nacional], a única pessoa que sabia que Pinochet estava implicado nisso.
Como parte da data que marca os 50 anos do golpe, foi publicada no Chile uma edição de Pinochet, os arquivos secretos.
Sim, escrevi um livro há 20 anos, O Arquivo Pinochet, baseado nos 24 mil documentos desclassificados durante o governo Clinton. Um ano depois, foi publicada uma edição em espanhol chamada Pinochet, os arquivos secretos e, para o 40º aniversário, fizemos uma edição com novos documentos. Agora, por ocasião dos 50 anos, acrescentamos novas informações e, no Chile, editamos Pinochet desclassificado.
Que novas informações contém esta edição?
Ela tem mais informações sobre o caso Schneider, ou seja, sobre o assassinato do comandante-em-chefe do Exército. René Schneider [que defendia a subordinação das Forças Armadas ao poder civil] foi assassinado em outubro de 1970 com o apoio da CIA, que instigava um golpe para impedir a posse de Allende. Neste novo livro há a transcrição de uma conversa entre Kissinger e Nixon sobre esse complô que fracassa, e na qual Kissinger chama os militares chilenos de incompetentes por não continuarem e terminarem o complô.
É muito interessante ver como duas das pessoas mais poderosas do mundo conversam nesses termos, ou seja, falam com total impunidade sobre o horror de apoiar o assassinato de uma pessoa inocente [Schneider] que nada fez senão apoiar a sua própria Constituição; e aí estão eles, o presidente e o seu conselheiro de segurança nacional, queixando-se de que os militares não estão conseguindo levar a cabo o complô.
Há também novas informações da CIA sobre Agustín Edwards (o homem mais rico do Chile na época e proprietário do jornal El Mercurio), que estava em Washington e passava informações detalhadas à CIA sobre a possibilidade de um golpe. Ele teve duas reuniões com a CIA: uma com o seu diretor, Richard Helms (obtive o documento dessa reunião há alguns anos) e outra da qual ninguém sabia nada porque Edwards nunca falou disso. Encontrei o resumo da CIA que prova que a reunião existiu e também a agenda de Nixon que prova que Edwards teve uma reunião com Nixon na Sala Oval da Casa Branca às 9h15 do dia 15-09-1970 [o dia em que Nixon deu a ordem para o golpe].
Até esse momento vocês não sabiam dessa reunião entre Edwards e Nixon?
Edwards sempre negou essa reunião. Ele foi processado em um julgamento civil no Chile e quando o juiz lhe perguntou sobre o encontro com Helms, admitiu ter falado com ele sobre a situação política no Chile e disse que não discutiram sobre um golpe de Estado. Mas no documento que encontrei dessa reunião, a metade é uma conversa sobre o golpe, como, quem e quando fazê-lo. Esse mesmo juiz perguntou a Edwards se havia se reunido com o presidente dos Estados Unidos e ele disse que não se lembrava [risos].
Como pode esquecer uma reunião com o presidente dos Estados Unidos?! Mas naquela época não havia nenhum documento que comprovasse essa reunião, apenas a transcrição de uma ligação de Kissinger para um funcionário que cuidava da agenda do presidente, dizendo-lhe que era necessário encontrar um espaço secreto para uma reunião com Edwards. Mas para ter a prova e ver o nome de Edwards na agenda do presidente às 9h15, e na agenda de Kissinger às 8h, tivemos de esperar anos.
Há poucos dias, os deputados do Chile aprovaram o pedido de informações aos Estados Unidos sobre a sua participação no golpe de 1973.
Penso que é um bom momento para tentar obter mais documentos e, em certo sentido, é uma oportunidade para os Estados Unidos encerrarem este capítulo da sua história e começarem outro. Não sei se veremos uma grande desclassificação de documentos nos próximos dias, mas sei que é uma boa oportunidade porque os EUA têm interesse em algo do Chile, o acesso às suas reservas de lítio. Assim, os Estados Unidos continuarão a utilizar a Diplomacia de desclassificação para tentar manter boas relações com o povo chileno.
Mas penso que deveria haver algo mais, não apenas tornar públicos os documentos, mas expressar um arrependimento pelo que aconteceu. Ou seja, não viverei para ouvir da boca de um presidente dos Estados Unidos as palavras “sinto muito” aos chilenos. Mas posso imaginar alguma expressão de pesar pelo que aconteceu, porque o que aconteceu foi a destruição das instituições democráticas chilena e um forte apoio ao estabelecimento de uma ditadura, e tudo isto está muito detalhado nos documentos. O que os EUA fizeram no Chile é criminoso.
Você acha que Kissinger, que completou 100 anos em maio passado, teria que responder por isso?
Muitas pessoas tentaram apresentar provas sobre Kissinger. Nos documentos divulgados com Clinton havia provas de que Kissinger sabia da conspiração contra Schneider e que supervisionou pessoalmente o atentado. Levei esses documentos à família de Schneider no Chile e a família abriu uma ação civil contra ele em Washington que não prosperou porque Kissinger tinha imunidade porque se tratava de atos oficiais, uma imunidade que ele mantém por toda a vida.
Que participação tiveram os Estados Unidos no Plano Condor?
Essa é uma questão muito complicada. Obviamente, a CIA estava muito próxima da polícia secreta do Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil, mas não fazia parte do Plano Condor. A Operação Condor elaborou um plano que serviu para identificar as pessoas dos países que se opunham aos regimes ditatoriais e ordenou que fossem mortas. A CIA sabia deste plano desde o início e temia que estes massacres ultrapassassem as fronteiras do Cone Sul e atingissem países mais poderosos, ou mais alinhados com os interesses dos Estados Unidos, como Espanha, França ou Portugal. Ou seja, países com os quais se preocupou em manter boas relações tanto com os seus governos como com os seus serviços de inteligência, mais do que com os da Argentina, do Paraguai ou do Chile.
A CIA chegou a estar muito preocupada e enviou os seus próprios agentes para alertar os franceses sobre uma conspiração, a fim de detê-la. É uma ironia, porque, embora a CIA tenha tido inicialmente sucesso, não avisou nem conseguiu impedir um ataque em seu próprio território, como o assassinato de Letelier nas ruas de Washington DC. Portanto, a CIA não apoiou esta parte do Plano Condor, mas apoiou as outras partes do plano que não receberam muita atenção e que envolviam a partilha confidencial de informações sobre as atividades de militantes do Cone Sul que cruzavam as fronteiras com o objetivo de detê-los e fazê-los desaparecer.
Você acha que novos documentos poderiam fornecer alguma pista sobre o destino das pessoas desaparecidas?
Vou ao Chile nos próximos dias para me encontrar com autoridades que buscam informações sobre os desaparecidos, e sei que vão me perguntar se há informações nos documentos dos arquivos norte-americanos que possam ajudar na busca. Acredito que há informações nestes documentos, mas também que provavelmente são documentos que já foram desclassificados e que devem ser lidos e revistos com muita atenção. Às vezes é difícil porque as fontes são censuradas e não é fácil identificar o papel e as responsabilidades de cada pessoa. Os nomes das vítimas também são censurados para preservar sua privacidade.
E por último, por que você dedicou grande parte da sua vida à pesquisa desse tema?
Bem, minha relação com o Chile começa com uma chilena que conheci em 12 de setembro de 1973, um dia após o golpe. Ela estava no meu colégio, em Michigan, namoramos, tivemos um filho, nos divorciamos, e realmente foi por causa dela que entrei nisso. Ela trabalhava com a Isabel, a viúva do Orlando Letelier, em Washington, e eu fui para lá trabalhar e estudar, e foi aí que começou o trabalho com os documentos.
Quando comecei este trabalho não tinha ideia da relevância que iria adquirir, mas agora que Estados Unidos, Espanha, Chile e outros países estão em uma luta pela volta da direita, isso me parece ainda mais importante para todos na defesa das instituições da democracia. Depois de 40 anos posso dizer que conseguimos muito e, embora não tenhamos uma condenação legal contra Pinochet, temos o veredito da história.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O que os Estados Unidos fizeram no Chile é criminoso”. Entrevista com Peter Kornbluh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU