16 Agosto 2023
O luar escoa através de uma abertura no telhado de palha da maloca, uma casa comunal circular na aldeia indígena de La Pedrera, em um canto remoto do sul da Colômbia. Sentado no centro da casa, um xamã Murui cantarola e sussurra melodicamente, com as pálpebras pesadas em profunda concentração.
A reportagem é de Bram Ebus e Andrés Cardona, publicada por InfoAmazonia, 15-08-2023.
O xamã passa adiante um recipiente de plástico branco cheio de pó verde. Cada um dos jovens do círculo coloca uma pitada do pó dentro da bochecha e o umedece com saliva. Os lábios do homem mais velho são revestidos com o pó, uma mistura de folhas de coca pulverizadas e cinzas chamadas mambe, uma parte integrante dos rituais que ajuda os participantes a se concentrarem.
Sentado ao lado do xamã está Mateo,* um homem Murui, na casa dos 30 anos, usando shorts e chinelo. Toda vez que ele se prepara para uma cansativa viagem de três semanas pela densa selva, ele vem pedir proteção espiritual ao xamã. Ao longo do caminho, ele está acostumado a enfrentar não apenas cobras venenosas, mas também ladrões e patrulhas policiais.
Em suas viagens pela selva, Mateo carrega várias dezenas de quilos de maconha que pertencem a um grupo guerrilheiro colombiano. Seu trabalho é entregar a carga para uma facção brasileira.
Os jovens que transportam remessas de drogas da Colômbia para o Brasil procuram a proteção de um xamã. (Foto: Alex Rufino | InfoAmazonia)
Embora a maconha medicinal esteja gradualmente ganhando status legal em vários países, a economia das drogas ilícitas é impulsionada pela demanda por uma forma potente de maconha conhecida como skunk ou “creepy.”
O tráfico de skunk — que disparou em 2022, com base nas apreensões da Polícia Federal brasileira — financia conflitos e violência ao longo da fronteira entre a Colômbia e o Brasil. As recentes ações de repressão na Colômbia destacam a gravidade do problema, com as autoridades apreendendo quantidades recordes de maconha que estavam sendo transportadas para o Brasil por via fluvial.
Em La Pedrera, uma pequena aldeia perto da fronteira com o Brasil, onde há uma presença escassa do Estado e poucos empregos disponíveis, os residentes indígenas trabalham para grupos armados no transporte de cargas pesadas de maconha pela selva traiçoeira.
Com a ajuda de mambe, charutos e ambil, uma espécie de pasta de tabaco, o xamã visualiza a jornada à frente e antecipa os possíveis perigos. Ele prevê encontros com animais perigosos, piratas fluviais e até possíveis desentendimentos com a Polícia Federal brasileira do outro lado da fronteira.
“Você tem que tirar a capacidade da polícia de pensar, para que eles não possam pegar as pessoas. Então, você pode passar com calma, pensando em outras coisas”, diz ele.
Na Amazônia, anciãos e xamãs, que passam por décadas de treinamento espiritual, tradicionalmente empregam rituais para curar os doentes e afastar os maus espíritos. Mas agora eles também são procurados para proteger aqueles que enfrentam os perigos da selva enquanto transportam maconha e cocaína pelas fronteiras internacionais.
O xamã mostra um pequeno recipiente de uma pasta vermelho-escura chamada carayuru, que é feito de uma videira e possui propriedades protetoras e preventivas. “Você esfrega isso no umbigo e lambe um pouco, e é como uma defesa”, diz ele. “Eles não olham para você. Você não corre mais perigo.”
Mateo, pai de dois filhos pequenos, garante a eficácia do ritual. “É importante porque te dá força para continuar. Em todos os pequenos trabalhos que você faz, tem que ter proteção. Tem que estar lá”, diz ele.
Depende do conselho do xamã se ele aceita um emprego. “Se ele diz que é perigoso trabalhar, então você não vai. Você fica. E se ele disser que está tudo bem, você vai.”
O abuelo diz que não exige pagamento pelos seus serviços espirituais. “Para nós, aprendemos que a cura não deve ser cobrada”, diz ele. “Consideramos isso errado.” No entanto, ele reconhece que, para outros xamãs, é um negócio. Por algo entre 150.000 e 200.000 pesos colombianos (R$ 175 a R$ 225), um traficante pode passar suas drogas com segurança pela selva.
Outro xamã, criado em uma comunidade perto do Rio Apaporis, mas agora morando em Leticia, uma cidade colombiana no Rio Amazonas, admite prestar consultoria para traficantes de drogas.
“Eles me contratam, a cada entrega”, diz ele, tomando uma cerveja no meio da manhã enquanto observa o Rio Amazonas em um dos bares perto do mercado de produtos frescos de Leticia.
Um de seus filhos transporta drogas pela selva. O xamã reconhece a presença de grupos armados, mas está mais preocupado com os soldados que estão à procura de traficantes de drogas. “Eu viro todos os seus rostos para que eles não olhem para os trabalhadores”, diz ele.
A sua localização no Rio Caquetá, que atravessa a fronteira com o Brasil, faz de La Pedrera um ponto de trânsito estratégico. A aldeia tem eletricidade de um gerador a diesel por apenas algumas horas no início da tarde e à noite. Mas um dos bares à beira do rio, cercado por torres de engradados de cerveja, destaca-se como uma exceção, tocando música alta em todo o vilarejo na maioria das noites e dias.
Além do Caquetá cor de café, o Rio Apaporis também está próximo. Ambos os rios servem como corredores cruciais para os grupos armados transportarem tropas, drogas e armas. Cerca de 20 minutos rio acima — alertam a polícia local e os moradores — há um posto de controle da guerrilha. Até agora, ninguém se atreveu a interferir.
A maior parte da maconha produzida na Colômbia é cultivada no departamento de Cauca e transportada por terra e por rios até La Pedrera e, em seguida, para o Brasil. (Imagem: Reprodução | InfoAmazonia)
Apesar das alegações, os habitantes locais fazem um esforço para negar o envolvimento no tráfico de cocaína e muitas vezes afirmam que a sua principal fonte de sustento é a pesca. Em conversas reservadas, no entanto, a maioria admite que há apenas uma economia que de fato mantém a aldeia em funcionamento. “Estou te dizendo por experiência própria que a única saída, aqui em Pedrera, é transportar drogas e maconha”, diz Wilton*.
Wilton, que trabalhou como traficante de drogas por cerca de 10 anos, cresceu em uma família pobre, como a maioria dos moradores da aldeia. “Como família, sofremos uma crise econômica, em que o meu pai, que descanse em paz, mal nos apoiava, até que o meu Deus lhe permitiu descansar, e isso acabou”, diz.
Os traficantes de drogas usam mochilas improvisadas como esta – moldadas a partir de meia lata aberta – para transportar cargas de 50 a 60 Kg de maconha, além de alimentos e suprimentos, através da selva por até três semanas. (Foto: Alex Rufino | InfoAmazonia)
Sem forma de comprar terras e sem possibilidades de emprego, só havia uma opção. “Conhecemos um grupo chamado narcoguerrilla“, ele diz. “Foi com eles que encontramos o apoio que precisávamos para ir em frente. Eles nos deram as primeiras oportunidades de progredir economicamente.”
Por 30.000 pesos colombianos (R$ 35) o quilo, um grupo de jovens começou a transportar cargas de maconha de 50 a 60 Kg através da selva até um ponto de entrega no Brasil, permitindo que os guerrilheiros e traficantes de drogas evitassem controles militares de fronteira no rio.
Depois de um ano, Wilton conseguiu comprar um terreno por 12 milhões de pesos (cerca de R$ 13.500) e construir uma modesta casa de madeira em La Pedrera, típica das comunidades indígenas amazônicas, por 7 milhões de pesos (cerca de R$ 8 mil).
Com um fluxo constante de dinheiro, Wilton conseguiu organizar sua vida.
“Então era assim que estávamos vivendo, trabalhando para sobreviver nesta pequena cidade, graças a este trabalho, porque não há empregos”, diz ele. “Não há ajuda do Estado, do governo, então os jovens fazem isso porque não há outra opção.”
Facções dos grupos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) que não assinaram os acordos de paz de 2016 com o governo operam em torno de La Pedrera.
Vestido com uniformes militares, um chapéu de safári camuflado e botas de borracha, um líder guerrilheiro que atende pelo nome de Danilo Alvizú, é cercado por tropas guerrilheiras fortemente armadas durante uma aparição em uma reunião, em abril, em Llanos del Yarí, no departamento amazônico de Caquetá, na Colômbia. Vários comandantes da guerrilha e sua comitiva se reuniram para discussões internas e para informar as comunidades locais de suas intenções em relação aos diálogos de “paz total” em andamento com a administração Petro. Alvizú comanda a frente Carolina Ramírez do grupo dissidente que se autodenomina Estado Maior Central-Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (EMC-FARC).
O guerrilheiro conhecido como Danilo Alvizú lidera a frente Carolina Ramírez, um grupo dissidente das FARC. (Foto: Andrés Cardona | InfoAmazonia)
O próprio Alvizú carrega apenas uma arma. Em seu ombro esquerdo está em destaque a inconfundível bandeira das FARC, que combina o amarelo, o azul e o vermelho da bandeira colombiana com um mapa do país adornado com metralhadoras cruzadas e um livro.
A EMC-FARC afirma ser a autêntica FARC, em contraste com o grupo que se desmobilizou após a assinatura de um acordo de paz de 2016 com o governo colombiano. Alvizú assinou o acordo, mas depois se juntou aos dissidentes das FARC.
A EMC-FARC, liderada por Néstor Gregorio Vera Fernández, também conhecido como Iván Mordisco, cresceu em tamanho e expandiu seu controle territorial a partir de 2020, à medida em que as operações de aplicação da lei se tornaram mais esporádicas durante a pandemia de Covid-19.
Para construir esse banco de dados, consultamos fontes primárias e documentos em todos os municípios fronteiriços amazônicos do Brasil, Colômbia, Venezuela, Peru, Equador e Bolívia.
O movimento guerrilheiro opera em vários departamentos. A frente Carolina Ramírez, liderada por Alvizú, e a frente Armando Ríos, têm centenas de combatentes na Amazônia colombiana, segundo fontes do governo.
Até o momento, este ano, os dissidentes das FARC recrutaram pelo menos quatro menores em La Pedrera e outros seis nas áreas vizinhas de Puerto Santander e Mirití Paraná, territórios não incorporados sem autoridades municipais. A Ouvidoria de Direitos Humanos do governo colombiano informou que os dissidentes procuram “recrutar crianças e adolescentes para a sua operação armada ou para trabalhar transportando cocaína para o Brasil.”
Combatentes dissidentes das FARC chegam a uma reunião em abril em Llanos del Yarí, Caquetá. (Foto: Andrés Cardona | InfoAmazonia)
Mas Alvizú minimiza a forte influência do seu grupo na zona fronteiriça. “Nossa presença na fronteira com o Brasil é mínima”, diz o líder rebelde, famoso por comandar uma frente acusada de matar líderes de base e cometer mais de uma dúzia de massacres na Amazônia colombiana. Alvizú nega o envolvimento de seu grupo no tráfico de drogas na fronteira.
O líder guerrilheiro, conhecido como Iván Mordisco, que lidera o EMC-FARC, é cercado por combatentes em uma reunião em abril no departamento de Caquetá, na Colômbia. (Foto: Andrés Cardona | InfoAmazonia)
Os posicionamentos em relação à maconha estão mudando em muitos países. Itália e Austrália, por exemplo, já descriminalizaram a posse de pequenas quantidades. A Alvizú legalizou e regulamentou o cultivo comercial de maconha para uso medicinal e científico em 2016. Em 2022, um tribunal brasileiro aprovou o cultivo de cannabis para uso médico em casa.
No entanto, a maior parte da produção para uso recreativo continua criminalizada, portanto a maconha é vendida no mercado negro. O comércio é controlado por grupos armados e organizações criminosas que financiam parcialmente suas campanhas violentas com a renda do comércio ilícito de maconha.
Em 2020, o Brasil ficou em terceiro lugar no mundo nas apreensões de maconha, atrás da Índia e dos Estados Unidos. A Colômbia está em quarto lugar. Desde a pandemia, a procura por maconha só aumentou. (Arte: Reprodução | InfoAmazonia)
“O Brasil tem cartéis muito ativos que estão constantemente tentando entrar em contato com grupos dissidentes e narcotraficantes na Colômbia para adquirir tudo relacionado à produção de cocaína e maconha”, diz Harry Ernesto Reyna Niño, chefe do Estado-Maior naval de apoio à força naval colombiana, que foi entrevistado em junho de 2022, quando era vice-almirante da força naval do sul.
Grupos guerrilheiros colombianos sabem onde estão localizados os controles militares e recrutam residentes de comunidades indígenas para o que as autoridades chamam de hormiguero — “tráfico de formigas” — uma referência à forma como as formigas transportam as coisas pela floresta. Homens da região transportam cargas destinadas ao Brasil por caminhos florestais e ao longo de pequenos riachos.
Essencialmente, Reyna diz, com o comércio de maconha, as facções brasileiras financiam a violência perpetrada por grupos armados na Colômbia.
O comércio de maconha potente, com altos níveis de THC, é atraente devido à sua alta demanda e valor. Enquanto parte da maconha é exportada para a Europa e para a África Oriental, a maior parte do lucro fica no mercado brasileiro.
Em maio, em resposta por e-mail a um inquérito do Amazon Underworld, a Marinha colombiana disse que por volta de 8 a 10 toneladas de maconha por ano foram apreendidas na região amazônica desde 2012. (Arte: Reprodução | InfoAmazonia)
No entanto, no que diz respeito à cocaína, os grupos guerrilheiros colombianos, que estão principalmente envolvidos na sua produção e distribuição, não se beneficiam dos lucros vultosos gerados pelas exportações internacionais. Isso porque entregam o produto aos grupos criminosos brasileiros, que enviam para o mercado internacional.
Na Amazônia e em algumas outras partes do Brasil, a diferença de preço entre a maconha potente e a cocaína é mínima.
“É por isso que é muito procurada no Brasil”, diz Reyna. “Podemos estar falando de um quilo de maconha de alta qualidade com quase o mesmo valor da cocaína. Isso é de grande importância para grupos de narcotráfico no Brasil, como a Família do Norte, Comando Vermelho, PCC (Primeiro Comando da Capital) e outros”.
Nas sombras discretas das árvores e arbustos de uma das numerosas ilhas no meio do Rio Caquetá, Wilton se sente à vontade para falar sobre como ganha a vida. Depois de estacionar em terra firme a canoa motorizada que o trouxe para a ilha, ele encontra uma árvore caída para se sentar e acende um cigarro.
Ao transportar drogas pelo rio, os piratas são uma ameaça constante. “Se você está transportando 500 quilos de maconha, os piratas vão te roubar. Bem, na verdade, não te roubam. Eles te matam com a famosa AK, como chamam a AK-47. Eles atiram em você”, diz ele, arregaçando os shorts para mostrar um ferimento de bala.
Para evitar não apenas piratas, mas também a aplicação da lei, grupos de até 20 homens se preparam para uma viagem que pode demorar até três semanas.
“Este trabalho não é para todos. É para os mais corajosos. Muitas pessoas desistem. Para conseguir as coisas e cuidar de sua família, você tem que sacrificar sua vida completamente”, diz Wilton. “Pelo caminho, eu tenho visto nossos companheiros, os jovens grupos que viajam conosco, se ajoelhando e pedindo perdão a Deus por tudo o que sacrificaram nesta vida.”
A comida não dura toda a viagem. Os indígenas, especialistas da selva, caçam e pescam, mas nem sempre há tempo suficiente depois de um dia de caminhada. “Você tem que suportar a fome”, diz Mateo, o homem que procurou o xamã conhecido como abuelo. “Às vezes, quando seu suprimento acaba, você pode passar mais cinco dias passando fome, apenas bebendo água.”
Com seus ganhos iniciais, Mateo comprou uma geladeira e cabos elétricos para conectar lâmpadas em sua casa. Ele pondera isso contra os riscos. Os traficantes de drogas caminham cautelosamente ao longo da margem do rio, constantemente conscientes dos perigos que se escondem.
Eles começam a andar todos os dias por volta das 6h e ficam sem descansar até pouco antes do pôr do sol, por volta das 17h. “Ganhamos muito dinheiro, mas é muito difícil”, diz ele. Apesar de seus anos de experiência, Wilton também procura um xamã antes de cada partida.
“Eles protegem você”, diz ele. “Às vezes, a Polícia Federal pode te atacar ou até matar você. [Os xamãs] te guiam, então caso você encontre grupos armados da Polícia Federal, eles te guiam ali mesmo. E quando as coisas correm bem, eles conduzem os seus pensamentos ao longo do caminho. Eles te levam ao local de entrega e depois te trazem de volta.”
El abuelo olha para o rio Caquetá, que entra ao Brasil mais abaixo. (Foto: Bram Ebus | InfoAmazonia)
Nas proximidades de La Pedrera, o xamã, que liderou o ritual do Mateo, usa um facão para abrir caminho através da densa vegetação que rodeia a sua casa no Rio Caquetá.
Ele cultiva algumas plantas de coca para fazer mambe e planta mandioca e banana. Hoje, no entanto, ele está procurando no mato plantas nativas específicas de sua região da Amazônia, se preparando para criar outro remédio. Para ele, qualquer pessoa que viaje para as perigosas fronteiras entre a Colômbia e o Brasil precisa de proteção.
“Se você for sem defesas”, diz ele, “você certamente quer morrer.”
*Os nomes foram alterados.
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Carregadores de maconha na Amazônia recorrem a xamãs para a proteção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU