26 Julho 2023
As disputas sobre a condição do planeta continuam enfatizando uma suposta excepcionalidade humana, mas talvez tenha chegado o momento, propõe o filósofo William Connolly, de reconhecer nossas limitações e agir em consequência.
A reportagem é de Gustavo Santiago, publicada por La Nación, 22-07-2023. A tradução é do Cepat.
Quando se fala a respeito da atual mudança climática e de suas possíveis consequências para a habitabilidade do planeta, costuma-se acentuar a responsabilidade do ser humano nessa situação. Ele é responsabilizado por tê-la provocado, ao mesmo tempo em que lhe é confiada a responsabilidade de encontrar uma solução.
Seja como vilões ou como heróis, o papel dos seres humanos parece ser excepcional em relação ao resto das espécies do planeta. Contudo, não seria aí, nessa suposta excepcionalidade, que estaria a própria raiz do problema? Essa é a proposição que o filósofo e cientista político norte-americano William E. Connolly (Flint, 1938) desenvolve em Frente a lo planetario: humanismo entrelazado y política del enjambre.
O principal perigo do excepcionalismo humano – que remonta aos primórdios da Modernidade – consiste em considerar que o restante da natureza nada mais é do que uma fonte de recursos colocada à disposição dos homens. Animais, florestas, minerais e riachos parecem existir meramente para serem explorados em seu benefício. O único agente com direitos é o ser humano.
Contudo, o fato de que no texto se questione o excepcionalismo humano não significa que se evite apontar responsabilidades. Assim, o filósofo não hesita em sustentar que “os Estados capitalistas euro-americanos e as ordens imperiais criaram um clima mundial e uma crise ecológica que prejudicam e, sobretudo, deslocam populações que vivem em regiões vulneráveis, bem como grupos sociais pobres e racializados dos centros urbanos capitalistas, que se veem afetados muito antes dos capitães da indústria”.
Ao longo do texto, valendo-se de conceitos de pensadores como Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Michel Foucault, entre outros, Connolly vai mostrando que a solução para os problemas planetários atuais não pode consistir na exacerbação do controle sobre a natureza, mas que precisará ser gerido em uma mudança de atitude em relação a ela.
Para isso, é necessário defender um “humanismo transfigurado”, que reconheça seus próprios limites, que abandone qualquer noção de onipotência, assumindo uma atitude modesta em relação ao seu lugar no cosmos, e que seja capaz de valorizar as aptidões e estratégias que, há milênios, outros seres vivos vêm empregando em favor de sua sobrevivência, sem afetar a sustentabilidade planetária.
Por isso, para avançar na compreensão da situação atual, é necessário entrelaçar múltiplas perspectivas, provenientes de diferentes disciplinas, cosmovisões e situações geográficas. Em consonância com essa ideia de um “humanismo entrelaçado”, o próprio Connolly constrói seu texto em um contínuo diálogo com referências de disciplinas como a biologia, a neurociência, a geologia, afísica, a política e a religião.
Não se trata de aspirar uma perspectiva única, mas de encontrar pontos provisórios de convergência que permitam enriquecer a análise e promover soluções criativas. Assim, no mesmo capítulo, podem aparecer citados Nietzsche e o Papa Francisco, ou Darwin e Gandhi. Trata-se de assumir que “não podemos dominar o mundo, ainda que, sim, possamos atuar nele de forma criativa”.
Entre as formas criativas de agir propostas pelo autor, destacam-se as ações micropolíticas com experimentos de papéis inspirados na ideia de “intelectuais específicos” de Foucault. O filósofo francês expôs esta ideia pela primeira vez em uma entrevista, em 1976, que foi publicada em espanhol, vários anos depois, no livro Saber e verdade, com o título A função política do intelectual. Resposta a uma questão.
Um texto mais recente, altamente recomendado, que reúne artigos de Foucault sobre este tema, é O poder, uma besta magnífica. Trata-se de ações realizadas por intelectuais que, por suas capacidades técnicas específicas, veem-se forçados a responder a situações de violência que atentam de um modo concreto contra áreas de sua especialidade: “A situação e um determinado nicho de ação os levam a se tornarem ativistas em nome de uma causa que começa a se cristalizar […] Ao mesmo tempo em que trabalham sobre suas próprias práticas, ajudam a mobilizar grandes segmentos da população e a representar a causa nos meios de comunicação”.
Um exemplo local que ilustra perfeitamente esse papel dos intelectuais específicos é o conjunto de ações que docentes e estudantes da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da Universidade de Buenos Aires estão realizando para se opor à construção de estabelecimentos gastronômicos na Reserva Ecológica da Cidade Universitária. O rol de medidas adotadas vai de bloqueios pacíficos ao ingresso de máquinas de construção à realização de oficinas de origami de espécies autóctones, passando por campanhas nas redes sociais. Criatividade, militância e conscientização confluindo para deter a exploração indevida de uma área natural.
Consciente de que tais ações micropolíticas podem ser insuficientes para reverter uma situação de dimensão global, Connolly apela para a experiência das abelhas. Quando precisam encontrar um local para uma nova colmeia, várias abelhas exploradoras partem em busca do lugar mais apropriado. No retorno, trocam informações e, ao ritmo da dança, vão segregando feromônios que ativam sua sinergia. Finalmente, forma-se um enxame que se reúne para voar até o novo local.
Tomando o exemplo das abelhas, a aposta do filósofo consiste em que as ações micropolíticas se multipliquem e se coordenem para possibilitar a emergência de acontecimentos de maior alcance, dando lugar a uma autêntica política de enxame: “A esperança está - argumenta o autor - em dar forma a um enxame pluralista, militante e inter-regional em que o próximo acontecimento desestabilizador mova grandes minorias [...]. A política do enxame é composta por múltiplos grupos sociais, regiões, níveis, processos de comunicação e modos de ação. Alguns deles, têm o potencial de aumentar e intensificar outros, pois se associam entre si”.
Acompanhando tais formas de ação, espera-se que se desenvolva um “ethos de austeridade material positiva” e “formas mais igualitárias de satisfação dos desejos” que reflitam novos modos de produção e consumo.
Dos muitos pontos destacáveis do livro (entre os quais poderíamos mencionar a lucidez e a contundência do diagnóstico da atual crise sociopolítica-ecológica; a capacidade de colocar em debate de forma enriquecedora autores muito diversos entre si; a aplicação a novos contextos de conceitos de filósofos como Nietzsche e Deleuze) talvez se deva mencionar, de forma especial, o esforço que o autor realiza para esboçar algumas linhas de ação que, com as limitações que ele mesmo aponta, permitam apostar em uma saída do niilismo passivo que costuma acompanhar tipos de trabalho assim.
O texto se completa com uma extensa entrevista no posfácio, na qual Connolly aborda boa parte de sua vasta produção, algo que é particularmente significativo para os leitores de língua espanhol, pois se trata do primeiro texto do filósofo traduzido para o nosso idioma.
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Em busca de um novo humanismo para a mudança climática - Instituto Humanitas Unisinos - IHU