26 Julho 2023
"O gesto de Cancellier, na sua tragicidade, realça o que o grande escritor havia pontuado quando designou só haver 'um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio'. Tanto mais, quanto no trágico fatal que levou à derrota do projeto de vida do reitor, se dá aquela, diz Camus, 'relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo'", escreve José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), em artigo publicado por Jornal Brasil Popular, 12-07-2023.
Afirma Albert Camus, em O homem revoltado, que o núcleo de toda revolta é o sentimento de injustiça. Essa consideração me vem à mente toda vez que penso em Luiz Carlos Cancellier de Olivo, jurista como eu, jornalista, professor universitário como eu e que como eu foi reitor, ele da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) entre 2016 e 2017, eu da UnB entre 2008 e 2012.
Cancellier e outros professores da UFSC foram investigados, em 2017, por conta de supostas irregularidades na distribuição de recursos em cursos de educação a distância da universidade. A Operação Ouvidos Moucos foi conduzida, na época, pela Polícia Federal (PF).
Em matéria do Brasil Popular, acusado de desvio de dinheiro público, Luiz Carlos Cancellier cometeu suicídio 18 dias depois de sua prisão. Agora, seis anos depois, o Tribunal de Contas da União (TCU) prova sua inocência. A delegada que prendeu ex-reitor é acusada de forjar depoimento. O jornal lembra que na época, porém, 18 dias após sua prisão, Cancellier cometeu suicídio em consequência da situação de injustiça que viveu. Preso por 36 horas e impedido de retornar à universidade, o então reitor se atirou do último andar de um shopping center em Florianópolis. No bolso, ele carregava um bilhete dizendo que sua morte tinha sido decretada quando foi afastado da universidade.
Ainda a matéria Brasil Popular dá voz ao jurista e professor Lenio Streck, para quem “o Estado tem obrigação de realizar uma prestação de contas do caso e punir os responsáveis”.
Conforme resume a CNN, após a morte do reitor, se discutiu muito sobre o modo como a operação estava sendo conduzida, a espetacularização do caso e uma suposta falta de provas. A polícia divulgou que o total de dinheiro desviado teria sido de R$ 80 milhões e voltou atrás, retificando que esse valor, na verdade, era o total destinado ao programa, mas o número já havia sido amplamente divulgado pela imprensa.
Segundo a família de Cancellier, o ato extremo foi desencadeado após a prisão do reitor em 14 de setembro daquele ano.
Ele foi detido após ser acusado de interferir nas investigações. No dia seguinte à prisão, a juíza federal Marjorie Freiberger determinou sua soltura por falta de provas apresentadas pela delegada Erika Marena, que também atuava na Operação Lava Jato. Todo o processo contou com intensa exposição e cobertura midiática, e a família de Cancellier acusou a PF de abuso de poder.
Volto a Camus. O gesto de Cancellier, na sua tragicidade, realça o que o grande escritor havia pontuado quando designou só haver “um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio”. Tanto mais, quanto no trágico fatal que levou à derrota do projeto de vida do reitor, se dá aquela, diz Camus, “relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo” (O mito de Sísifo).
Põem-se, assim, em relevo, nesse aspecto, iniciativas de organismos de defesa de direitos humanos e da cidadania, que se mobilizam, pela causa da reparação da injustiça e da necessidade de reparação que a facticidade dramática em face das circunstâncias da morte do reitor reclama.
Um lugar crítico para reconhecer os enunciados dessa formulação. Afinal, foi nesse lugar – a Corte Interamericana de Direitos Humanos – notadamente sob a presidência do juiz brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade que se deu o alargamento criativo do alcance dos direitos humanos, assim, por exemplo, o de reparação não apenas indenizatória mas de reposição da dignidade ofendida por violação de projetos de vida.
Mas o próprio Cançado Trindade, que define o projeto de vida (Sentencia de 19 de noviembre de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle), como a disponibilidade das condições integráveis ao universo conceitual do direito de reparação quando violado, porquanto “el proyecto de vida se encuentra vinculado ala libertad, como derecho de cada persona a elegirsu próprio destino. (…) El proyecto de vida envuelve plenamente el ideal de la Declaración Americana (de los Derechos y Deberes del Hombre) de 1948 de exaltar eles píritu como finalidade suprema y categoria máxima de la existência humana”, adverte para alguns obstáculos, com implicações na construção de aberturas hermenêuticas para a expansão de direitos, o que venho insistindo há muito tempo. [1]
Não se trata de relevar aquele erro de procedimento que a miopia redutora do burocrata do direito aplica por incompreensão de seu próprio alcance. Isso para dizer com Anatole France que esses são os melhores, os de boa fé, que nem sequer compreendem, quando se trate de uma estrutura complexa, colegiada, descentralizada de uma universidade pública que não é uma mera repartição, a responsabilidade não é uma precipitação de uma competência presumida. Cada um de nós reitores já tivemos ensejo de demonstrar, em procedimentos de auditoria, nas controladorias e no Tribunal de Contas, que é preciso demonstrar a cadeia, o nexo, o contínuo dessa responsabilidade, que não é presumida, mas culposa ou dolosamente demonstrada. É o que acaba de fazer o TCU em relação à responsabilidade de Cancellier, presumida num procedimento que ele nem sequer deve ter tomado conhecimento, salvo quando a ele submetidos os acordos iniciais e os relatórios de execução desses protocolos e convênios.
Me refiro aos maliciosos, aqueles que já se demonstrou o quanto baste, que desencadeiam relações indecentesa pretexto de cumprir seus ofícios. Esse é o teor de minha participação na obra Relações indecentes [2] com o ensaio "Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração". Não são amigos, mas cúmplices, a tanto me instigou o quadro de degradação funcional, no sistema de justiça no que vem sendo caracterizado como lawfare.
Cuido no meu texto, fazendo referência a registros do sítio Intercept Brasil, cujas revelações ecoaram com a virulência da indecência, agravando a enfermidade de relações que a cada nova divulgação revelam a inversão perversa do institucional que se deteriora no arranjo cúmplice de engajamentos clandestinos, nada republicanos, fortemente conspiratórios, afrontando subjetividades no plano individual e atentando corrosivamente contra a democracia, o Estado de direito, a ética funcional e os direitos humanos.
Em nosso círculo de reitores e ex-reitores, reitoras e ex-reitoras, o caso Cancellier tem sido um marcador de nossas reflexões, até porque contá-lo e recontá-lo, representa “um anteparo e uma proteção a todos e todas nós, em face de recrudescências autoritárias contra a institucionalidade universitária. Assim o fizemos em mesa na 74ª SBPC, realizada em Brasília, na UnB, em 2022 (disponível aqui), numa Sessão Especial: O Caso Cancellier, com a minha participação, do jornalista Luís Nassif e da ex-reitora da Unifesp Soraya Soubhi Smaili (uma das redatoras de nota publicada por ex-reitores conforme se verá adiante), sob a moderação do reitor João Carlos Salles (UFBA), então presidente da Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Não é um fato isolado. No limite do lawfare ele traduz o recrudescimento de uma ação hostil a autoritária que já conduziu a que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) junto com a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) e a Relatoria Especial sobre os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), aprovasse e publicasse, no fim de 2021, a Declaração de Princípios Interamericanos sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária, com o objetivo de fortalecer a proteção e a garantia da liberdade acadêmica na região.
Por isso que os ex-reitores, 56 de nós, em manifestação pública, da qual fui um dos subscritores, disponível aqui, reclamamos reparação e responsabilização:
“É preciso não só contar mais uma vez a história do reitor Cancellier, mas também exigir justiça, para que não seja esquecida e para que não se repita, por seu simbolismo e por representar um período no qual sofremos com as denúncias infundadas. Ao abrir mão de sua vida tragicamente, Cancellier também foi um anteparo e uma proteção aos demais, diante de tanta criminalização”.
[1] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015; com ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.
[2] Org. Camila Milek, Ana Júlia Ribeiro; coord. Mírian Gonçalves, Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho; São Paulo: Tirant LoBlanch/Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2020. Links para acesso gratuito aqui e aqui.
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O reitor Cancellier, o absurdo e o suicídio: reparar a injustiça. Artigo de José Geraldo de Sousa Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU