12 Julho 2023
"É o tempo comum que criamos, pro riso, pro afago, pras fagulhas. Cada uma de nós tem afeto à sua maneira. A intensidade? É forte… Bordamos sonhos. É aos sábados que também estendemos nossos sonhos no varal", escreve José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), em artigo publicado por Jornal Brasil Popular, 10-07-2023.
José é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Passe pela Asa Norte aos sábados pela manhã, na área verde da comercial da 216 Norte, vai logo se deparar com Feira Agroecológica da Ponta Norte, um colorido e buliçoso espaço de comercialização de produtores rurais ligados ao MST e à Agricultura Familiar que oferecem seus produtos orgânicos, livres de agrotóxicos, a preços de fornecedor direto cooperativado. No conjunto de barracas e também tendas de artesanato e de alimentação, tudo é muito vivo, entrecortado por apresentações culturais, e naturalmente, manifestações políticas, todas progressistas, num colorido de ideias, predominando o matiz encarnado. Ideias como as que professa o Papa Francisco, que lembrei na CPI agradece a solidariedade das famílias sem-terra com os que têm fome e que recebe dos adeptos de uma teologia rendida, a crítica de ser “demasiado encarnado e da rua”.
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Numa recanto, em formato de roda, em cadeiras e bancos, como um acampamento, cercado por tapeçarias e peças bordadas, estão as bordadeiras (e também bordadeiros) que formam o Coletivo Linhas de Resistência. Não Penélopes que fazem e desfazem seus trabalhos, enquanto sofrem a espera de um Odisseu que se demora. São, dizem, “um coletivo que borda pautas democráticas por um futuro melhor”.
Têm inspirações: @linhasdohorizonte; @linhasdesampa ; @linhasdesantos; @coletivoflorespelademocracia. São alianças que por ali se encontram: o Coletivo Flores pela Democracia DF, desdobrado do original que se instalou na vigília em Curitiba em todo o tempo dos 580 dias de prisão do Presidente Lula, aqui em Brasília, faz em crepom flores que levam o lema “Margaridas em Marcha pela Reconstrução do Brasil e Pelo Bem Viver”.
Também as Linhas de Resistência, entre muitos temas, expostos nos varais que demarcam o seu espaço na Feira, bordam atualmente temas da agenda da Marcha das Margaridas formada por trabalhadoras rurais do campo e da floresta e que tomarão Brasília nos dias 15 e 16 de agosto, para a sétima edição da Marcha que homenageia a líder camponesa assassinada Margarida Maria Alves.
Eu queria ter o talento de um Severino Francisco e ou de uma Conceição Freitas para fazer em palavras, a representação do que foi meu encontro sentipensante com esse coletivo, por coincidência, no primeiro sábado em seguida a minha participação na CPI do MST, na Câmara dos Deputados. Sobre o que foi esse depoimento ver aqui na Coluna O Direito Achado na Rua no Jornal Brasil Popular (CPI do MST: contexto e diagnóstico da situação agrária brasileira). Espero que esses dois importantes cronistas brasilienses passem um dia pela Feira e se inspirem para bordar as palavras certas.
O fato é que minha participação na Câmara abriu uma grande brecha na gaiola de ferro em que se transformou a CPI no seu intuito claro de criminalizar o MST e de afrontar os movimentos sociais no Brasil, aos quais devemos em boa medida a ação de resistência para inibir o fascismo que buscava (ainda busca) tomar de assalto o nosso país. Por isso, uma repercussão inusitada que alcançou ali na Feira, um momento celebratório, de confraternização e de reconhecimento.
Quero agradecer as minhas colegas Marisa Isar e Letícia (não sei o sobrenome da Letícia), por terem me abraçado e me levado para o aconchego da roda e de tão bem terem traduzido, o que logo chamaram de reflexão-ação traduzidas em afeto e reconhecimento político. Ela assina: @lets_do.i.t
Me aproprio a seguir da nota postada no Instagram do Coletivo, assinada por Letícia, em seu perfil de mulher bordadeira, escritora amadora e advogada. Diz ela:
Paulo Freire escreveu: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.
Uma de nós disse dias desses que “coletivo” é constituído para ser mais potente e mais forte do que as individualidades. Se assim não se configura, limita-se a ser uma mera agremiação.
Bordar parece um gesto singelo. Mais do que uma ação-reflexão, é sentir. Pulsar. Quando a linha abraça a agulha, uma dança inesperada tem início. Na medida em que linha e agulha atravessam o algodão cru, é como se os pés saíssem do chão e tecessem no céu sonhos e coragens. Um gesto de amor que, de tão grande, é indizível.
Bordar apequena as inseguranças. Faz brotar um jardim de flores na secura da terra que já não mais se reconhece como nascente de sonhos e criações e, mesmo assim, acolhe e nutre o que é vida. Bordar é alento para o futuro.
Nosso coletivo borda sonhos, uma de nós assim reconheceu essa potência criativa que nos habita. Pelo bordado, despertamos sorrisos onde há desamparo. Enfeitamos o olhar com a delicadeza de uma criança que descobre algo inusitado e fica estonteada com uma nova descoberta.
Bordar coletivamente é um ato emancipatório. É que nenhum indivíduo é capaz de emancipar-se em solidão. A emancipação acontece no compasso da dança da linha com a agulha, da boca que se dispõe a falar com ouvido atento a escutar. Bordar é partilha.
Nosso coletivo teve a honra e a alegria de receber no primeiro sábado solar de julho o professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB (Universidade de Brasília) e que dedica-se ao movimento em curso nomeado “O Direito Achado na Rua”, consistente em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito”.
É possível dizer que, a partir das reflexões e compreensões sobre a realidade diante dos nosso olhos, o Direito Achado na Rua é vocacionado à construção emancipatória do direito. Nosso coletivo borda, mesmo que em rotas paralelas com o professor José Geraldo Sousa Junior, o sonho da emancipação-afeto nesses pontos comuns.
Vê-se que tomei o título da crônica do texto de Letícia. Feliz por constatar que ela captou o que mais fortemente propõe O Direito Achado na Rua em sua perspectiva de que quando falamos em Direito falamos em emancipação, processo que só o social no seu agir coletivo pode legitimamente realizar. Como mostram os movimentos sociais. Como o confirma o MST, o que espero eu o tenha demonstrado em meu depoimento na CPI. Com toda a convicção concordamos que ninguém se emancipa sozinho, somente em conjunto, num processo de construção solidária, radicalmente democrático.
O Coletivo Linhas da Resistência, tece o amanhã. Como outros coletivos – estou pensando o Projeto Mulheres Coralinas, aqui pertinho na Cidade de Goiás (a nossa “Goiás Velho”) que apoia mulheres nas áreas da Gastronomia, Artesanato (cerâmica, bonecas, fibras naturais e bordado) e Educação, com participação de mulheres garis. Como dizem Ebe Maria de Lima Siqueira e Goiandira Ortiz de Camargo (organizadoras) de Mulheres Coralinas. Goiânia: Cânone Editorial, 2016, “é o resultado de esforço de pessoas, instituições e poder público de trabalhar a favor da cidadania, da igualdade de gêneros e da autonomia financeira das mulheres”.
Ebe Siqueira, em coautoria com Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Adriana Andrade Miranda, explicam, a partir desse coletivo, o significado do conviver para viver, tal como está no texto Conviver para viver: formação e atuação das Mulheres Coralinas no enfrentamento aos efeitos perversos da pandemia do coronavírus (que está em livro que organizei com Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Direitos Humanos e Covid-19. Volume 2. Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022). Um belo registro que Adriana Andrade Miranda está transformando em tese de doutorado na UnB (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – CEAM): Literatura e Direitos Humanos: o projeto de formação das Mulheres Coralinas na cidade de Goiás, de 2014 a 2023.
São formas de resistência mas também protagonismo emancipatório para bordar e tecer o amanhã.
Mas é também, como diz Letícia, a melhor expressão dessa intersubjetividade emancipatória que designa o sentido pulsante do sentipensar (uso o conceito emprestado do sociólogo colombiano Fals Borda) do Coletivo Linhas da Resistência: “Todo sábado a gente cuida do jardim-composição Linhas da Resistência. É o tempo comum que criamos, pro riso, pro afago, pras fagulhas. Cada uma de nós tem afeto à sua maneira. A intensidade? É forte….Bordamos sonhos. É aos sábados que também estendemos nossos sonhos no varal. Oferecemos esses sonhos ao vento, deixamos o sonhar quarar no sol. Sonho também pede afago e delicadeza…. No cotidiano, a gente veste cada sonho. Além da pele que se vê. Pro sonhar crescer e brotar”.
Mas são bordadeiras e tecelãs da manhã, como no poema Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto (A educação pela pedra) de 1966:
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
seentretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos.
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Linhas da resistência: bordar coletivamente é um ato emancipatório. Artigo de José Geraldo de Sousa Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU