24 Mai 2023
"Por uma correta abordagem dos eventos da evangelização, que não raramente foi forçada, é preciso considerar o ponto de vista de quem sofreu a missão, mas isso não é nada fácil porque faltam documentos. Ou melhor, existem poucos", escreve Claudio Ferlan, historiador italiano e pesquisador do Instituto Histórico Ítalo-Germânico da Fundação Bruno Kessler, em Trento, Itália. Em português, é autor de “Os jesuítas” (Loyola, 2018). O artigo é publicado por Domani, 18-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O artigo a seguir é um trecho do Storia delle missioni cristiane (História das missões cristãs, em tradução livre) de Claudio Ferlan publicado pela editora Il Mulino (p. 248).
Do que estamos falando quando nos referimos à ideia de “missão”? O impulso à propagação da fé pertence realmente à natureza íntima da vida cristã, como escreveu João Paulo II (1978-2005) na encíclica Redemptoris Missio? Só respondendo à primeira pergunta poderemos responder à segunda.
Segundo o teólogo jesuíta Michael Sievernich, o cristianismo é uma "religião universal que se dirige, em princípio, a todos os homens (e às mulheres, não será supérfluo especificar) e que pode criar raízes em todas as culturas, [e] teve desde o início uma dimensão missionária".
No entanto, o termo "missão" só aparece em documentos depois de vários séculos de história do cristianismo. Por isso, só podemos falar de missões em sentido estrito a partir do momento em que existirá uma organização que as regule, segundo um programa definido.
Acontecerá somente em 1622, com a constituição da Congregação de Propaganda Fide.
Isso significa que a história das missões começa em plena era moderna? Parte do que sabemos sobre a vida de Jesus e dos apóstolos, pois o próprio nascimento do cristianismo está indissociavelmente ligado à ideia de sua propagação.
Para raciocinar sobre as dinâmicas históricas são necessárias definições e proponho entender como missão a difusão da mensagem religiosa cristã por indivíduos (missionários) que se deslocam porque receberam um encargo dos seus superiores, mas também por escolha autônoma.
Esse impulso para a conversão do próximo, que se presume estar no erro por ignorância ou má-fé, não é típico de todas as religiões. Por exemplo, falta naquelas de grupos tribais e nacionais, ou em outras simplesmente desinteressadas no proselitismo. Em vez disso, está presente naquelas de natureza universalista, entre as quais o cristianismo deve, sem dúvida, ser incluído.
Antes de seu surgimento, o conceito de propagação da fé não parece ter tido nenhum peso na cultura pagã (portanto nem cristã nem judaica) dominante nos lugares da expansão inicial da religião baseada nos ensinamentos de Jesus. Certamente não era difundida a opinião de que existisse apenas uma crença válida, portanto a ideia do apostolado não tinha razão de existir: os deuses podiam ser adicionados, não se excluíam uns aos outros. O conceito de conversão – como nós o entendemos – era de fato estranho à mentalidade greco-romana, cujas religiões estavam ligadas de maneira indissolúvel à vida doméstica e cívica: pelo próprio fato de pertencer a uma comunidade (familiar, citadina) era natural honrar seus deuses protetores.
Estabelecida essa inevitável fidelidade, cada um era livre para adotar o panteão que mais lhe aprouvesse: o politeísmo, de fato, normalmente não prevê a necessidade de fazer proselitismo e vê com bons olhos o aparecimento de divindades desconhecidas. Para o monoteísmo o discurso é completamente diferente. Foi essa uma das grandes rupturas provocadas pela propagação da fé cristã, para a qual faltava tal liberdade e a adesão à nova fé acarretava o abandono da antiga; nenhuma coexistência era possível.
A história das missões cristãs é em grande parte uma história de desigualdade. Por uma correta abordagem dos eventos da evangelização, que não raramente foi forçada, é preciso considerar o ponto de vista de quem sofreu a missão, mas isso não é nada fácil porque faltam documentos. Ou melhor, existem poucos.
O que sabemos sobretudo para os séculos e para os lugares mais remotos é fruto das preferências de quem construiu as fontes, bem como os fatores que permitiram a sua conservação. Tais preferências raramente envolveram a voz dos evangelizados. Vamos dar um exemplo.
Diante da condenação proferida pelos missionários vindos da Espanha, um administrador do culto da religião difundida entre os incas ficou surpreso: por que o vinho, a bebida alcoólica dos cristãos, era considerado o sangue de Cristo e a chicha, uma bebida sagrada para a sua religião, ao contrário era condenada como um dom do demônio? Por que a primeira levava à conexão com o divino e a segunda à embriaguez da condenação eterna? Temos conhecimento dessas dúvidas graças à sensibilidade de um cronista (Nicolás Durán Mastrillo, †1653), que poderia ter evitado relatar o ponto de vista indígena (como muitos fizeram), limitando-se a falar da necessária condenação da embriaguez pré-cristã.
Quando o encontro com o outro tem por objetivo a evangelização, quem leva a mensagem cristã levanta inevitavelmente a questão de como seria possível afirmar a própria identidade com o propósito de inseri-la em um contexto religioso e cultural diferente, muitas vezes radicalmente diferente.
As respostas são múltiplas: pode-se rejeitar completamente o contexto, como pelo contrário tentar se integrar a ele, com todas as soluções que se colocam entre os dois extremos. E é precisamente nesse vasto leque de possibilidades que a história das missões cristãs (não só católicas) se coloca, em difícil equilíbrio entre adaptação e distanciamento.
Conforme antecipado, com a pressão própria de cada cronologia tão precisa, podemos remontar a 1622 a institucionalização do conceito de missão. É o ano de fundação da Congregação De Propaganda Fide, incumbida pelo papa de dirigir as iniciativas destinadas a difundir a pretensa "verdadeira fé" entre aqueles que os católicos consideravam "cismáticos" (ortodoxos) e "hereges" (protestantes), bem como entre os “pagãos”, como eram indicadas as populações dos continentes não europeus.
O conceito de "pagão" tem sua própria história, que deve ser delineada. Em tempos pré-cristãos, o "paganus" era identificado como um membro da sociedade destinado a permanecer em segundo plano: o civil em oposição ao soldado regular, o militar de baixa patente comparado ao oficial.
No entanto, pagãs eram também as aldeias e os seus habitantes eram pagãos, que começaram a ser identificados com os não-cristãos, uma vez que, pelo menos nos primeiros séculos da sua história, a fé em Jesus havia se propagado sobretudo nos centros urbanos. Foi um autor do século V, Paulo Orósio (†420), quem certificou esse costume, dando definitivamente ao termo a conotação ainda hoje mais comum: escreveu uma história contra os pagãos (Historiarum adversus paganos libri septem) identificando-os como os seguidores da religião tradicional, aquela que ainda era difundida justamente nos vilarejos, onde viviam as pessoas desprovidas de cultura.
O significado de “missão” logo incluiria a ideia de ser enviado mesmo dentro da própria área geográfica de referência, nos vilarejos mais isolados. O século XVII foi, de fato, não só o século das grandes viagens, mas também aquele da almejada reevangelização dos cristãos não católicos e dos católicos desconhecedores dos princípios fundamentais da doutrina.
Nada havia nada de inédito nisso, exceto a codificação de um novo termo, que nas décadas sucessivas seria adotado por todas as confissões cristãs.
O termo missio, derivado do verbo mittere (enviar), também se referia a uma noção familiar ao cristianismo primitivo, usada para recordar a ideia teológica do envio do Filho pelo Pai na tradução latina da Bíblia.
Daquele envio originário depois havia se gerado aquele dos discípulos sob o mandato de Jesus e aquele trinitário do Espírito Santo de parte do Pai, em nome do Filho. Aos apóstolos e discípulos teriam depois se referido mulheres e homens que contribuíram para escrever uma história ainda hoje em devir.
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O cristianismo não existe sem propagação. Artigo de Claudio Ferlan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU