13 Abril 2022
"A história dos jesuítas do século XVII nos conta que, onde há um público pronto para ler ou ouvir uma deepfake – seja ela bem ou mal feita –, é comum que haja quem esteja muito pronto para construir essa mesma deepfake".
O comentário é de Claudio Ferlan, historiador italiano e pesquisador do Instituto Histórico Ítalo-Germânico da Fundação Bruno Kessler, em Trento, Itália. Em português, é autor de “Os jesuítas” (Ed. Loyola, 2018).
O artigo foi publicado por Domani, 01-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O jornal Domani está abordando as deepfakes, mensagens de áudio/vídeo gerenciadas por uma inteligência artificial capaz de reconstruir digitalmente o aspecto e a voz de pessoas às quais se consegue fazer dizer aquilo que se quiser, graças à sincronização dos lábios e à reprodução de um áudio instruído por meio da análise computadorizada do aspecto e da voz de quem se quer imitar.
Sejam bem ou mal feitas, as deepfakes podem ser postas a serviço da propaganda bélica ou eleitoral, assim como de muitas outras coisas. Se a tecnologia que está na base desses produtos é, sem dúvida, bastante recente, o mesmo não se pode dizer da ideia que os originou.
De fato, a história é rica em falsificações criadas artisticamente para convencer alguém (ou muitos) sobre alguma coisa. Um exemplo de sucesso é o dos “Monita privata Societatis Iesu” (Preceitos Privados da Companhia de Jesus, logo após a primeira edição conhecida como “Monita secreta”, Preceitos Secretos), um livreto publicado anonimamente em latim em 1614 na Polônia, mas que logo se espalhou por toda a Europa, com ecos que ressoaram nos Estados Unidos mais de dois séculos depois.
O opúsculo é curto, 16 capítulos sintéticos que podem ser condensados em menos de 50 páginas impressas. A sua mensagem, porém, foi tão chocante para a época quanto interessante.
O autor defendia ter encontrado essas instruções por puro acaso, divulgadas dentro dos ambientes jesuíticos e destinadas a permanecer muito secretas.
Os preceitos convidavam os membros escolhidos da Companhia de Jesus a estenderem o seu poder econômico e político por meio de uma lenta, mas sistemática, inserção nos gânglios da sociedade, em todos os níveis.
Tal poder era conquistado sobretudo graças ao trabalho dos confessores. Aqueles jesuítas da época estavam muito presentes nos ambientes mais altos da sociedade moderna e também nas cortes, em primeiro lugar e com desdobramentos diferentes nas da Polônia, Áustria e França.
No entanto, não havia apenas as cortes. Em muitas e diferentes partes da Europa, acusava-se o costume dos confessores jesuítas de estabelecerem relações particularmente estreitas com viúvas ricas e mais geralmente com mulheres (segundo a cultura da época, mais facilmente enganáveis do que os homens) com grande disponibilidade patrimonial.
Um dos métodos mais utilizados para conseguir assegurar à Companhia de Jesus benefícios em vida e legados hereditários, defendiam essas pessoas, era convencer os parentes mais próximos das mulheres em questão a optarem pela vida religiosa – melhor, naturalmente, entre os jesuítas.
É inegável que a história conta como foram enormes os benefícios obtidos pela Companhia de Jesus especialmente entre os séculos XVII e XVIII, graças sobretudo aos testamentos. Pensar que tais vantagens às vezes eram adquiridas de forma pouco límpida tornava verossímeis os ataques polêmicos típicos da literatura antijesuítica. Substancialmente, tornava credíveis, embora exageradas, as páginas dos “Monita Secreta”, que naturalmente não deixavam de bater também nessa tecla.
Enfurecida com a circulação do libelo, a hierarquia romana (pontifícia e jesuítica) imediatamente partiu em busca do autor e o identificou (identificação ainda hoje difícil de criticar, é preciso escrever) em Hieronim Zahorowski (1582-1634), um calvinista polonês convertido ao cristianismo com toda a probabilidade depois de frequentar um colégio jesuíta na juventude.
A sua conversão havia sido tão convicta, que Zahorowski havia entrado na Companhia de Jesus, da qual, porém, havia saído (por caloroso convite) por ser considerado pelos seus superiores inadequado para completar o longo e fatigante percurso de formação e de estudo que levava à mais alto nível de pertencimento à ordem (professo de quatro votos). Para se vingar, Zahorowski quis ridicularizar daqueles que não o haviam aceitado nas suas fileiras.
Ele fez isso com uma perfídia de sucesso, como demonstra o capítulo no qual os “Monita” intimavam os poucos leitores admitidos ao texto a mantê-lo o máximo possível em segredo, comunicando-o exclusivamente aos padres mais dignos de confiança. Se as instruções caíssem em mãos erradas – que isso nunca ocorra!... estava escrito – era preciso negar tudo, defender que nenhum jesuíta jamais ouvira falar delas, que as instruções em vigor na ordem religiosa eram algo bem diferente, e que o que estava escrito no livreto devia ser condenado acima de tudo pelos seus próprios membros.
O sucesso editorial dos “Monita” é explicado pelo fato de que – embora aos olhos especializados pudessem parecer efetivamente aquilo que eram, um falso – eles eram, nada mais, nada menos, aquilo que um grande número de leitores realmente queria ler. A opinião de que os jesuítas tinham muito a esconder era difundida tanto entre os protestantes quanto entre os católicos: os estereótipos construídos artisticamente, assim, alimentavam também o suposto fogo amigo.
Para dar força a essa opinião, havia também a decisão da cúpula da Companhia de Jesus de manter a circulação das próprias regras estritamente reservada. Um intelectual do mais alto nível como o frade servita veneziano Paolo Sarpi (1552-1623) manifestava frequentemente na sua correspondência a obsessão por essa confidencialidade.
Ele estava convencido de que a organização da ordem fundada por Inácio de Loyola se baseava precisamente em segredos. E muitos pensavam como Sarpi: Zahorowski foi hábil em lhes oferecer o alimento que estavam procurando.
Graças também à postura de “negar tudo, negar a todos”, os “Monita” continuaram sendo considerados verdadeiros e confiáveis por séculos e oceanos de distância. Somente em 1600, eles tiveram 18 edições na Europa: além da original polonesa, houve outras na França, Itália, Inglaterra, Holanda.
Às vezes, o libelo era publicado enriquecido com outros materiais antijesuíticos, o que certamente não faltava.
Mas os defensores da obra conseguiram fazer mais. No Novo México da segunda metade do século XIX, o periódico The New Mexican propôs aos seus leitores a publicação (um capítulo por semana) justamente dos “Monita Secreta”. Isso ocorreu no auge de um grande conflito editorial com a revista dos jesuítas locais, La Revista Católica, fundada por religiosos napolitanos expulsos da Itália em 1875.
Aborrecidos com a presença incômoda dos missionários jesuítas, vários periódicos anticatólicos ou seculares alimentaram uma campanha na imprensa para defender as clássicas teses do antijesuitismo, segundo as quais a Companhia de Jesus abrigava em seu interior “defensores do regicídio, envenenadores de papas, agitadores de povos, inimigos da ordem”.
Nessa campanha, também havia lugar para a reapresentação de um falso polonês datado de mais de dois séculos e meio, um falso que, no entanto, continuava tendo as potencialidades para atrair cada vez mais novos leitores.
Em suma, a história nos conta que, onde há um público pronto para ler ou ouvir uma deepfake – seja ela bem ou mal feita –, é comum que haja quem esteja muito pronto para construir essa mesma deepfake. Devemos continuar muito atentos, assim como os jesuítas do século XVII.
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A lição dos jesuítas do século XVII sobre a construção de deepfakes. Artigo de Claudio Ferlan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU