22 Mai 2023
"Meandros dum embate central no século 21. Negando promessas da globalização, EUA tentam bloquear o acesso da China à tecnologia crucial. Taiwan, maior produtor, é peça-chave. Para reforçar sua posição, Pequim amplia alianças ao Sul", escreve Vijay Prashad, diretor do Tricontinental: Institute for Social Research e editor chefe da LeftWord Books, chefe de redação do Globetrotter, projeto do Independent Media Institute, em artigo publicado por Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e republicado por Outras Palavras, 18-05-2023.
Em 7 de outubro de 2022, o governo dos Estados Unidos implementou controles de exportação em um esforço para impedir o desenvolvimento da indústria de semicondutores da China. Um especialista no assunto disse ao Financial Times: “O objetivo da política é impedir os esforços de IA [Inteligência Artificial] e HPC [Computação de Alto Desempenho] da China”. No dia seguinte, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Mao Ning, disse:
A fim de manter sua hegemonia sci-tech, os EUA têm abusado das medidas de controle de exportação para bloquear e atrapalhar arbitrariamente as empresas chinesas. Tal prática contraria o princípio da concorrência leal e as regras do comércio internacional. Isso não apenas prejudicará os direitos e interesses legítimos das empresas chinesas, mas também os interesses das empresas estadunidenses. Isso impedirá o intercâmbio internacional de ciência e tecnologia e a cooperação comercial e causará um golpe nas cadeias industriais e de suprimentos globais e na recuperação econômica mundial. Ao politizar as questões tecnológicas e comerciais e usá-las como ferramenta e arma, os EUA não podem impedir o desenvolvimento da China, mas apenas irão se machucar e se isolar quando sua atitude sair pela culatra.
Como parte da colaboração do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social com Basta de Guerra Fria, estudamos as implicações desses controles de exportação com foco em semicondutores. O Boletim n. 7 nos ensina sobre a importância vital dos semicondutores e por que seu uso na Nova Guerra Fria não trará os frutos esperados por Washington.
Em 8 de abril, foi solicitado ao presidente do Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos EUA, Michael McCaul, que explicasse “por que os estadunidenses (…) deveriam estar dispostos a derramar sangue e tesouros dos EUA para defender Taiwan”. Sua resposta foi reveladora: “A TSMC [Taiwan Semiconductor Manufacturing Company] fabrica 90% da oferta global de chips semicondutores avançados”.
O entrevistador observou que o raciocínio de McCaul “assemelha-se com o questionamento feito nos anos 1960, 1970 e 1980 de por que a América estava gastando tanto dinheiro e recursos militares no Oriente Médio [em um momento no qual] o petróleo era tão importante para a economia”, e depois perguntou se os chips semicondutores são o petróleo “do século 21” – ou seja, um fator-chave da política externa dos EUA em relação à China. Os chips semicondutores são os blocos de construção das tecnologias mais avançadas do mundo (como inteligência artificial, telecomunicações 5G e supercomputação), bem como de todos os eletrônicos modernos. Sem eles, os computadores, telefones, carros e dispositivos essenciais ao nosso dia a dia deixariam de funcionar.
Eles são normalmente produzidos usando luz ultravioleta para gravar padrões de circuitos microscópicos em finas camadas de silício, empacotando bilhões de interruptores elétricos chamados transistores em um único wafer do tamanho de uma unha. Essa tecnologia avança por meio de um processo implacável de miniaturização: quanto menor a distância entre os transistores, maior a densidade de transistores que podem ser colocados em um chip e mais poder computacional pode ser incorporado em cada chip e em cada faceta da vida moderna. Hoje, os chips mais avançados são produzidos com um processo de três nanômetros (nm) (para referência, uma folha de papel tem aproximadamente 100 mil nm de espessura).
A indústria comercial de semicondutores foi desenvolvida no Vale do Silício, Califórnia, no final da década de 1950, dominada pelos Estados Unidos em todos os aspectos, desde pesquisa e projeto até fabricação e vendas. Desde o início, essa indústria teve importância geopolítica, com os primeiros fabricantes vendendo mais de 95% de seus chips para o Pentágono ou o setor aeroespacial. Nas décadas subsequentes, os EUA deslocaram seletivamente a maior parte de sua fabricação de chips para seus aliados do Leste Asiático, primeiro para o Japão, depois para a Coreia do Sul e Taiwan. Isso permitiu que os EUA reduzissem seus custos de capital e mão de obra e estimulassem o desenvolvimento industrial de seus aliados, continuando a dominar a cadeia de suprimentos.
Hoje, as empresas estadunidenses mantêm uma presença dominante no design de chips (por exemplo, Intel, AMD, Broadcom, Qualcomm e NVIDIA) e equipamentos de fabricação (por exemplo, Applied Materials, Lam Research e KLA). A TSMC de Taiwan é a maior fabricante ou fundição de semicondutores do mundo, respondendo por uma participação impressionante de 56% no mercado global e mais de 90% da fabricação de chips avançados em 2022, seguida pela Samsung (Coreia do Sul), que detém uma participação de 15% no mercado global. Além disso, a empresa holandesa ASML é um participante importante, detendo o monopólio das máquinas de litografia ultravioleta extrema (EUV) necessárias para produzir os chips mais avançados abaixo de 7 nm.
A maior parte da cadeia de suprimentos de semicondutores que está fora do controle dos EUA e seus aliados está na China, que se tornou o centro mundial de fabricação de eletrônicos e uma grande potência tecnológica nas últimas quatro décadas. A participação da China na capacidade global de fabricação de chips aumentou de zero, em 1990, para cerca de 15% em 2020. No entanto, apesar de seus consideráveis avanços de desenvolvimento, as capacidades de produção de chips da China ainda estão aquém do almejado, dependendo das importações dos chips mais avançados (em 2020, a China importou US$ 378 bilhões em semicondutores, 18% de suas importações totais). Enquanto isso, o maior fabricante de semicondutores da China, SMIC, tem apenas 5% de participação no mercado global, uma parcela ainda muito pequena em comparação com a TSMC.
Nos últimos anos, os EUA têm travado uma campanha agressiva para frear o desenvolvimento tecnológico da China, vista como uma séria ameaça ao seu domínio. Nas palavras do Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, o objetivo de Washington é “manter a maior distância possível”. Para esse fim, os EUA identificaram as capacidades de produção de semicondutores da China como uma fraqueza importante e estão tentando bloquear o acesso do país a chips avançados e à tecnologia de fabricação de chips. Sob os governos Trump e Biden, os EUA colocaram centenas de empresas chinesas em listas de organizações malquistas de comércio e investimento, incluindo o principal fabricante de semicondutores do país, SMIC, e a gigante de tecnologia Huawei. Essas restrições proibiram qualquer empresa no mundo que usa produtos dos EUA – efetivamente, todos os projetistas e fabricantes de chips – de fazer negócios com empresas de tecnologia chinesas.
Os EUA também pressionaram governos e empresas em todo o mundo para que colocassem restrições semelhantes. Desde 2018, Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido se juntaram aos EUA para banir a Huawei de suas redes de telecomunicações 5G, enquanto vários países europeus implementaram proibições ou restrições parciais. É importante ressaltar que, em 2019, após mais de um ano de intenso lobby dos EUA, o governo holandês bloqueou a principal empresa ASML, que constrói e fornece o maquinário de fabricação de chips mais avançado para a indústria de semicondutores, de exportar seus equipamentos para a China.
Essas políticas não visam apenas as empresas, mas também têm um impacto direto em um nível individual. Em outubro de 2022, o governo Biden restringiu “pessoas dos EUA” – incluindo cidadãos, residentes e portadores de green card – de trabalhar para empresas chinesas de chips, forçando muitos a escolher entre seu status de imigração e seus empregos. O Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, um importante think tank de Washington, afirmou que a política dos EUA está “estrangulando ativamente grandes segmentos da indústria de tecnologia chinesa – estrangulando com a intenção de matar” (ênfase nossa).
Juntamente com suas medidas de contenção contra a China, os EUA intensificaram os esforços para aumentar sua capacidade doméstica de fabricação de chips. O CHIPS and Science Act, sancionado em agosto de 2022, fornece 280 bilhões de dólares em financiamento para impulsionar a indústria doméstica de semicondutores dos EUA e restaurar a produção do Leste Asiático. Washington vê o papel de Taiwan – enquanto centro de fabricação da indústria de semicondutores – como uma vulnerabilidade estratégica devido à sua proximidade com a China continental, e está induzindo a TSMC a realocar a produção para Phoenix, Arizona. Essa pressão, por sua vez, está gerando seus próprios atritos na relação EUA-Taiwan.
No entanto, os esforços dos EUA não são infalíveis. Embora a China tenha sofrido sérios retrocessos, o país asiático tem intensificado esforços para promover sua capacidade doméstica, e há sinais de progresso apesar dos obstáculos impostos pelos EUA. Por exemplo, em 2022, o SMIC da China supostamente alcançou um avanço tecnológico significativo, saltando de chips semicondutores de 14nm para 7nm, que está no mesmo nível dos líderes globais Intel, TSMC e Samsung.
É importante notar que os EUA não visam apenas a China neste conflito: Washington teme que o desenvolvimento tecnológico da China conduza, por meio do comércio e do investimento, à distribuição de tecnologias avançadas de forma mais ampla em todo o mundo, entenda-se, para os Estados do Sul que os EUA veem como uma ameaça. Isso seria um golpe significativo no poderio estadunidense sobre esses países. Em 2020, o Comitê de Relações Exteriores do Senado dos EUA denunciou a China por facilitar o “autoritarismo digital”, porque estava “disposta a entrar em mercados menores e mal atendidos” e “oferecer equipamentos mais econômicos do que as empresas ocidentais”, apontando para países sob sanções dos EUA, como Venezuela e Zimbábue, como exemplos. Para combater os laços entre empresas de tecnologia chinesas e países sancionados, os EUA tomaram medidas legais severas, multando a corporação chinesa ZTE em US$ 1,2 bilhão em 2017 por violar as sanções dos EUA contra o Irã e a Coreia do Norte. Os EUA também colaboraram com o Canadá para prender a executiva da Huawei, Meng Wanzhou, em 2018, sob a acusação de contornar as sanções dos EUA contra o Irã.
Não surpreende que, embora os EUA tenham conseguido consolidar o apoio à sua agenda entre vários de seus aliados ocidentais, seus esforços fracassaram no Sul Global. É do interesse dos países em desenvolvimento que tais tecnologias avançadas estejam distribuídas o mais amplamente possível – e não fiquem sob controle de alguns poucos Estados.
Se você está lendo este artigo em seu smartphone, então deve saber que este pequeno instrumento possui bilhões de minúsculos transistores que são invisíveis ao olho humano. A escala dos desenvolvimentos na tecnologia digital é impressionante. Conflitos anteriores ocorreram por causa de energia e alimentos, mas agora esse conflito esquentou – entre outras questões – em torno dos recursos de nosso mundo digital. Essa tecnologia pode ser usada para resolver muitos de nossos dilemas e, no entanto, aqui estamos, à beira de um conflito maior para beneficiar poucos em detrimento das necessidades de muitos.
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Semicondutores: a era digital em disputa. Artigo de Vijay Prashad - Instituto Humanitas Unisinos - IHU