22 Dezembro 2022
“Hoje, quase todos os chips de processadores avançados são produzidos em Taiwan, e Miller apresenta argumentos convincentes de que uma mudança no controle da indústria poderia remodelar drasticamente as ordens econômicas e políticas do mundo. Ainda mais do que o comércio e a manufatura tradicionais, e ainda mais do que a potência financeira, Miller argumenta que quem liderar e dominar a produção de chips dominará a economia global”. A reflexão é de Michael Roberts, economista marxista britânico, em artigo publicado por The Next Recession e reproduzido por El Viejo Topo, 21-12-2022. A tradução é do Cepat.
No dia 6 de dezembro, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, juntou-se a Morris Chang, fundador da Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), no Arizona, em uma cerimônia simbólica de “tool-in” para marcar a etapa final do investimento da fabricante de chips em uma nova fábrica nos Estados Unidos. A TSMC está triplicando seu investimento já planejado em sua nova fábrica no Arizona para até US$ 40 bilhões, um dos maiores investimentos estrangeiros na história dos EUA, e o presidente Joe Biden visitou e elogiou o projeto.
A TSMC é a principal fabricante de chips de alta tecnologia do mundo. Tanto a China quanto os EUA importam seus produtos como componentes de seus próprios produtos. A TSMC tornou-se o campo de batalha entre os Estados Unidos e a China no comércio e na tecnologia globais, com o agravante de que Taiwan é o ponto quente do conflito geopolítico entre o crescente poder econômico da China e o domínio dos Estados Unidos (em relativo declínio) em nível mundial.
Nesse contexto, o livro Chip war: the fight for the world's most critical technology (A guerra dos chips: a luta pela tecnologia mais crítica do mundo), do historiador econômico Chris Miller, tornou-se especialmente relevante. Chris Miller acaba de ganhar o prêmio Business Book of the Year do Financial Times por Chip War, seu relato histórico da batalha global pela supremacia dos semicondutores. No livro, Miller descreve o desenvolvimento do semicondutor e como a TSMC e alguns outros fabricantes passaram a dominar o fornecimento global de microchips avançados. Sua principal mensagem é perturbadora. Se, durante a “guerra fria” entre os Estados Unidos e a União Soviética, as armas nucleares e o potencial de destruição mutuamente assegurada criaram algum tipo de trégua equilibrada que evitava o conflito direto, nesta “guerra fria” entre os Estados Unidos e a China, não há equilíbrio, mas uma corrida competitiva sem fim. “Existe um limite muito claro para o uso de armas nucleares. [As armas nucleares] são usadas ou não, ao passo que no terreno da interdependência econômica não há limite que [mostre] que você cruzou a linha. E, de fato, há muitas linhas diferentes que podem ser cruzadas” (Miller).
Miller argumenta graficamente que os microchips são o novo petróleo, o recurso escasso do qual depende o mundo moderno. Atualmente, o poder militar, econômico e geopolítico é construído sobre uma base de chips de informática. Praticamente tudo, de mísseis a micro-ondas, de smartphones ao mercado de ações, funciona com chips. Até recentemente, os Estados Unidos concebiam e construíam os chips mais rápidos e se mantinham como superpotência neste setor.
Mas a vantagem dos EUA está diminuindo, prejudicada por concorrentes de Taiwan, Coreia, Europa e, acima de tudo, China. Conforme revela Chip War, a China, que gasta a cada ano mais dinheiro importando chips do que petróleo, está investindo bilhões em uma iniciativa de produção de chips para alcançar os Estados Unidos. Está em jogo a superioridade militar e a prosperidade econômica dos Estados Unidos.
Miller explica como os semicondutores passaram a desempenhar um papel crítico na vida moderna e como os Estados Unidos se tornaram a potência dominante na concepção e fabricação de chips e aplicaram essa tecnologia a seus sistemas militares. A vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria com a União Soviética e seu domínio militar global decorrem de sua capacidade de aproveitar o poder informático de forma mais eficaz do que qualquer outra potência. Mas aqui também, diz Miller, a China está se superando: suas ambições de fabricação de chips e sua modernização militar andam de mãos dadas.
A história de Miller rastreia o desenvolvimento dos microchips desde sua invenção nos Estados Unidos, na década de 1950, na era de ouro do capitalismo americano, até o desenvolvimento de uma cadeia de suprimentos global concentrada no leste da Ásia. Hoje, quase todos os chips de processadores avançados são produzidos em Taiwan, e Miller apresenta argumentos convincentes de que uma mudança no controle da indústria poderia remodelar drasticamente as ordens econômicas e políticas do mundo. Ainda mais do que o comércio e a manufatura tradicionais, e ainda mais do que a potência financeira, Miller argumenta que quem liderar e dominar a produção de chips dominará a economia global.
O desenvolvimento e a produção de chips são agora a área-chave na tentativa dos EUA de isolar, enfraquecer e reduzir o poder econômico e militar da China e de outros países que tentam se opor aos interesses globais dos EUA. No passado, os EUA usaram o poder do dólar para eliminar seus adversários no campo das finanças globais. A nova Lei dos Chips dos EUA visa isolar a Rússia e a China da economia tecnológica global e prejudicar suas capacidades militares. A lei faz parte de uma onda de sanções estadunidenses e ocidentais em represália à invasão da Ucrânia pela Rússia. O objetivo da lei foi definido por Kevin Wolf, ex-alto funcionário do Departamento de Comércio. “O que a Administração fez foi criar uma estrutura para impedir o acesso da Rússia aos chips e dizer que esta é uma política e um objetivo”, diz Wolf. “E não vai desaparecer. Há uma enorme cooperação aliada nisso”.
A Lei dos Chips é apenas o próximo estágio de uma série de medidas para enfraquecer a capacidade tecnológica e a influência global da China. Começou com o controle das exportações para a empresa chinesa de telecomunicações Huawei durante o governo Trump. Depois de restringir primeiro a venda de tecnologia dos EUA à Huawei, colocando-a em sua lista proscrita comercial, Washington aumentou a pressão aplicando a chamada regra de produtos diretos estrangeiros. Isso permitiu que os Estados Unidos ultrapassassem as fronteiras e controlassem os produtos fabricados fora do país, caso fossem concebidos ou fabricados com tecnologia americana. “A Huawei foi um teste”, assinala Christopher Timura, advogado de negócios da Gibson Dunn, de Washington. “Os Estados Unidos viram um impacto dramático na Huawei somente quando criaram a regra de produtos diretos estrangeiros na lista de entidades”.
Usando esse mesmo sistema contra a Rússia, amplamente para alguns itens, e mais estritamente contra uma lista específica de 49 entidades militares, a Rússia é efetivamente excluída do acesso a semicondutores de ponta e outras importações de tecnologia crítica para seu desenvolvimento militar. “A Rússia está muito bem preparada, mas com o tempo isso vai degradar seriamente suas capacidades militares”, disse Julia Friedlander, ex-funcionária do Tesouro dos Estados Unidos.
Mas a China é o verdadeiro alvo, e a batalha para esmagar o avanço tecnológico da China está longe de ser vencida. A China já é o maior consumidor mundial de semicondutores. No entanto, sua autossuficiência na fabricação de seus próprios chips é extremamente baixa. As empresas nacionais chinesas tiveram uma taxa de autossuficiência de apenas 6,6% em 2021, que aumentou para 16,7% quando se incluem as empresas estrangeiras instaladas na China. Mesmo incluindo essas subsidiárias multinacionais na China, é provável que a produção de chips do país em 2026 atinja apenas 6,6% do total global. No debilitado setor de semicondutores, a China contribuiu com 16% do mercado global em 2020, mas sua participação diminuiu para apenas 9% em 2021 em meio às crescentes proibições de exportação dos Estados Unidos.
Mas a política de Pequim representa um impulso para a autossuficiência na produção de chips usando todos os poderes financeiros e de planejamento do Estado. Em 2014, a China estabeleceu um Fundo de Investimento Nacional Integrado da Indústria de Circuitos. Mais tarde, em 2015, o plano “Made in China 2025” estabeleceu uma ambiciosa meta de autossuficiência de 70% até 2025, que, dado o progresso atual, não será alcançada. Portanto, a dependência da China das economias que lhe fornecem semicondutores, especialmente Taiwan, Coreia do Sul, Malásia e Japão, permanecerá, com o risco de o fornecimento ser totalmente cortado pelo plano dos Estados Unidos.
O principal objetivo da Lei dos Chips dos EUA é financiar US$ 52 bilhões em bolsas de pesquisa e fabricação e facilitar um crédito fiscal de investimento de 25% para os produtores de chips dos EUA. Mas qualquer entidade que usar o financiamento da Lei dos Chips está proibida de “participar de qualquer transação significativa que envolva a expansão material da capacidade de fabricação de semicondutores na China”. Os Estados Unidos estão planejando mais sanções: uma proibição de exportação de equipamentos de fabricação de semicondutores para chips de memória NAND com mais de 128 camadas. O objetivo é que, ao bloquear a maior empresa NAND da China e os chips de memória de propriedade estrangeira na China continental, os fabricantes de chips de memória estrangeiros tenham que se instalar fora da China, como a TSMC já está fazendo.
No entanto, a produção de chips na China pode aumentar de 16,7% em 2021 para 21,2% da demanda chinesa até 2026. Além disso, as sanções dos EUA no campo dos semicondutores afetam a produção e os lucros das empresas americanas, e alguns estimam que podem reduzir a cota do mercado global dos EUA em 18% e afetar 37% da sua receita no longo prazo.
Não é de se estranhar que as empresas estadunidenses pareçam relutantes em restringir suas exportações de tecnologia para a China. Além disso, a TSMC pode estar investindo em uma nova fábrica nos EUA, mas não ter a escala nem o nível tecnológico das novas fábricas da TSMC em Taiwan. “Os avanços na redução da dependência da TSMC... para os processos mais avançados não serão reduzidos significativamente até que a TSMC, a Samsung e a Intel tenham transferido todas as suas instalações de ponta em escala para os EUA”, diz Paul Triolo, especialista em China e tecnologia do Albright Stonebridge Group.
Mesmo assim, apenas parte da cadeia de suprimentos será beneficiada. As fábricas que a Intel, a TSMC e a Samsung estão construindo nos EUA são todas fábricas de chips avançados; portanto, darão suporte principalmente à indústria de computadores, smartphones e servidores. No entanto, as montadoras (de veículos), que sofreram interrupções na produção devido a gargalos no fornecimento de chips, estão usando chips menos avançados que lutam para serem economicamente viáveis nos EUA, onde os custos são mais elevados.
Mas essa guerra de chips não tem a ver apenas sobre a economia; trata-se do poder político no século XXI, pelo menos para os líderes do imperialismo estadunidense. Miller deixa isso claro em seu livro e em suas outras obras, onde procura expor as ambições autocráticas e imperialistas da Rússia sob Putin. A luta para manter a supremacia dos EUA e desacelerar o desenvolvimento da China (e com sorte provocar uma “mudança de regime”) será muito dispendiosa para a economia dos EUA, mas parece valer a pena, mesmo que à custa do comércio e da produção global, e inclusive da paz mundial.
Os Estados Unidos definem essa batalha como uma luta entre a “democracia ocidental” e a “autocracia” chinesa (e russa); como uma luta pelos direitos humanos (representados pelos valores estadunidenses) contra a repressão das minorias e dos dissidentes (na China) e até mesmo o “genocídio” (pela Rússia) na Ucrânia. Isso eleva a propaganda a novos patamares de hipocrisia. O que realmente está em jogo é a supremacia global dos EUA. E isso é mais importante do que expandir o comércio e a tecnologia em benefício de todos.
Os estrategistas estadunidenses temem que a China ainda consiga superar os obstáculos que os Estados Unidos estão colocando em seu caminho. Esse medo se baseia, na verdade, no planejamento de investimentos liderado pelo Estado chinês, que os teóricos de direita chamam de “economia de força bruta” porque não depende do “livre mercado”. “Na indústria de semicondutores, por exemplo, o manual de ação de Pequim está em plena exibição. Está aproveitando grandes quantidades de apoio estatal e o roubo seletivo de propriedade intelectual para ajudar os campeões nacionais, a transferência de conhecimento de especialistas técnicos formados nos Estados Unidos e países aliados, e um tratamento preferencial para que as empresas nacionais inclinem a seu favor a concorrência em curso”. Essas são declarações de Liza Tobin, ex-diretora da China durante as Administrações de Trump e Biden e da CIA.
Essa visão também é a que inspira o comentário do keynesiano Larry Summers sobre o livro de Miller, A guerra dos chips (sublinhado meu). “Os semicondutores podem ser para o século XXI o que o petróleo foi para o século XX. Se assim for, a história dos semicondutores será a história do século XXI. Esta é a melhor crônica dessa história que já tivemos ou que provavelmente teremos durante um bom tempo. Se você se interessa pela tecnologia, ou pela prosperidade futura dos Estados Unidos, ou pela sua segurança futura, este é um livro que precisa ler”.
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Microchips: a nova corrida armamentista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU