10 Mai 2023
A vida dos pobres é “uma oração sem fim”, diz Gaia, uma menina de seis anos de família humilde, pai paralítico e mãe honesta e incansável, Antônia, responsável por quatro filhos. “Ser diferente, deficiente, te machuca”, confessa pouco antes de se mudar para um povoado perto do lago Bracciano, nos arredores da cidade de Roma.
“Não temos casas que sejam nossas, apenas casas em que alguém gentilmente nos deixa morar, e digo gentilmente para não dizer por caridade. Mas talvez a caridade seja a palavra certa, ou talvez não: talvez seja assistência, ou socorro, ou necessidade, talvez seja mentira”, coloca com a ferocidade e a raiva de quem sabe que foi expulsa precocemente de uma sociedade na qual não se encaixa.
Nem se encaixará durante a sua adolescência. A promessa de um futuro melhor se desfaz para essa “jovem e já velha”, como ela se define no final do romance El agua del lago nunca es dulce (Sexto Piso), de Giulia Caminito, com o qual ganhou o Prêmio Campiello e foi finalista do Strega em 2021. A escritora italiana apresentou o livro, traduzido por Carlos Gumpert, na 47ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires.
A entrevista é de Silvina Friera, publicada por Página/12, 09-05-2023. A tradução é do Cepat.
Caminito (Roma, 1988), que esteve em Buenos Aires a convite do Instituto Italiano de Cultura, viajou a Córdoba para participar de uma residência de redação na qual se dedicará a escrever episódios para um podcast que posteriormente serão traduzidos para o espanhol. Os episódios farão referência à vida e à obra de alguns escritores italianos do século XX, obra em que ela retomará alguns temas de seu livro de ensaios Amatissime (Amadíssimas), o último que publicou na Itália.
A escritora, formada em Filosofia Política, publicou dois romances: La Grande A, que ganhou o Prêmio Bagutta de obra-prima, o Prêmio Berto e o Prêmio Brancati na categoria juvenil; e Un giorno verrà, vencedor do Prêmio Fiesole 2019. “Somos uma geração que provavelmente não conseguirá se aposentar ou comprar uma casa no futuro”, enfatiza a escritora em entrevista ao Página/12.
Por que você se interessou em escrever um romance que tivesse como tema de fundo o problema da moradia?
O problema da moradia é comum em Roma. Depois da pandemia, a dificuldade de acesso à casa própria aumentou e muitas pessoas ficaram desabrigadas. Conheço uma mulher (o personagem de Antônia é inspirado nela) que teve durante muito tempo dificuldades para conseguir uma moradia. Pareceu-me que podia falar do problema da habitação, da falta de resposta das instituições do Estado e do itinerário burocrático que é preciso percorrer para conseguir uma moradia.
Conhecemos a parte monumental e paisagística de Roma, mas é uma cidade atualmente muito inabitável porque os serviços públicos estão cada vez menos a serviço dos cidadãos. Quem já tem problemas econômicos encontra-se em uma cidade muito violenta. A Itália tornou-se um país muito violento para as pessoas que precisam de assistência.
A educação é muito importante para a mãe de Gaia porque ela considera que é a via de acesso ao progresso. O que acontece quando a educação não é suficiente para ter uma vida melhor do que os pais?
Este é um dos temas importantes do romance. Queria construir uma parábola que acompanhasse a vida da protagonista desde a infância até a tentativa de entrar na idade adulta e para quem esse momento de integração não chegou. Esta impossibilidade de se integrar responde à realidade de toda uma geração na Itália. Se é verdade que depois da Segunda Guerra Mundial houve uma importante democratização da cultura por meio da educação e que quem estudava conseguia um emprego melhor, com a crise de 2006-2007 na Itália o mundo do trabalho tornou-se fragmentado e precário, tornou-se mais difícil, mais hostil.
Agora tornou-se natural que pessoas com estudos universitários não têm garantia de uma oportunidade de trabalho satisfatória. Então a mentalidade de que se você estudar vai ter uma vida melhor está se perdendo. De fato, o trabalho de pesquisador universitário é um dos mais precários. Gaia não consegue se inserir no mundo do trabalho relacionado ao que estudou. O romance é uma história de fracasso e frustração.
Como uma geração que está estudando e terá empregos mais precários processa essa frustração?
Não sei como se processa esta frustração... Nos últimos dez anos este problema não foi resolvido, que consiste não tanto no fato de não conseguir emprego (que é, mesmo que seja de camareira, mal pago, precário). Acontece que as pessoas que têm um determinado tipo de estudo não vão encontrar trabalho relacionado ao que estudaram, como uma licenciatura em humanidades como Filosofia.
Continua a ser um investimento para as famílias que seguem na expectativa que com uma faculdade os filhos tenham um bom emprego; mas isso não acontece. Tenho o exemplo próximo da minha prima, que fez Direito durante sete anos, depois fez um estágio em um escritório de advocacia, mas não conseguiu se sustentar com a profissão e hoje dirige um táxi, que era do meu tio. Os jovens da minha geração se sentiram refletidos no personagem de Gaia, enquanto os leitores mais velhos leram o romance com alguma dor, porque não correspondia aos ideais com os quais foram criados.
Por que é tão difícil imaginar o futuro tanto no romance como na realidade?
Nossa geração perdeu a esperança no futuro. Eu vivo fazendo projetos a médio e curto prazo. Somos uma geração que provavelmente não conseguirá se aposentar ou comprar uma casa no futuro. O romance fala dessa falta de perspectiva, que contraria a tradição italiana de sustentar um filho ou uma filha que vai fazer uma faculdade e estabelecerá cedo um núcleo familiar. Isso está mudando radicalmente na Itália. A taxa de natalidade é muito baixa; o fato de não querer ter filhos é um dado importante a respeito da impossibilidade de imaginar um futuro.
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“Nossa geração perdeu a esperança no futuro”. Entrevista com Giulia Caminito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU