10 Abril 2023
"Não somos um deserto graças à floresta amazônica e à Cordilheira dos Andes", afirma professor Althen Teixeira Filho.
A reportagem é de Fabiana Reinholz, publicada por Brasil de Fato, 09-04-2023.
Crítico do avanço sem medida dos agrotóxicos no Brasil, o professor Althen Teixeira Filho escreveu uma carta aberta à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Nela, alerta que o chamado agronegócio está aniquilando as pastagens do Rio Grande do Sul em favor da soja.
Lecionando no Instituto de Biologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), nota que o solo gaúcho, com uma variedade de 450 espécies de gramíneas forrageiras, está sendo devastado, com destruição de vertentes, em favor das lavouras de exportação. Mas a estiagem prolongada também abarca a Argentina, o Uruguai e o Chile, que sofre a pior escassez de chuvas em 14 anos - acontecimento que, segundo Teixeira, também traz marcas da ação humana.
Nesta conversa com Brasil de Fato RS, ele avisa que o Pampa gaúcho é o bioma que mais perde vegetação natural no país.
O senhor escreveu uma carta aberta à ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, alertando-a sobre o quadro do Rio Grande do Sul, sofrendo mais um ano de seca. O que o ministério – e a secretaria estadual – poderiam fazer para enfrentar o problema que é recorrente?
Veja só, já se coloca uma questão importante na pergunta de que é recorrente. Então não é novo. Sabemos dele há muito tempo. Essa seca não é do Rio Grande do Sul, não é da Argentina, do Uruguai ou muito menos do Chile. É uma seca da região Sul.
Assim como a floresta amazônica envolve vários países, o Cone Sul também envolve vários países. Não dá para tratar a floresta amazônica só dos 51% do Brasil. O combate deve ser dos países do Cone Sul. Por isso, minha carta à ministra não atenta somente ao governo do Rio Grande do Sul, que é parvo, é equivocado, e mais, atende interesses particulares como os da Farsul (Federação das Associações Rurais/RS) na questão da seca.
Os grandes produtores rurais estão querendo agora a abertura de poços. Esquecem o que aconteceu na Índia. A Índia padecia de uma falta de poços muito grande. Teve seca, começou a explorar água subterrânea, acabou a água subterrânea e eles estão com extrema dificuldade. E a preocupação é que isso pode acontecer aqui.
O que poderia ser feito então, já que os poços não são uma alternativa viável e sustentável?
Althen - As questões que pontuo não são para a questão emergencial. Para a questão emergencial é conscientização da população nesse momento, principalmente a população urbana. Parece que não se tem nenhum problema com água aqui. Vejo aqui em Pelotas é o pessoal lavando carro, utilizando água de forma indevida, jogando água na calçada. Devemos entrar nos lares e informar às pessoas do momento difícil que estamos passando.
Isso seria possível através de uma ação em cadeia de rádio e televisão, mais inserções comerciais, em termos elucidativos, falando para as pessoas da boa forma de utilizar a água que nós não temos. Como lavar louça, como tomar banho, como fazer a barba, como escovar os dentes, como regar os jardins. Pensar na coleta de água da chuva. São questões mais emergenciais.
A longo tempo, é fundamental uma lei de preservação do solo. A Organização das Nações Unidas (ONU) relata que quase 50% do solo no mundo está degradado por mau uso.
A conservação do solo é fundamental. No Rio Grande do Sul, temos gramíneas leguminosas maravilhosas para a nutrição do gado. O estado é uma área para a criação de gado importantíssima que estamos destruindo para colocar soja, uma invasora, literalmente. E destroem a Amazônia para colocar gado. É uma atitude muito burra desse pessoal. Temos que preservar o Pampa gaúcho para o que ele serve.
Estão passando com trator por cima das nascentes para plantar soja. Estou dizendo que não deve se plantar soja, milho, arroz, feijão? Não, não estou dizendo isso. Mas (plantar) em áreas que sejam minimamente razoáveis. Temos notícia de municípios que estão destruindo o que chama de surgimento de olhos d’água, as nascentes, passando o trator por cima para plantar soja, com estímulo da Farsul. Acham que da terra se tira tudo e não precisa se colocar nada.
Todo esse material retirado do solo, seja para alimento, seja para o agronegócio, depaupera e prejudica o solo. Temos que ter uma relação com o solo minimamente inteligente. Os caminhões que passam com toras para produzir pasta de celulose estão levando nutrientes do solo. Também soja que é exportada leva nutrientes do solo: nitrogênio, fósforo, potássio, outros tantos. E a própria fauna edáfica, que são aqueles animais que vivem naturalmente do solo, excetuando os vertebrados, estão sendo dizimados.
O uso inteligente e civilizado da terra é fundamental. São várias coisas que se pode fazer. Preservação de matas e das vertentes. Estimular o agricultor familiar que tem vertente deveria ser uma ação dos governos estadual e federal. Se ele (o agricultor) tem uma vertente, que cerque a sua vertente. Não permita o pisoteio do gado ali. Não estou dizendo que o gado deve ficar sem água. Faça um local para o gado saciar a sede. Cerque e cuide, e os governos do estado e federal que paguem por esse serviço ambiental.
O agricultor familiar, o quilombola, está extremamente esquecido. Têm formas inteligentes de apoiá-los e de que isso traga benefícios. A água que verte desses poços vai alimentar os nossos mananciais urbanos. As pessoas têm que lembrar disso.
O senhor também destaca que o “Atacama é aqui”. O Rio Grande do Sul está localizado em uma latitude em que em outras partes do mundo existem desertos. Qual a particularidade que faz com que aqui não seja um deserto? E isso está a perigo com as mudanças climáticas?
Eu fiz essa analogia com o Atacama porque na região oeste do estado a umidade relativa do ar estava abaixo ou igual à do Atacama. A pergunta é muito importante pelo seguinte: essa região nossa aqui tem a mesma localização geográfica de outros desertos. Não somos um deserto graças a uma composição geográfica importantíssima que é a posição da Amazônia - e o fato da Amazônia ter em torno de 600 bilhões de árvores - e a Cordilheira dos Andes.
A Amazônia, por dia, produz de evapotranspiração (conjunto formado pela evaporação da água do solo e pela transpiração dos vegetais) 20 bilhões de toneladas de água. É mais do que o rio Amazonas, que é o maior em volume de água do mundo. A Amazônia produz 20 bilhões diários de água e joga tudo isso na atmosfera. É claro que muito cai para ela mesma, mas o resto é levado por ventos numa colocação científica, mas que eu acho muito poética, que são os rios voadores. E esses rios voadores se dirigem para região sul e alcançam até aqui o Uruguai. Esse quadrilátero formado de Cuiabá até Buenos Aires, e dos Andes até São Paulo, é irrigado. Somos irrigados por chuva que vem da Amazônia através desses rios voadores.
É por isso que nós não temos essa região desértica aqui. Somos umidificados, somos vivificados pela floresta amazônica que está sendo destruída há muito tempo. Já fui, enquanto estudante, à floresta amazônica. É uma coisa maravilhosa. Mas está sendo destruída por conta da ganância desse pessoal que só quer tirar ouro. E te pergunto: para que que serve o ouro hoje em dia? Nada. Não é feito dente, não é utilizado para roupba de astronauta, não é feito para esses disquetes de memória, nada. O ouro é feito para ser retirado como uma reserva de metal para ser jogado em cofres. É isso.
E aí esses plantios de soja, essas lavouras oceânicas, que o solo não aguenta tanta extração de minerais, têm que tirar mineral do lado. E aí entra outra face, a agronegocial, que é mineração desnecessária. Porque a nossa fauna edáfica, que é a vida biológica dos solos excetuando-se os vertebrados, é destruída pelos agrotóxicos. Não sobrevive. Tua pergunta me fez pular de um ponto para outro, mas eu retorno: a floresta amazônica é vital para a vida e sobrevida na América do Sul e para a questão global.
Permita terminar essa questão citando algo que se chama serviço ambiental. Se alguém imaginasse: lá no norte tem muita água, vamos fazer essa água evaporar para vir até o sul, o que a Amazônia faz de graça. Se fôssemos fazer disso um projeto da espécie humana, precisaríamos da energia de 20 mil Itaipus para fazer essa água evaporar. Temos isso de graça e as pessoas não se dão conta.
Por que somos assim? Não é por falta de conhecimento que a gente sabe disso há muito tempo. É por uma perspectiva de ganância.
A monocultura, especialmente a soja que, nas últimas décadas, dominou o solo gaúcho, pode contribuir para a desertificação do Rio Grande do Sul?
Sem sombra de dúvida. Não estou falando contra a soja. Estou falando contra o excesso de qualquer coisa. É interessante lembrar o seguinte: temos 30 mil espécies de plantas comestíveis no mundo, mas nos alimentamos com aproximadamente 20 espécies vegetais. Temos uma rica diversidade alimentar mas fazemos monocultivos. Para que é essa soja? É para ser exportada. São grãos transgênicos, com baixa qualidade nutricional.
Esse grão é exportado para alimentar animais no exterior. Temos hoje 33 milhões de pessoas com fome e exportamos (soja) para alimentar animais... Esses monocultivos são extremamente prejudiciais. São responsáveis pelo aumento da seca porque destroem vertentes e nichos ecológicos para plantar mil ou dois mil hectares. Destroem o meio ambiente, nichos ecológicos, floresta, regiões de sombra.
A destruição dessas árvores faz o ressecar o solo, além da destruição de nichos, além da morte de animais de sede. Incrementa mais a exposição do solo à ação do sol, fazendo uma transpiração expressiva, matando mais a vida e aumentando a temperatura do planeta.
É muito diferente o efeito do sol numa terra com pasto e com árvores do que num solo ressecado. E contribui para a questão da seca.
Falando de monocultura também, tem a questão do eucalipto. Estudos apontam que um pé de eucalipto adulto consome até 30 litros de água por dia. Se for assim, como conciliar a preservação do lençol freático com tal consumo, uma vez que o Rio Grande do Sul possui 592 mil hectares plantados com eucalipto?
O eucalipto não traz prejuízo só por isso. De novo quero dizer que não sou contra eucalipto bem plantado e bem utilizado. É uma árvore exótica vinda da Austrália e não serve pra móveis. Aqui são lavouras de árvores. Não são reflorestamento. Isso é outra propaganda enganosa do agronegócio. Essas lavouras retiram grande quantidade de nutrientes do solo e de água através da evapotranspiração e alteram o clima de determinadas regiões.
No tempo dos reflorestamentos, o EIA/RIMA da (empresa) Votorantim Celulose e Papel sobre os plantios de eucaliptos, chamava isso de reflorestamento. Era uma burla científica, uma enganação. Comparava o consumo de água do eucalipto com uma árvore da Amazônia. Mas eucalipto é de uma região e a árvore da Amazônia é de outra, onde a árvore fica mergulhada, algumas vezes em alguns metros, e o eucalipto não. O eucalipto arranca nutrientes do solo, arranca água do solo, causa afastamento do homem no campo.
É um problema social gravíssimo. Altera a cultura do Pampa e gera desemprego. A colheita não é feita de forma manual e sim com maquinário. Lavouras de eucalipto geram lucros para empresas que não são daqui, como é o caso da CNPC.
Não exportamos papel, exportamos pasta de celulose. Fazemos a destruição do campo, a colheita, que enche a estrada com caminhões que esburacam (o asfalto), pesados, bitrens, para levar (a carga) para uma fábrica onde faz clareamento do eucalipto com substâncias altamente tóxicas e danosas às pessoas e ao meio ambiente. Para fazer o quê? Tijolos de pasta de celulose, que é um produto sem valor agregado, exportado ao exterior a preço vil, e lá eles fabricam o papel.
Acho que foi em 2002 que vendemos por um preço vil a pasta de celulose e importamos 800 mil toneladas de papel branqueado e pronto. Isto se chama agrotecnocolonialismo. É o colonialismo em essência que temos: vendemos matéria-prima e compramos produtos manufaturados.
Há muitos anos os movimentos ambientalistas alertam para a questão dos desertos verdes. Em 2021, foi lançado um manifesto a respeito. Como disputar com empresas deste porte, muitas delas multinacionais? Como fazer essa disputa na sociedade?
É extremamente difícil. As pessoas que se postam contrárias a esse agronegócio, sofrem perseguições. Posso te dizer que sofri vários tipos de perseguições sérias. Temos pessoas que se afastam do Brasil por ameaças, inclusive às suas vidas. A professora Larissa Mies Bombardi, da USP, saiu do Brasil pra preservar a sua tranquilidade emocional e quiçá a própria vida.
É uma luta absolutamente desigual. (Multinacionais) de agrotóxicos lucram mais de R$ 100 bilhões por ano na venda desses químicos que trazem destruição às pessoas, à natureza. O agrotóxico não é problema só pelo que mata na hora, mas deixa doentes pessoas submetidas às subdoses.
O senhor falou da questão do agrotóxico e me lembrou sobre a mudança do Código Ambiental do estado promovido pelo governador Eduardo Leite e toda a mobilização que houve em torno dela...
O código ambiental foi construído com anos e anos de debate na comunidade, no meio científico, nas universidades. Foi uma conquista qualificada da civilidade, das universidades, do meio de pesquisas e da própria Assembleia Legislativa. O código ambiental antigo tinha a aprovação de 100% da Assembleia. Era concordância geral.
Mas o que aconteceu? Infelizmente, e eu digo com muita tristeza isso, o governador Eduardo Leite fez a alteração com reles representantes da Assembleia e também do interesse privado. E a questão foi a seguinte “Precisamos modernizar o código ambiental”. Uma falsidade muito grande. Essas pessoas deveriam ser processadas e serão processadas em tribunais de razão, de ética, de bom-senso, de civilidade.
Com o novo código ambiental implantado pelo setor do agronegócio, governo do estado e parcela da Assembleia Legislativa - porque tem que englobar esses três grupos - tiraram a proteção de árvores símbolos do Rio Grande do Sul. Uma corticeira, uma figueira, perderam a proteção.
A ONU tem alertado que o solo está degradado por ações humanas equivocadas. Agora, eles não têm mais preocupações ao fazer um condomínio porque, se tem uma figueira ou uma corticeira, pode derrubar. Esse novo código retirou a proteção que as dunas faziam em áreas de costa do Rio Grande do Sul. E temos uma costa submetida a ventos muito fortes. A (situação da) Lagoa do Peixe, que eu faço referência na carta, ameaça a própria manutenção de espécies como o flamingo.
Duas coisas deveriam ser recompostas: o novo Código Ambiental e a nova Lei dos Agrotóxicos, que permite que agrotóxicos proibidos em outros países sejam utilizados no Brasil, o que é um absurdo. E eu recomporia a Fundação Zoobotânica/RS. Destruir instituições de pesquisa, ensino e de proteção das pessoas, é (ação) de governos autoritários, impositivos.
Ao falarmos em desertificação o quanto é ação da natureza e o quanto é ação do ser humano?
A natureza se organiza, reorganiza, compõe e recompõe por ações titânicas, por modificações de placas tectônicas, ação de clima. De fato, o clima altera muito. Mas, nesse momento, e tem publicações que comprovam isso, as alterações climáticas estão ocorrendo pelas ações do homem. A ONU tem alertado para a degradação do solo. Está degradado por ações humanas equivocadas. Podemos produzir tranquilamente e não precisamos de agrotóxicos para produzir.
Essa degradação do solo que vemos, problema de seca, problema de destruição ambiental, é sim motivo de preocupação que surge do agronegócio, de projetos pessoais. Em nome do 1,1% mais rico, que detém 45% da riqueza mundial, estamos destruindo o planeta.
Tem um artigo da organização Amigos da Terra que trata disso, entendendo que as empresas transnacionais precisam ir ao banco dos réus.
Não tenho dúvida que sim. Mas acho que teriam de ir para banco dos réus de mãos dadas com políticos que mentem para ser eleitos e que, eleitos, beneficiam empresas particulares, que dizem que estão pensando na geração de emprego e destroem códigos ambientais. E que distribuem venenos proibidos em outros países, que estimulam a aquisição de armas e a agressividade entre as pessoas... Vai precisar de um julgamento bem longo.
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Seca no RS: pesquisador aponta que plantação de soja e eucalipto nos Pampas aumenta estiagem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU