06 Março 2023
“Sinto-me um derrotado, mas faria tudo de novo.” No dia 3 de março, Enzo Bianchi festeja seus 80 anos com uma conferência no Clube dos Leitores de Turim, comentada por Umberto Galimberti e Carlo Petrini.
A reportagem é de Domenico Agasso, publicada em La Stampa, 02-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O irmão Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, da qual foi dramaticamente afastado, se revela ao La Stampa.
Segundo ele, a guerra na Ucrânia, "para mim significa o fim de um ecumenismo tecido por 50 anos diretamente com essas pessoas, indo à Ucrânia, a Moscou, hospedando-as em Bose, participando de seus congressos, das academias teológicas. Agora, não sei por quantas décadas não haverá mais paz, porque, quando a mistura entre nacionalismo e religião toma conta, o ódio se torna profundo, radical, e não é fácil extirpá-lo. Que tristeza ver a ortodoxia aos pedaços. Sinto uma derrota".
Você e seus amigos queriam mudar o mundo nos anos 1960 a partir de Bose: conseguiram?
(Sorri.) Eu sempre digo: antes queríamos mudar o mundo e a Igreja. Agora que estou velho a minha grande luta é contra a eventualidade de que o mundo e a Igreja me mudem. Acreditávamos na sociedade: em 1968, ficaram impressas em mim todas as esperanças que tínhamos de um futuro melhor, que alimentávamos junto com tantos ativistas nos anos anteriores em Turim, personagens que depois se tornariam líderes nacionais da contestação. Eram meus amigos, frequentavam a minha casa na Via Piave. E em Bose tínhamos confiança na Igreja do pós-Concílio Vaticano II. Passaram-se os anos, e nos demos conta de que não conseguimos mudar nada.
Portanto, você é severo com a instituição Igreja...
Isso me dá tristeza, porque ela não mudou tanto quanto deveria. Ela se contém apenas porque os poderes seculares não permitem mais que ela seja tão “mandona” quanto antigamente. Mas ela teria todas as tentações para isso. Tem o Papa Francisco que está tentando mudar esta Igreja, mas está se fatigando muito. Temo que a Igreja seja incapaz de reformar a si mesma.
Naquela época, você também tinha adversários. Ou estou errado?
Não está errado.
Que papel eles tiveram?
Não me feriram. Eu cresci com duas certezas: a primeira é que nunca se deve mendigar a liberdade. Nós a exercemos, e ponto final. Sempre devemos manter as costas eretas, mesmo nas tempestades que podem nos sobrecarregar. Já ouvi muitas calúnias sobre mim. Todas caíram. Guerrear contra quem lhe calunia, muitas vezes por inveja, significa gastar energias inúteis, dando excessiva importância aos caluniadores. “Eu também tenho muitos inimigos”, disse-me certa vez o Papa Bento XVI com muita simpatia. Então, por que me incomodar se essas pessoas vêm para o ataque de vez em quando? Eu sempre penso na calúnia de um personagem de certa importância que disse anos atrás que eu tinha um filho: o que eu devia fazer? Em certo momento, respondi a quem me interrogava: mostrem-me a mulher com quem eu o teria concebido. Passaram-se 10 anos, e o suposto filho não apareceu. É claro que eu também não suporto muito quem lhe faz elogios, aperta sua mão e, assim que vai embora, depois de lhe dizer “bravo!”, continua seu caminho insinuando algo contra você. E esse é um dos vícios eclesiásticos mais praticados. A hipocrisia dificilmente é um pecado perdoável.
O adeus forçado de Bose: como você o descreve hoje?
Um momento de grande dor. Porque me senti traído por alguns coirmãos. E, como não recebi explicações, nunca soube exatamente as acusações, senão muito gerais. Além disso, sofro com a medida que afetou os outros três coirmãos mandados embora – Goffredo Boselli, Lino Breda e Antonella Casiraghi –, porque entendo que, como fundador presente, eu podia causar alguns problemas, mas eles três, na minha opinião, são vítimas de uma injustiça vergonhosa. Foi uma obstinação.
Mas você tem algum arrependimento ou remorso?
Não. Refleti muito sobre isso. Não consigo me imputar erros ou pecados tão graves que justifiquem o tratamento que sofri. Senão os equívocos que todos podem cometer em qualquer situação, e que eu posso ter cometido em um arco tão amplo da vida.
E agora como se sente?
Consegui recomeçar, com uma certa serenidade. Já vi todo o afeto dos amigos, dos hóspedes, confirmado e até duplicado. E assim, pouco a pouco, recuperei a esperança. As pessoas vêm me encontrar todos os dias, não me sinto sozinho. Retomei as conferências como antes, ou talvez mais do que antes: também sou convidado por quem deseja o testemunho de uma pessoa que sabe pagar o preço pessoalmente.
Como é sua relação com o Papa Francisco?
Ótima. O pontífice não só está a par das minhas condições, como também me conhece, entendeu toda a situação. Ele me escreveu uma belíssima carta, interessa-se por mim, frequentemente me envia saudações. Sempre fico muito impressionado com o afeto dele por mim.
E agora você está prestes a inaugurar uma nova comunidade?
Não será uma nova Bose. Com outras pessoas que querem continuar levando uma cotidianidade comum, procuramos e encontramos uma casa de campo: “Casa della madia”, em Albiano d’Ivrea. Os amigos, a começar por Valentino Castellani, fundaram um comitê, e coletamos o dinheiro para comprá-la. Tudo vai pronto em junho, creio, e lá iremos nós, um pequeno grupo, cinco ou seis.
Para fazer o quê?
Será um lugar de hospitalidade, de intercâmbio e encontro, de estudos. Não mais de vida religiosa-monástica. Até porque absolutamente não quero concorrência com Bose. Certamente, haverá uma horta que eu vou cultivar. É a paixão da minha existência.
Quem é Deus para você?
Sempre percebi a palavra “Deus” como ambígua, insuficiente. Sinto uma grande relação com Jesus Cristo. Acho que vou para Deus, vou conhecê-lo, por meio de Jesus Cristo, mas não sei quem é Deus, não sabemos de nada, ninguém nunca o viu, falamos demais d’Ele sem conhecê-lo. Na minha opinião, um dos maiores erros é continuar falando de Deus quando Deus permanece incognoscível, “O” mistério. Para mim, basta Jesus Cristo, que me levará a Ele. Jesus Cristo é a referência para mim, é ele a explicação e a narração de Deus. Não vou além. Não gasto tempo questionando sobre Deus ou anunciando a Deus.
Como está vivenciando a guerra no Leste Europeu?
Muito mal, porque eu conheço a Rússia, a Ucrânia, Kirill, os líderes ortodoxos da Ucrânia, o chefe da Igreja Católica Bizantina. E, portanto, vê-los envolvidos em um conflito, no qual se acaba abençoando as armas, desejando a derrota do inimigo e pedindo a Deus a vitória é algo que desestabiliza a minha fé cristã. E não só.
O que mais?
Tudo isso para mim significa o fim de um ecumenismo tecido por 50 anos diretamente com essas pessoas, indo à Ucrânia, a Moscou, hospedando-as em Bose, participando de seus congressos, das academias teológicas. Agora, não sei por quantas décadas não haverá mais paz, porque, quando a mistura entre nacionalismo e religião toma conta, o ódio se torna profundo, radical, e não é fácil extirpá-lo. Que tristeza ver a ortodoxia aos pedaços. Sinto uma derrota. Uma dupla derrota minha.
O que quer dizer?
Sinto-me derrotado nos dois sonhos da minha vida: em nível de vida comunitária, porque os sentimentos em Bose foram deturpados; e no ecumenismo. De verdade. Mas faria tudo de novo, porque estou convencido de que esse é o caminho, cristão e humano.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O sabor da derrota. Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU