23 Fevereiro 2023
Um dos sinais de que a transformação está ocorrendo é a resistência cada vez mais estridente que ela está provocando. A oposição a Francisco ao longo de seu pontificado foi mais intensa e feroz precisamente em sua reforma da autoridade e do governo, e notadamente nos Sínodos e ao redor deles. Há uma nova disposição na Igreja Católica, modelada pelo Papa Francisco, para manter suas divergências em uma tensão frutífera, permitindo que o Espírito mostre novos caminhos que transcendam essas divisões.
O comentário é de Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente em português é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco.
O artigo foi publicado em America, 16-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O caminho estava marcado desde o início, mas, olhando para trás depois de 10 anos, ele pode ser visto com mais clareza: o Papa Francisco buscou uma transformação da vida e da cultura internas da Igreja Católica, em cujo centro está a conversão do poder.
Ele anunciou isso na homilia de sua missa inaugural em 17 de março de 2013, quando nos pediu para nunca esquecer que o verdadeiro poder é serviço. Ele se referia naquele momento ao poder que lhe havia sido conferido como papa: inspirar-se no “serviço humilde, concreto e fiel” de São José, proteger os pobres e cuidar da criação.
Mas, assim como ele ensinou e favoreceu ao longo da última década, toda verdadeira autoridade na Igreja é a participação nesse mesmo poder divino. De Roma, passando pelo colégio dos bispos, estendendo-se pelos sínodos, até toda a Igreja, a recuperação daquele poder divino que serve tem sido a marca de sua reforma. E seus frutos são visíveis.
Até pouco tempo atrás, onde o Vaticano era conhecido pela sua arrogância, seu centralismo e seu autoritarismo, existe agora um clima de serviço e de liberdade. O fluxo constante de diretrizes emitidas sem antes envolver as partes envolvidas secou há muito tempo. As poucas diretrizes que o Vaticano emite hoje em dia seguem consultas extensas e pacientes. Roma não usa mais denúncias anônimas (“delações”) para disciplinar os bispos, e é difícil lembrar de um único caso na última década em que a ortodoxia de um teólogo foi posta sob julgamento.
Os bispos das Igrejas locais em suas visitas ad limina ao Vaticano ficam surpresos agora ao descobrir que não são mais tratados como subordinados. As autoridades olham nos olhos dos bispos visitantes, querem ouvir e ajudar. O artigo número 1 da nova constituição apostólica da Cúria Romana, Praedicate Evangelium, implementada no ano passado, deixa claro que a Cúria “não se situa entre o papa e os bispos, mas coloca-se ao serviço de ambos”, facilitando uma troca de dons entre as Igrejas locais.
A Cúria Romana não age mais para bloquear e controlar o acesso ao papa, e a corrupção que acompanhou esse papel de guardiã já virou história. Também já foram embora os poderosos secretários papais. Os secretários de Francisco têm um perfil tão reservado que a maioria teria dificuldade em dizer quem são.
Com João Paulo II, os órgãos romanos que representam um milhão de religiosos e religiosas do mundo, vistos com suspeita pelo Vaticano, tiveram negado um encontro com o papa durante mais de 10 anos. Agora, as reuniões de Francisco com as duas organizações internacionais que representam as religiosas e os religiosos (a USG e a UISG, respectivamente) são tão frequentes que geram pouco comentários.
A governança papal agora não é remota e impessoal, mas “colegial” – isto é, em parceria com o colégio dos bispos por meio de consultas regulares e trocas de fluxo livre. O Sínodo dos bispos não é mais administrado pela Cúria para impedir a discussão aberta e censurar o questionamento, mas se tornou um autêntico mecanismo de discernimento.
Em 1999, o cardeal Carlo Maria Martini pedia “um instrumento mais universal e de autoridade” para lidar com questões doutrinais e pastorais intrincadas, “no pleno exercício da colegialidade episcopal”, e agora ficou claro que, na reencarnação do Sínodo na última década, Francisco criou justamente isso.
As estruturas e o governo da Igreja universal agora refletem melhor o que Francisco chama de “estilo de Deus”: ternura, bondade e proximidade. Como ele disse em sua missa inaugural: “cuidar, proteger – isso exige bondade, exige uma certa ternura”. É um grande erro dos críticos do papa ver esse tipo mais vulnerável de autoridade como fraqueza ou perda de coragem. É uma marca da verdadeira força da Igreja confiar não na potestas – o “poder sobre” – mas no ministerium do poder divino.
Essas e muitas outras mudanças apontam não apenas para uma reforma de governo, mas também para uma mudança de agência, de ação: de uma confiança semipelagiana no poder da lei para uma nova confiança no poder do Espírito. A unidade já não se impõe pela coerção da uniformidade, mas é o dom que brota da comunhão, que se torna possível por uma cultura da reciprocidade e da escuta recíproca (quando os atos jurídicos foram necessários – vem à mente a regulamentação da missa tradicional em latim por parte do Papa Francisco em 2020 – foi para colocar limites que defendam essa cultura).
Na Praedicate Evangelium, Francisco é explícito ao afirmar que a reforma busca recuperar a “experiência de comunhão missionária vivida pelos Apóstolos com o Senhor durante a sua vida terrena e, depois do Pentecostes sob a ação do Espírito Santo, pela primeira comunidade de Jerusalém” [n. 4].
Uma nova constituição para a Diocese de Roma – que o papa governa diretamente, como seu bispo – dá uma ideia do que isso pode significar em termos concretos na Igreja local. “In Ecclesiarium communione”, publicado no início de janeiro, fala de uma conversão missionária em chave samaritana que permita à Igreja realizar melhor a misericórdia e a caridade de Deus, exigindo uma conversão sinodal que envolva a participação ativa de todos os batizados. Isso, por sua vez, exige um conjunto de órgãos consultivos em todos os níveis, que cada paróquia tenha um conselho pastoral, e o maior número possível de participantes nos processos de tomada de decisão que envolvam processos de discernimento.
É para permitir que a Igreja viva dessa maneira, cada vez mais sob o efeito do Espírito, que, em outubro de 2021, o Papa Francisco convocou o Sínodo global de três anos sobre a sinodalidade. Mesmo agora, a meio caminho, fica claro que a experiência de profunda escuta mútua foi transformadora para muitos dos participantes, despertando nos fiéis um desejo de maior responsabilidade e participação na vida e na missão da Igreja.
A desclericalização da autoridade, de modo que a liderança e o ministério na Igreja possam ser mais enraizados nos carismas, já está em andamento no Vaticano, onde leigos e leigas, assim como religiosas, estão ocupando significativos cargos executivos.
Ao enraizar a autoridade em uma escuta cuidadosa do Espírito manifestado na fé vivida das pessoas comuns, o Sínodo está dando expressão àquilo que São John Henry Newman chamava de “respirar juntos como fiéis e pastores”, que permite ao Espírito verdadeiramente guiar a Igreja.
É um pensamento impressionante o fato de que, quando o próximo conclave ocorrer, os cardeais elegerão o próximo papa cientes de que, por meio dessa assembleia sem precedentes do povo de Deus, o Espírito falou à Igreja do nosso tempo.
Um dos sinais de que a transformação está ocorrendo é a resistência cada vez mais estridente que ela está provocando. A oposição a Francisco ao longo de seu pontificado foi mais intensa e feroz precisamente em sua reforma da autoridade e do governo, e notadamente nos Sínodos e ao redor deles. Há uma nova disposição na Igreja Católica, modelada pelo Papa Francisco, para manter suas divergências em uma tensão frutífera, permitindo que o Espírito mostre novos caminhos que transcendam essas divisões.
Essa forma de proceder provoca medo e raiva naqueles que buscam as aparentes seguranças de um passado imaginado. Eles devem ser ouvidos respeitosamente, e seus medos devem ser levados em consideração. Mas, do modo como o Papa Francisco entende, a Igreja só pode evangelizar o mundo de hoje usando o “estilo de Deus” se o meio não prejudicar a mensagem.
A verdadeira autoridade da Igreja reside na sua partilha do poder de Deus, que sempre se expressa no serviço humilde. Uma das maiores realizações de Francisco é que, depois de 10 anos, somos capazes não apenas de entender isso, mas também de vê-lo em ação.
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A revolução de Francisco: em 10 anos, o Papa recuperou o verdadeiro poder da Igreja. Artigo de Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU