13 Fevereiro 2023
“A biodiversidade é a fonte da saúde no continuum da teia da vida. A biodiversidade garante que os solos permaneçam vivos e saudáveis, que produzam plantas saudáveis, nutritivas e biologicamente diversas, que, por sua vez, produzirão alimentos saudáveis e diversificados que alimentarão a diversidade biológica da nossa flora intestinal, que é a base da nossa saúde”. A reflexão é de Vandana Shiva, física, filósofa, ativista ecofeminista e da produção orgânica indiana, em artigo publicado por Pressenza, 03-02-2023. A tradução é do Cepat.
A biodiversidade é a fonte da saúde no continuum da teia da vida. A biodiversidade garante que os solos permaneçam vivos e saudáveis, que produzam plantas saudáveis, nutritivas e biologicamente diversas, que, por sua vez, produzirão alimentos saudáveis e diversificados que alimentarão a diversidade biológica da nossa flora intestinal, que é a base da nossa saúde. A saúde da nossa flora intestinal é cada vez mais reconhecida como sendo a base da nossa saúde.
A biodiversidade dentro de nós está relacionada com a biodiversidade que existe fora de nós. É a biodiversidade nos nossos solos, nas nossas fazendas e nos nossos pratos que cultiva e alimenta a biodiversidade da nossa microbiota.
A saúde do planeta e a nossa saúde é “One Health” – “Uma só saúde”.
Podemos nos conectar uns aos outros pela saúde quando respeitamos a integridade e os limites das espécies e dos ecossistemas, mas também podemos nos conectar pela doença se não respeitamos essa integridade.
Se destruirmos as florestas e sua diversidade biológica para introduzir monoculturas comerciais de soja transgênica na Amazônia ou de dendezeiros na Indonésia e na África, causaremos epidemias como Ebola, HIV, Zika, a febre da floresta de Kyasanur (febre hemorrágica viral transmitida por carrapatos e endêmica na Índia) ou qualquer uma dessas trezentas outras doenças infecciosas que surgiram nos últimos trinta anos de globalização e crescimento econômico desenfreados.
Penetramos nos ecossistemas porque o nosso paradigma agrícola e econômico assenta-se na extração excessiva de matérias-primas e na busca de lucros em vez de preservar a biodiversidade para maximizar o “One Health” como as culturas indígenas sempre fizeram há milênios. Hoje, 80% da biodiversidade está em 25% das regiões habitadas por povos indígenas.
Espécies e culturas foram aniquiladas e o planeta se degradou, assim como nossa saúde.
Se destruirmos a biodiversidade nas florestas, veremos surgir novas doenças infecciosas. Se destruirmos a biodiversidade dentro de nós, provocaremos o surgimento de doenças crônicas.
Se destruirmos a diversidade da nossa microbiota com alimentos industrializados e ultraprocessados, doenças crônicas como a diabetes ou o câncer assumirão proporções epidêmicas. 72,69 milhões de indianos têm diabetes, 1,39 milhão têm câncer, número que aumentará para 1,57 milhão em 2025.
As doenças crônicas que foram definidas como comorbidades durante a pandemia da Covid-19 aumentam o risco de mortalidade durante uma pandemia. O risco de morrer de uma infecção relacionada à Covid aumenta 9,2% com o diabetes e 7,6% com o câncer.
“One Health” significa que nós respeitamos os direitos de todas as espécies e suas zonas ecológicas, seus processos ecológicos e seus limites ecológicos. “One Health” exige uma abordagem integrada e ecológica e não uma abordagem militar, mecanicista e reducionista das espécies que são partes do nosso corpo e da Terra, que são apresentados como “inimigos” que precisam ser exterminados. A doença é a disbiose, a ruptura da simbiose, da auto-organização e da autorregulação, de tudo o que permite aos organismos vivos estarem em estado de saúde.
Temos a opção de não entrar mais nas florestas e, ao invés disso, regenerá-las. Temos a opção de parar esta invasão química nas plantações e nos nossos intestinos que destrói a biodiversidade agrícola dos organismos do solo e das plantas, sem esquecer a dos nossos intestinos. Ao adotar uma alimentação diversificada, podemos regenerar nossa biodiversidade intestinal e atuar contra as doenças transmitidas por alimentos.
Os alimentos e a nutrição são as ferramentas para a preservação da vida que criam a saúde ao permear a teia da vida, essa teia alimentar tecida pela diversidade biológica.
O paradigma da cultura industrial é um paradigma militar e mecanicista, que ao longo do último século desenvolveu muitos estratagemas astutos para destruir a diversidade biológica e ameaçar a saúde.
Primeiro, declarou-se guerra contra os vermes e a biodiversidade de insetos. Pesticidas e inseticidas foram desenvolvidos para matar os insetos. Assistimos à morte de insetos e ao desaparecimento dos polinizadores, que produzem um terço da nossa alimentação. Segundo dados da ONU, 200.000 pessoas morrem a cada ano por envenenamento por pesticidas.
Na sequência, declaramos guerra à biodiversidade vegetal. Herbicidas como o RoundUp foram desenvolvidos para acabar com “toda a vegetação”, que também inclui plantas nutritivas, alimentos não cultivados, plantas medicinais e aquelas das quais os polinizadores se alimentam. Segundo a OMS, o Glifosato/RoundUp também é cancerígeno. Todos os anos, 10 milhões de pessoas no mundo morrem de câncer.
Com a Covid, foi declarada guerra aos micróbios. E, no entanto, sem micróbios, não há vida nem saúde.
A diversidade microbiana é o verdadeiro fundamento da estrutura da vida. Os micróbios — bactérias, vírus, fungos — são insubstituíveis para manter o sistema saudável — no solo, nas plantas, nos animais e em nossos corpos. Esse uso excessivo de produtos químicos com o objetivo de destruir os micróbios causou um declínio e, posteriormente, o desaparecimento da diversidade biológica; depois apareceram os micróbios patogênicos. Somos uma parte da natureza e de seu sistema. Quando prejudicamos a saúde do ecossistema, estamos prejudicando nossa própria saúde.
A saúde é uma relação de equilíbrio e respeito, de consciência e responsabilidade.
Um sistema alimentar que destrói a diversidade biológica ao tirar a vida de outros seres vivos também rouba uma grande parte da humanidade sua parte justa em termos de alimentação, direito à vida e direito à saúde.
As pandemias da fome e da desnutrição ceifaram a vida de dois milhões de pessoas, antes mesmo da Covid-19. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde da Família realizada em 2015-2016 pelo governo da Índia, 35,7% das nossas crianças estão abaixo do peso, 38,4% são muito baixas para a idade e 21% são muito leves para a sua altura.
Dos 1,04 milhão de crianças menores de cinco anos que morreram em 2017, mais de 706.000 morreram de deficiências nutricionais ou de desnutrição.
A Covid aumentou as fragilidades, pois as pessoas perderam seus meios de subsistência e seus empregos. A cada minuto, sete pessoas morrem pelas consequências da Covid e 11 pessoas morrem devido às consequências do “vírus da fome”.
O segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU é intitulado: Fome Zero, Alcançar a Segurança Alimentar, Melhorar a Nutrição e Promover a Agricultura Sustentável.
O terceiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU é boa saúde e bem-estar.
Esses dois objetivos estão ligados entre si por meio da biodiversidade nos sistemas alimentares.
Os sistemas alimentares que dependem da química intensiva e da monocultura não são sustentáveis nem justos e levam ao aumento da fome e das doenças. Os sistemas ecológicos que dependem da biodiversidade são sustentáveis e justos, e têm a capacidade de reduzir a fome e as doenças à medida que cultivam a biodiversidade dentro de nós e ao nosso redor.
Temos meios para cultivar a biodiversidade com cuidado e responsabilidade; podemos parar de causar danos.
Assim que levarmos em conta o vínculo que existe entre a diversidade biológica, a alimentação e a saúde, entre a fome e a doença, entre nossa doença e uma criança desnutrida, entre o desenvolvimento sustentável e a justiça, então estamos em “One Health”.
Podemos então começar a cultivar a saúde através dos alimentos que cultivamos e ingerimos. A ciência nos diz hoje que os alimentos são vitais. Comer é um ato de comunicação. Quando comemos, nos comunicamos com a terra, com o camponês e com todos aqueles que preparam nossos alimentos. Nossos alimentos, por sua vez, se comunicam com as bactérias de que nosso intestino precisa; e é por meio dessa comunicação que nossa saúde é mantida e nossa capacidade de resistir a doenças aumenta.
“A saúde do solo, das plantas, dos animais e dos humanos é una e indivisível” – Albert Howard.
A nossa saúde e a saúde do planeta é “One Health”, uma só saúde. Nossa saúde tem a ver com a saúde do solo, com as sementes e as plantas que cultivamos, com os alimentos que comemos, com os insetos e micróbios dos quais dependemos, com a água e o clima que sustentam a vida.
Nossa saúde começa em solos saudáveis. Um solo saudável é um sistema vivo.
O solo, o intestino e o nosso cérebro constituem um único bioma, cujos elementos estão interligados – exercer qualquer violência sobre um desses elementos desencadeia a violência em todo o sistema e, portanto, nos itens a ele relacionados.
O solo não é um recipiente vazio no qual podemos despejar os fertilizantes sintéticos. As plantas não são máquinas que podemos alimentar com fertilizantes NPK que vêm das fábricas ou das minas.
Sabemos que o solo é vivo. Rattan Lal, que ganhou o Prêmio Mundial da Alimentação de 2020, declarou: “Acredito que o solo é um ser vivo. Isso é o que significa a saúde do solo. Solo é vida. Todos os seres vivos têm direitos. E assim o solo também tem direitos. Essa é a razão pela qual as culturas indígenas chamam a Terra e o solo de Mãe Terra, Bhoomi Ma, Pachamama”.
E como a Terra é nossa mãe, não temos o direito de feri-la, seja com venenos, com produtos químicos ou com máquinas que esmagam e compactam o solo vivo.
Quando o Atharva Veda nos pede para rezar para Prithvi, a Terra, ele nos pede para ter sermos prudentes e respeitar os limites.
“O que é de ti, ó Terra, eu trago à luz, faço florescer rapidamente e crescer.
Ó limpadora, não me deixe cavar buracos em sua força vital ou em seu coração”.
A política que prevalece hoje, e suas leis, parecem estar dizendo exatamente o oposto da Terra: “Vamos cavar tão fundo e com tanta força, vamos esmagar tudo com tanta brutalidade, em tão grande velocidade que vamos demolir tua força vital até o âmago e garantir que nada mais possa crescer de ti”.
A ciência ecológica nos ensina, assim como nossa boa e velha sabedoria, que toda a vida depende da terra. Mas hoje aceitamos sem reservas a ilusão de que o progresso humano depende da rapidez com que somos capazes de abrir a terra, desenterrá-la e consumi-la.
Se a civilização indiana se manteve ao longo destes milênios, é porque honrou o solo, sua saúde e sua intangibilidade. Ela trabalhou o solo como Vasundhara, Bhoomi, Dharti Ma, Maati Ma, Mãe Terra. Nossa cultura de respeito à terra permeou toda a nossa consciência.
O solo não é uma matéria inerte e sem vida. O solo não é um envelope vazio. O solo é vivo.
Os solos saudáveis são cheios de biodiversidade; ela mantém a saúde do planeta e dos solos participando dos ciclos do carbono e do nitrogênio.
Um grama de solo contém até um bilhão de células bacterianas, elas próprias compostas por 10.000 táxons, até 200 milhões de hifas e uma infinidade de ácaros, nematóides, minhocas e artrópodes.
Uma colher de chá de solo vivo contém 6 bilhões de microorganismos, dos quais um bilhão são bactérias, o que equivale a uma tonelada por acre. Um metro cúbico de solo contém 1.000 minhocas, 50.000 insetos e 12 bilhões de lombrigas.
Um metro cúbico de solo saudável pode abrigar 25.000 km de fungos micorrízicos, que é o dobro do diâmetro da terra. Os fungos são sistemas vivos, inteligentes, seletivos e diferenciadores que trocam nutrientes entre si. São filtros inteligentes capazes de identificar os nutrientes essenciais à vida, absorvê-los e compartilhá-los com as plantas. Eles excluem as substâncias nocivas. A inteligência é a capacidade de separar o bem do mal. É a capacidade dos organismos vivos de diferenciar entre materiais essenciais e tóxicos e promover a troca de materiais essenciais através de membranas protetoras que permitem a vida e a saúde nos sistemas vivos, desde a menor célula passando pelo micróbio até os órgãos do nosso corpo, até mesmo para nosso corpo como um todo.
Albert Howard nos recorda: “Na realidade, o solo está cheio de organismos vivos. É importante pensá-lo como algo em que pulsa a vida, e não como uma massa morta ou inerte. Não há erro mais grosseiro do que considerar a terra como matéria morta: um punhado de terra está cheio de vida. Os fungos vivos, as bactérias e os protozoários, que estão presentes ainda que invisíveis no complexo do solo, são referidos como populações do solo. Essa população de milhões e milhões de minúsculas existências, obviamente invisíveis aos nossos olhos, leva suas próprias vidas” (Albert Howard, Der Boden und die Gesundheit: Eine Studie über den ökologischen Landbau – O solo e a saúde: Um estudo sobre a agricultura orgânica).
Se cuidarmos do solo, produziremos mais em uma superfície menor. Os solos férteis são a solução sustentável para a segurança alimentar. A agricultura ecológica é a única resposta real para a mudança climática. A poluição do ar que se acumulou na atmosfera agora chega a quase 400 partes por milhão (ppm) de dióxido de carbono. Isso explica o efeito estufa e o caos climático, incluindo o aumento das temperaturas. Para conter o aumento da temperatura a 2°C, teremos que reduzir a concentração de monóxido de carbono no ar para 350 ppm.
É necessário reduzir as emissões e afastar-se dos combustíveis fósseis, mas também é essencial reduzir o excesso de dióxido de carbono na atmosfera e devolvê-lo ao solo, que é o seu lugar. Deste ponto de vista, a agricultura ecológica regenerativa nos oferece uma solução. Também combate a insegurança alimentar e a fome, reverte a formação de desertos, fornece meios de subsistência através da segurança ecológica e, portanto, é um caminho para a paz.
Permite, acima de tudo, a passagem de um paradigma violento (estruturas violentas e um sistema violento) para um paradigma não violento (estruturas e sistemas que se baseiam no Ahimsa, não violência em sânscrito), que inclui o bem-estar de toda a humanidade. A agricultura ecológica é a resposta à seca e à mudança climática. É também uma solução pacífica. Se não respeitarmos nossa terra, nossa diversidade cultural e se não nos submetermos coletivamente à Ahimsa, nossa civilização corre o risco de colapsar rapidamente. Para mim, a agricultura ecológica é o Dharma que semeia as sementes da paz e do bem-estar para todos. A agricultura ecológica nos ajuda a sair do ciclo infernal da violência e da degeneração e a criar dinâmicas positivas baseadas na não-violência e na regeneração.
Howard observou o papel central dos fungos micorrízicos na criação do húmus e do solo vivo.
Se praticarmos a Lei do Retorno (Law of Return), entraremos em uma relação simbiótica com o solo. Alimentamos os organismos do solo. Os organismos vivos fazem o resto do trabalho produzindo alimentos, nutrientes e a saúde para as plantas, que, por sua vez, nos alimentam e nos trazem saúde.
Os organismos do solo, tais como os fungos micorrízicos e as plantas, adotam uma relação simbiótica. Os fungos selecionam os nutrientes, trazem-nos para as plantas e protegem-nas das toxinas, enquanto as plantas fornecem aos fungos hidratos de carbono da fotossíntese. Os solos ricos em organismos auxiliares encorajam as plantas a produzir moléculas que melhoram a saúde e combatem as doenças, especialmente os polifenóis, que agem como antioxidantes e anti-inflamatórios.
Os solos tratados industrialmente, que são alimentados de fora com fertilizantes nitrogenados sintéticos, destroem os organismos do solo, como as micorrizas, que, como verdadeiros filtros criativos, fornecem nutrientes às plantas. As plantas têm que se contentar com um coquetel de fertilizantes sintéticos, herbicidas como o glifosato/RoundUp, pesticidas e fungicidas, que contaminam nossos alimentos. As plantas são submetidas a uma dieta química e privadas da contribuição simbiótica dos fungos, que as ajudam a encontrar nutrientes importantes como o zinco ou o magnésio. E ainda, esses nutrientes são utilizados por plantas e animais (inclusive os humanos) para constituir as enzimas essenciais à regulação das trocas carbônicas e bioquímicas, à constituição do nosso sistema imunológico, ao combate às doenças e à preservação da nossa saúde.
Ao destruir a biodiversidade dos solos, a agricultura industrial produz alimentos tóxicos e pobres em nutrientes que prejudicam a nossa saúde.
De acordo com um estudo publicado na revista do American College of Nutrition (ACN) e do American Journal of Agricultural Sciences (AJAS) de Washington DC, o teor de nutrientes em vegetais e frutas está em declínio constante nos Estados Unidos nos últimos 70 anos.
Um estudo da Navdanya que compara solos – alguns cultivados de maneira orgânica e outros com produtos químicos – durante um período de mais de vinte anos mostrou um declínio dramático nos nutrientes do solo na agricultura química e um aumento desses mesmos elementos na cultura de tipo ecológica.
A população bacteriana nos solos orgânicos aumentou entre 5% e 241%.
Essa lei da reciprocidade, a ideia de ter que cuidar da saúde do solo vivo, como quando damos algo em troca, nos faz cultivar a nossa própria saúde.
Nossa saúde e a saúde do solo são “One Health”.
O cultivo ecológico é o cuidado do solo, é um sistema de saúde pública.
Por esta razão, cada vez mais médicos confiam suas práticas a fazendas orgânicas.
Nós estamos em conexão com o solo. Enquanto os solos forem saudáveis, as sociedades também serão saudáveis. Mas se os solos adoecerem ou endurecerem, as sociedades também adoecerão, e o coração e as entranhas das pessoas endurecerão.
É reunindo as partículas do solo que o húmus retarda a erosão; da mesma forma, é unindo a sociedade que ele previne a violência e a desintegração social.
Pelo fato de apoiar os alimentos, os meios de subsistência, a água e a segurança do clima, o húmus também contribui para a paz. Assim como não se ateia fogo a uma palha molhada com um fósforo, também as sociedades que vivem em segurança não correm o risco de serem prejudicadas por elementos violentos que se alimentariam da insegurança criada por um modelo econômico expressamente concebido para permitir que as potências econômicas globais extorquem o que elas querem e que, além disso, mata Swadeshi (um movimento iniciado por Gandhi e que tende a usar apenas a autoprodução). O cuidado do solo é o cume do Ahimsa, trazendo paz por meio de relações que não prejudicam a terra ou os outros.
Ao cuidar do solo redescobrimos nossa humanidade. Nosso futuro está indissoluvelmente ligado ao futuro da Terra. Não é por acaso que a palavra “humano” tem sua raiz em “humus”, a palavra latina para Terra viva. E Adão, o primeiro homem na tradição abraâmica, deriva de Adamah, a palavra hebraica para terra.
Mahatma Gandhi escreveu: “Quando esquecemos como cavamos a terra e como cuidamos do solo, é a nós mesmos que esquecemos”.
Nas últimas décadas, a agroindústria, que se baseia no paradigma da agricultura industrial mecanizada, favoreceu a monocultura, o que provocou a diminuição da biodiversidade. A agroindústria também distorceu a medição da produtividade, dando a falsa percepção de que produzimos mais alimentos quando, na verdade, estamos apenas produzindo produtos agrícolas sem valor nutricional, que são cada vez mais usados como biocombustíveis ou como ração.
Uma agricultura que se concentra exclusivamente na venda de produtos químicos como insumos externos para a produção de matérias-primas deslocou a medição da produtividade agrícola para a categoria reducionista de “renda por hectare”. Mas a renda por hectare ignora os principais aspectos da alimentação e da agricultura. A renda mede a massa, a quantidade de uma mercadoria, não a qualidade nutricional do alimento. E, portanto, como critério de qualidade dos alimentos em relação à saúde, é insuficiente.
A “renda” também não mede a destruição da biodiversidade, que nos fornece alimentos e saúde. A “renda” não mede os altos custos financeiros das substâncias químicas que endividam o camponês e o levam ao suicídio. Também não mede os custos para a saúde induzidos pela presença dessas substâncias tóxicas em nossos alimentos. Finalmente, a renda por hectare também ignora os custos ecológicos da monocultura química.
Precisamos perder o hábito de medir o “rendimento por hectare” de monoculturas pobres em nutrientes e ricas em tóxicos, com altos custos de produção e que destroem a biodiversidade e a saúde. Precisamos substituir o teor por hectare dos nutrientes de várias plantas economicamente úteis.
De nossa parte, na Navdanya, desenvolvemos uma nova medida: a “saúde por hectare”, para medir o valor nutricional por hectare. Se, ao invés desses investimentos intensivos em produtos químicos e capital, intensificarmos em nosso meio rural a produção ecológica de produtos alimentícios com respeito à biodiversidade, poderemos abastecer duas Índias com produtos saudáveis, balanceados e ricos em nutrientes, como mostra o estudo publicado pela Navdanya Health per Acre (Saúde por hectare).
Uma agricultura rica em biodiversidade produz mais nutrientes por hectare.
A diversidade em nossas fazendas e em nossos pratos – esta é a resposta para a desnutrição, a fome e as doenças. Comparativamente, as culturas mistas ecológicas fornecem uma renda melhor em média do que a monocultura convencional:
106% a mais de cobre
61% a mais de manganês
243% a mais de molibdênio
64% a mais de zinco
120% a mais de cromo
Somos constituídos em 90% de outros seres vivos, principalmente nossos co-micróbios, aqueles que nos mantêm saudáveis. A biodiversidade dentro de nós é moldada e mantida pela biodiversidade em nosso ambiente externo e em nossos alimentos.
A microbiota humana é composta pelo conjunto dos micróbios — bactérias, fungos e vírus — que vivem dentro ou fora de nós, incluindo a pele, as glândulas mamárias, o esperma, o útero, os folículos ovarianos, os pulmões, a saliva, a mucosa bucal, o tecido conjuntivo, as vias biliares e o tubo digestivo.
Estima-se que há mais de 380 trilhões de vírus nos habitando, uma comunidade conhecida como viroma humano. Mais de 38 trilhões de bactérias habitam o corpo humano, o bioma humano.
Nossa microbiota intestinal é composta por 100 milhões de microrganismos e centenas de espécies. No nosso intestino vivem 100.000 vezes mais micróbios do que humanos na Terra.
Existe uma estreita relação entre a biodiversidade e a saúde dos solos, das plantas, da nossa flora intestinal e do nosso cérebro. Nosso intestino é uma microbiota que contém trilhões de bactérias.
Para funcionar bem, a microbiota intestinal precisa de uma dieta variada, e uma dieta variada requer diversidade em nossos campos e hortas. A perda de diversidade em nossa dieta causa doenças.
A compreensão sofisticada que o Ayurveda tem sobre a alimentação permeou a diversidade e a base saudável dos hábitos alimentares indianos. Hoje, essa rica tradição culinária está ameaçada pela invasão da junk food (comida lixo ou porcaria). É hora de estabelecer um compêndio ayurvédico da alimentação saudável e intensificar as pesquisas sobre alimentos locais; mas deve ser feito não com base em um paradigma reducionista, mecanicista e cartesiano, mas com base no paradigma ayurvédico do vínculo e da biodiversidade da “One Health”.
O Ayurveda reconheceu que a biodiversidade dos alimentos é a base da nossa saúde e que a alimentação e o sistema digestivo são de suma importância para a saúde física e mental.
O Ayurveda é baseado no princípio quântico da não separação e do potencial, e não nos pressupostos mecanicistas da separação, do absolutismo, da entrada externa e do controle.
Mesmo a ciência ocidental está começando a entender o que o Ayurveda entendeu há mais de 10.000 anos – a saber, que o corpo não é uma máquina e a comida não é um combustível que coloca a máquina em movimento de acordo com as leis do movimento e da massa de Newton. O alimento não é uma “massa”, ele é vivo, é fonte de vida e fonte de saúde.
Fala-se cada vez mais do intestino como o segundo cérebro. Tem seu próprio sistema nervoso, o sistema nervoso entérico (sne), e tem entre 50 e 100 milhões de células nervosas. Nosso corpo é um organismo inteligente. A inteligência não está fixada no cérebro. Ela está dividida. E a inteligência, seja no solo, nas plantas e em nossos corpos, leva em consideração a saúde e o bem-estar.
Um intestino saudável tem diversidade e uma barreira entre o interior do intestino, onde os micróbios decompõem os alimentos, e o sistema imunológico associado ao intestino, que garante as interações saudáveis entre os micróbios intestinais e as células imunológicas. Uma comunidade com interações saudáveis resulta em One Health geral. Quanto maior a biodiversidade em um ecossistema, maior a capacidade de resistir a doenças. Isso também se aplica ao ecossistema do nosso intestino. Os danos à biodiversidade na microbiota intestinal são responsáveis por inflamações e distúrbios do metabolismo, que predispõem a muitas doenças crônicas, incluindo o diabetes tipo 2, a obesidade, os distúrbios comportamentais, o declínio cognitivo, as depressões e as doenças cerebrais degenerativas. Se a diversidade biológica do nosso intestino entrar em colapso devido à intoxicação ou a deficiências nutricionais, podem ocorrer pandemias – infecções estomacais ou intestinais, doenças autoimunes como a asma e a artrite reumatóide, doenças inflamatórias intestinais, distúrbios do espectro autista, obesidade ou distúrbios do metabolismo.
"One Health” significa que nós reconhecemos que a biodiversidade microbiana é importante para a estrutura do nosso sistema imunológico. Assim como os micróbios do solo ajudam as plantas a crescer e se manter saudáveis, os micróbios do nosso corpo nos fornecem alimentos e mantêm nossa saúde física e mental. Eles fortalecem nossa resistência na luta contra as doenças. Como somos mais bactérias do que humanos, toxinas como os pesticidas e os herbicidas usados na agricultura e que chegam ao nosso intestino através dos alimentos podem matar bactérias benéficas. Nossa flora intestinal processa os alimentos que ingerimos e os transforma em nutrientes para nosso corpo e cérebro.
Assim como acontece com a biodiversidade do solo, nossa flora intestinal também cumpre funções ecológicas vitais, como preparar e absorver nutrientes, proteger contra agentes patógenos, construir barreiras que filtram os nutrientes, dependendo de serem benéficos ou tóxicos, assim como a transformação de nossos alimentos em diferentes produtos químicos e enzimas, que mantêm nosso estado de saúde. A flora intestinal está associada a processos vitais como a digestão, a homeostase e o metabolismo, a síntese de vitaminas e outros nutrientes, assim como o desenvolvimento e a regulação da função imunológica. Também contribui para a produção de muitas conexões que chegam ao sangue e influenciam diferentes tecidos e órgãos do corpo.
O Ayurveda recomenda seis sabores para uma dieta equilibrada: doce, ácido, salgado, picante, amargo e adstringente. Cada sabor representa um potencial para processos que criam os sistemas autorreguladores do nosso corpo. Agni — a energia — no aparelho digestivo é o grande transformador que produz as características existentes.
Os receptores gustativos não são encontrados apenas na língua; eles estão distribuídos por todo o aparelho estômago-intestino, são encontrados nas terminações nervosas e nas células de transdução contendo hormônios na parede intestinal.
Hoje, os conhecimentos mais recentes da biologia mostram que o intestino possui sensores especializados para cada um dos sabores e que os diferentes processos metabólicos são determinados pela diversidade de sabores. Existem 25 receptores diferentes para o sabor ácido.
Como mostram as pesquisas do Dr. Éric Seralini, a inteligência altamente desenvolvida do complexo ecossistema do nosso intestino se comunica com os alimentos que ingerimos. Se comemos alimentos frescos e orgânicos, os processos regulatórios que preservam a saúde são aprimorados. Se ingerimos alimentos químicos com substâncias tóxicas, essa comunicação leva a doenças.
Certas moléculas e substâncias vegetais secundárias contidas em repolhos e especiarias ativam determinados receptores gustativos e desencadeiam determinados processos metabólicos. Os receptores doces estimulam o fornecimento de glicose na corrente sanguínea e a liberação de insulina do pâncreas quando detecta a glicose. Mayer explica: “A multiplicidade de substâncias vegetais secundárias provenientes de um alimento rico em diferentes plantas, combinada com a multiplicidade de mecanismos sensoriais perfeitamente sincronizados entre si em nosso intestino sincroniza nosso ecossistema, nossa flora intestinal com o mundo ao nosso redor…” (Mayer, p. 59). “Os sistemas sensoriais do intestino são a agência nacional de segurança do corpo humano: cabe a eles coletar informações provenientes de todas as áreas do sistema digestivo, incluindo o esôfago, o estômago e o intestino, ignorando a maioria dos sinais e soando o alarme sempre que algo parece suspeito ou não está funcionando. Ao que parece, é de fato um dos órgãos sensoriais mais complexos do corpo” (Mayer, S., p. 63).
Comer constitui uma troca entre o solo, as plantas, as células do nosso intestino e as células do que acabamos de comer, mas também entre o nosso intestino e o nosso cérebro. Comer é um ato inteligente no nível celular e microbiano mais profundo. A comunicação celular é a condição da nossa saúde, bem como do nosso bem-estar. Mas também é a raiz das nossas doenças. Alimentos tóxicos causam doenças. Nós não sabemos muito sobre a relação entre a alimentação e a saúde. Mas nossas células sabem. Nosso corpo é mais inteligente do que a compreensão reducionista e mecanicista que os humanos modernos desenvolveram.
Se escutássemos nosso corpo, nosso conhecimento estaria mais sintonizado com a inteligência do nosso corpo que, devido ao diálogo entre o intestino e o cérebro, é a verdadeira inteligência de nossa razão. Como os alimentos carregam em si a memória da biodiversidade no solo e nas plantas, a forma como a nossa alimentação é estruturada é um fator importante para a saúde. Valendo-se da ciência ecológica da agroecologia e do Ayurveda, nossa razão poderia elevar-se ao nível da inteligência da Terra, do nosso corpo, dos seus doshas (caracterização do perfil biológico do indivíduo, de acordo com o Ayurveda), de suas células e de seus micróbios, que querem, com essas epidemias, chamar a nossa atenção para os perigos da nossa alimentação e do nosso ambiente.
A fome e a emergência sanitária convidam os cidadãos e os governos a irem além da separação entre humanos e natureza, entre agricultura, alimentação, nutrição e saúde e a reconhecer as relações que todas essas coisas têm entre si. A interdependência requer integração. A biodiversidade e a integridade dos nossos alimentos devem estar no centro das nossas políticas de saúde pública. A agricultura e os sistemas alimentares devem ser vistos como sistemas de saúde, que mantêm e promovem a saúde do planeta e da sociedade.
Devemos pagar aos agricultores que cultivam solos saudáveis, plantas saudáveis e sociedades saudáveis, em vez de subsidiá-los sob o pretexto de que usam combustíveis fósseis, fertilizantes químicos e produtos tóxicos que contribuem para a mudança climática, a poluição da água e o surgimento de doenças.
Diante da dimensão da crise sanitária, da fome e da desnutrição que assola a Índia, devemos passar de um sistema químico de produção de alimentos pobres em nutrientes para uma agricultura delicada, que aumenta a “saúde por hectare” e os “nutrientes por hectare”. Precisamos redefinir os sistemas PDS e ICDS como um sistema de saúde pública baseado no “One Health”. E precisamos de campanhas de informação que cultivem o “One Health” entre os cidadãos.
Precisamos conceber nossos antigos e comprovados sistemas científicos que são a agroecologia e o Ayurveda, que vão além do reducionismo mecanicista, e o corpo como ecossistemas complexos auto-organizados e reavaliá-los em relação às epidemias e à biologia moderna.
Os sistemas alimentares são a peça central da saúde e da doença. A Covid-19 evidenciou as relações entre a alimentação e a saúde. Uma alimentação saudável leva a um intestino saudável que, por sua vez, produz imunidade. Começamos a comer mais açafrão, gengibre e ashwagandha. A pandemia fez com que as pessoas vivessem os ensinamentos do Ayurveda “Annam Sarva Aushadhi” e de Hipócrates “Que seu remédio seja seu alimento”.
A biodiversidade nos solos, nas plantas e no nosso organismo é a base da auto-organização dos sistemas vivos – desde as bactérias do solo, passando pelo nosso intestino até Gaia.
A biodiversidade da teia trófica no solo, a biodiversidade das plantas e a biodiversidade da nossa flora intestinal que colaboram em toda a sua reciprocidade na simbiose, na harmonia e na coerência quântica, criam “One Health”.
A restauração da biodiversidade como princípio organizador do “One Health” é o passo mais significativo para restaurar a saúde do planeta e dos seres humanos.
É esta ciência da biodiversidade e a ligação entre solo vivo, semente viva, comida viva e economias vivas de bem-estar que Navdanya vem praticando e financiando nas últimas três décadas. Para nós, cuidar da Terra é cuidar da saúde, tanto da humanidade quanto do planeta.
Nosso trabalho tem mostrado que podemos alcançar tanto o segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (fome zero) quanto o terceiro (boa saúde e bem-estar para todos) se regenerarmos e cultivarmos a biodiversidade em nossas cabeças, em nossas fazendas e nos nossos intestinos.
A maneira como cultivamos nossa comida e o que comemos é a grande mudança que cada um e uma de nós pode fazer para regenerar a Terra ao perceber que a natureza é matéria viva, não matéria morta. Podemos colaborar com a terra viva e sua biodiversidade para criar One Health – Uma só saúde. Uma Terra saudável produz uma humanidade saudável.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma terra, uma saúde – um brinde às sementes da libertação da fome, da desnutrição e das doenças! Artigo de Vandana Shiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU