02 Dezembro 2022
Vandana Shiva usa um sári vermelho e dourado que teceu com as próprias mãos. Quando parar de usá-lo, servirá para ela como um toldo para se proteger do sol. Quando estiver rasgado, utilizará como pano de chão. E quando não servir mais nem para isso, fará compostagem com ele. E assim faz com tudo.
Shiva sabe que o consumismo proveniente da globalização está destruindo o planeta, por isso propõe alternativas reais. Não resta muito tempo, “a globalização precisa ser detida já”, defende durante a entrevista ao jornal El Diario, em Vitória, antes de receber do Governo basco o Prêmio Ignacio Ellacuría por ser uma referência mundial no movimento ecofeminista internacional e na luta pela preservação da biodiversidade e construção de alternativas agrícolas sustentáveis, frente à crise climática.
Além de ser ativista ecofeminista, Shiva é física, filósofa e escritora. Entre os muitos prêmios que recebeu ao longo de sua carreira, está o Prêmio Nobel Alternativo.
Conforme aponta, um dos desafios da humanidade hoje é evitar que empresas poluidoras controlem as estratégias e políticas contra a mudança climática. “As empresas poluidoras deveriam estar cumprindo tratados e não oferecendo as soluções contra a mudança climática. São elas que estabelecem as condições agora e estão pensando apenas em seus lucros. Estão sequestrando a natureza em nome da proteção do planeta”, avalia.
“A Coca-Cola foi uma das patrocinadoras da Cúpula do Clima, 700 lobbies da indústria dos combustíveis fósseis estiveram lá. Estes são indicadores de que as empresas poluidoras não têm vergonha e estão na direção da luta contra a mudança climática”, lamenta a ativista.
A entrevista é de Maialen Ferreira, publicada por El Diario, 30-11-2022. A tradução é do Cepat.
Para você, o que significa receber o Prêmio Ignacio Ellacuría de Cooperação para o Desenvolvimento?
Para mim, é uma honra porque Ignacio Ellacuría deu a sua vida pela justiça e a solidariedade e lutou contra a violência. Recebo este prêmio com humildade e espero que me fortaleça e me dê coragem.
Você é uma referência do ecofeminismo. Já falava sobre esse conceito, 30 anos atrás, quando publicou o livro ‘Ecofeminismo’, em 1993. O que mudou desde então?
Penso que o avanço pode ser observado no fato de que cada vez mais pessoas percebem que existem diferentes formas de violência contra a terra, as mulheres, as crianças e contra os seres humanos em geral. Percebemos que isso está enraizado na convergência entre o capitalismo, como economia de ganância, e o patriarcado, como estrutura de dominação. Quando esses dois elementos se juntam, o colonialismo, o racismo e o sexismo surgem. Essencialmente, reduzem o mundo a um mundo de propriedades e mercadorias.
Portanto, hoje, a relevância do ecofeminismo é ainda maior do que em décadas atrás, quando me somei a esse movimento para proteger as florestas e selvas. Antes, a ameaça estava na selva e naquelas indústrias que queriam saqueá-la em favor de seus próprios lucros, mas agora está em todos nós porque o colonialismo diz respeito a todos nós.
O ecofeminismo significa que a terra e as mulheres não são elementos passivos, mas, ao contrário, somos a base da produção para o mundo inteiro e todos os seres humanos têm o direito de ser livres. Hoje em dia, o ecofeminismo não é só sobre mulheres, é sobre todos os seres humanos que não querem arruinar outros seres humanos e também não querem sofrer danos.
A sociedade está mais consciente da importância de um mundo mais ecológico, mas está disposta a abrir mão de seus privilégios para alcançá-lo?
Existe um sistema industrial violento que só nos oferece melhorar o conforto do mundo em que vivemos, mas fracassa nisso. Pressupõe-se que temos que trocar a terra e os produtos cultivados pelos agricultores por comida lixo e, em seguida, contraímos doenças como a diabetes ao consumir esse alimento. Então, está claro que isso não nos traz conforto.
Penso que chegou a hora de compartilhar as ideias sobre o que é uma vida boa. Uma vida boa não tem nada a ver com as corporações que nos reduzem a consumidores. Acabamos pensando só em comprar porque acreditamos que assim teremos uma vida melhor. Teremos uma vida melhor quando consumirmos menos, quando percebermos que fazemos parte de uma comunidade, que não estamos sozinhos. Comprar não traz sentido às nossas vidas, a longo prazo, não nos satisfaz.
Então, por que a sociedade acredita que fazer compras traz satisfação?
Porque fomos colonizados. Fomos colonizados por aqueles que nos negaram que sejamos criadores e nos reduziram a meros consumidores de um sistema de produção. A indústria da comida lixo não quer que tenhamos economias baseadas na alimentação local.
O mesmo acontece com o mundo da moda, que também não quer que sejamos capazes de confeccionar nossas próprias roupas ou de consertá-las quando necessário. H&M, Zara e todas as marcas estão gerando tanto desperdício de materiais que temos roupas suficientes no mundo para viver 500 anos e continuam confeccionando mais. Há todo um deserto, no Chile, que está cheio de resíduos de roupas.
Todos os nossos recursos deveriam ser um presente tratado com respeito, deveriam durar o máximo possível. Por exemplo, o sári que uso, fiz à mão. Quando não me servir mais, poderei utilizá-lo para fazer um toldo, depois, para limpar o chão e, por último, farei a compostagem desse tecido.
Não devemos esbanjar os recursos porque tudo faz parte do ciclo da natureza e na natureza não há resíduos, nem se desperdiça. O mesmo acontece com a humanidade, deveríamos que reconhecer que cada refugiado é o resultado de uma economia de consumismo.
Nesse sentido, viu alguma mudança nas empresas e instituições públicas ou se trata do que consideram ‘greenwashing’ ou ‘ecobranqueamento’?
Estão gastando muita tinta verde no mundo para lavar a imagem de empresas e instituições (ironiza). Estamos em uma crise climática e há muitas soluções falsas. Por exemplo, o problema da mudança climática é a desestabilização do ciclo climático por meio da poluição da atmosfera. O greenwashing é utilizado para dizer que a solução está em mais engenharia para acabar com os poluentes da terra e até mesmo bloquear o sol, mas o sol é a base da vida na terra e aqueles que poluem acusam a vida de ser o problema, enquanto oferecem ainda mais poluição como solução.
Outra questão é a agricultura. Existem indústrias que querem uma agricultura sem agricultores e alimentos que venham de laboratórios. Se os alimentos ultraprocessados já nos contaminam e adoecem, imagine o que os alimentos criados em laboratório vão causar. Por isso, considero que o alimento real e local é a única solução.
Parte da sociedade, principalmente nas esferas de poder, critica ferozmente e subestima ativistas como você, em vez de mudar sua atitude em relação ao meio ambiente. O que você diria para essas pessoas?
Eu sempre as convido a conhecer o meu trabalho. Convido para que comam o alimento de verdade e que vejam a diferença, que coloquem suas mãos na terra e plantem uma semente. Dessa forma, vão perceber que não precisam de agricultura digital com sistemas de vigilância. Convido para que experimentem a beleza deste mundo, a abundância da natureza e o conhecimento de outras pessoas.
Estamos a tempo de reverter as consequências negativas que a globalização trouxe consigo?
Temos a obrigação de não deixar que ocorra a aceleração da globalização. Precisamos detê-la já. Precisamos proteger o que ainda existe. Por exemplo, temos que impedir que as populações indígenas caiam nas mãos das indústrias.
Devemos regenerar as culturas locais e preservar sua agricultura e alimentos. Fortalecer esses territórios é uma solução para os problemas relacionados à água, à terra e às doenças. Sendo assim, precisamos criar alternativas que nos afastem da economia lixo que cria roupas e fast food e não permite que outras formas de economia existam.
Vi as fábricas de Bangladesh onde pessoas escravas fabricam roupas. Vi como destruíram violentamente as economias locais, por isso tivemos que desobedecer pacificamente e criar um movimento contrário a essas indústrias. Precisamos proteger o que é nosso, regenerá-lo e compartilhá-lo.
Em sua vida como ativista, qual foi a coisa mais difícil ou complicada que teve que enfrentar?
O mais desafiador é que tudo o que fiz foi porque vi uma violência terrível. Fui testemunha da violência contra a terra, os agricultores e as mulheres e minha resposta é buscar a verdade e lutar de uma forma não violenta. O desafio hoje é mais urgente porque são aqueles que ganham muito dinheiro que desencadeiam a violência. Contudo, quando trabalho honestamente, crio movimentos alternativos.
Quando os poderosos percebem o que faço, veem que seus mercados estão em perigo e contra-atacam utilizando seus meios financeiros. Não só nos atacam, pretendem que, apesar de seus ataques, a sociedade acredite neles e confie no que fazem.
Quando milhares de agricultores se suicidam na Índia, devido às suas condições de trabalho, a instabilidade econômica ou a perda de suas terras pelas catástrofes naturais provocadas pela mudança climática, empresas e instituições dizem que não é verdade, que morrem sozinhos. As pessoas já estão começando a duvidar disto e essa dúvida está crescendo. Buscam dividir a população e me parece que isto é o mais desafiador e difícil, pois com suas mentiras estão bloqueando a capacidade de pensar e decidir de muitas pessoas.
Como você avalia a Cúpula do Clima, realizada no Egito? Após o encontro, está otimista ou ainda mais preocupada?
Deveríamos estar preocupados e não só por causa desta Cúpula do Clima. As empresas poluidoras deveriam estar cumprindo tratados e não oferecendo soluções contra a mudança climática. As empresas poluidoras deveriam estar cumprindo tratados e não oferecendo as soluções contra a mudança climática. São elas que estabelecem as condições agora e estão pensando apenas em seus lucros. Estão sequestrando a natureza em nome da proteção do planeta.
A Coca-Cola foi uma das patrocinadoras da Cúpula do Clima, 700 lobbies da indústria dos combustíveis fósseis estiveram lá. Estes são indicadores de que as empresas poluidoras não têm vergonha e estão na direção da luta contra a mudança climática. É o maior desafio que enfrentamos e devemos evitá-lo a todo custo.
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“Devemos evitar que as empresas poluidoras fiquem na direção da luta contra a mudança climática”. Entrevista com Vandana Shiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU