21 Julho 2022
Por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho de 2022, a ativista ambiental, ecofeminista e crítica da globalização, Vandana Shiva, publicou o Manifesto sobre a economia do cuidado e a democracia da Terra. A publicação ocorreu durante o tour da dra. Shiva pela Itália e pela França, onde também lançou seu novo livro, True Economy — From Greed to an Economy of Care (A verdadeira economia: da ganância para uma economia do cuidado, em tradução livre), e participou de numerosos eventos, como a EireneFest, o Festival do Livro pela Paz e pela Não Violência e um evento conjunto de sua organização Navdanya International com a União Budista Italiana e o Conselho Municipal de Roma sobre agroecologia e agricultura regenerativa.
“O futuro das próximas gerações só pode ser garantido se tomarmos o caminho do cuidado e respeito pela Terra, o que exige uma profunda mudança no paradigma econômico, cultural e ambiental global”, afirmou Navdanya International em um relatório lançado durante o tour, que aconteceu de 3 a 11 de junho de 2022.
O manifesto completo é publicado por Pressenza, 19-07-2022.
O cuidado e o apoio mútuo são as moedas da vida, que circulam tanto na natureza e como na sociedade, para a promoção da integração plena, possibilitando que se compartilhem o seu conjunto de valores e direitos coletivos.
A Terra, Gaia, a Mãe Terra é um planeta vivo, cuja rica biodiversidade evolui ao longo de bilhões de anos e que sustenta toda a vida; não é matéria morta nem matéria prima para ser explorada e degradada.
Cuidar da Terra e de toda forma de vida é nossa responsabilidade ética e ecológica.
O cuidado da Terra é a economia da vida, Oikonomia.
Em um período de colapso e de desintegração ecológica e social, curar e regenerar a Terra constituem as bases para restaurar o futuro da humanidade.
Devemos reconhecer que somos uma família da Terra, seres vivos interconectados em toda a nossa diversidade, que participam e compartilham uma teia comum de vida. O cuidado com a Terra regenera os recursos da natureza, a biodiversidade e a economia que nos proporcionam vida e sustento. A Terra e seus ecossistemas nos sustentam com oxigênio, água, comida, roupas, abrigo e remédios.
A industrialização, impulsionada por combustíveis fósseis e pelo petróleo, está destruindo os ecossistemas vivos da Terra e levando às mudanças climáticas, à perda de biodiversidade que sustenta a vida, a doenças, à destruição de florestas e à extinção de vida vegetal e animal, empurrando-nos rumo à extinção.
Respeitar os recursos finitos da Terra é uma postura vital para o estabelecimento da economia do cuidado, criando um ambiente propício para a existência de uma humanidade solidária.
Desde tempos imemoriais, homem e Terra vêm criando em parceria a biodiversidade do planeta e as bases das relações entre si – uma realidade esquecida desde o início da era industrial e que agora devemos recuperar.
A abordagem mecanicista e separativa cartesiana relativa a toda forma de vida reduziu os seres humanos a máquinas, a seres não pensantes e mecânicos, respondendo desapercebidamente às normas e estímulos que lhes são impingidos. A tecnologia de alta frequência e a digitalização debilitam cérebros ao tempo que entorpecem a inteligência humana corroendo o nosso direito fundamental à livre escolha. O big data, os algoritmos, a inteligência artificial (IA) e a robótica surgiram para projetar o futuro da agricultura sem agricultores, da manufatura sem operários, da educação e da informação sem professores, da saúde sem médicos.
Economias do cuidado surgem para recuperar a nossa mente, autonomia e potencial criativo visando preservar a nossa liberdade e garantir o nosso direito ao trabalho a serviço da Terra, das nossas comunidades e das futuras gerações. As economias do cuidado estimulam a liberdade criativa, a justiça e a coesão.
A vida é um fenômeno comunitário delicado e solidário – tanto na sociedade como na natureza. É um fenômeno relacional, não atomístico. É nas comunidades onde as economias locais de sustento, de saúde e de bem-estar convergem e se regeneram. Relações interpessoais são tecidas com os fios do respeito e da reciprocidade, cultivam a criatividade e o bem-estar. Economias do cuidado, por seu turno, geram harmonia e prosperidade.
Economias de cuidado têm por fundamento a recuperação de ativos coletivos e bens públicos, e isso envolve o cuidado com a Terra e o compartilhamento dos recursos que devem estar à disposição de toda a humanidade. E assim temos a coletividade representada por sementes e grãos, pela biodiversidade, pela água e a terra, pelos alimentos e a alimentação; e ainda pelos bens e serviços públicos que as sociedades têm desenvolvido graças ao senso comum de responsabilidades e garantia de direitos coletivos, como o direito ao conhecimento, à democracia, à saúde, à educação, à energia, ao transporte e à moradia.
A privatização, as patentes e o cerceamento dos bens comuns são um processo falido de um sistema colonial baseado na extração e na ganância e não têm cabimento nas economias do cuidado. A financeirização e a comoditização da natureza reduzem a Terra e seus recursos a meros ativos financeiros - hoje controlados por bilionários e por fundos de gestão de ativos -, agravam a crise ecológica e colocam em risco comunidades indígenas e pequenos agricultores que sempre fomentaram a biodiversidade e a Terra. A Mãe Terra não está à venda.
A cooperação e a sinergia estão entre os fundamentos da economia do cuidado que, por sua vez, respeitam os limites da Terra e são baseadas nas necessidades. Como Gandhi bem nos lembrou: “A Terra tem o suficiente para as necessidades de todos, mas não para a ganância de alguns”.
A competição e a ganância violam os processos ecológicos da natureza e destroem a capacidade dos ecossistemas e das comunidades de renovar, regenerar e produzir. As economias da ganância, baseadas no extrativismo e na competição, criam escassez, fome, doença, descartabilidade, desemprego e violência.
As economias do cuidado são baseadas em economias circulares, de doação, reciprocidade, compartilhamento e mutualidade: a lei do retorno.
As economias circulares aumentam o potencial criativo e regenerativo da sociedade e da natureza. Os subsistemas que orbitam em torno do conceito de economia do cuidado são circulares, locais, participativos e harmoniosos e levam ao bem-estar e à abundância.
A globalização levou ao controle centralizado sobre os recursos da Terra, à centralização do controle sobre os mercados e à degradação da qualidade – dos alimentos que comemos e das roupas que vestimos. Qualidade requer cuidados. Economias do cuidado implicam descentralização e democracia participativa, e englobam diversidade cultural e biológica, que aceleram a participação e localização arraigadas em relacionamentos e afinidade.
As economias do cuidado são baseadas na igualdade, na justiça e na dignidade para todos e estão no âmago da Democracia Viva do povo, pelo povo, para o povo. Nenhuma pessoa ou espécie é dispensável.
Economias do cuidado geram alimentos, saúde e trabalho para todos.
Já as economias da ganância são baseadas no controle centralizado, na uniformidade, na dominação, na criação de hierarquias e representam uma ameaça à democracia.
A ganância promove o uso de tecnologias negligentes que prejudicam a Terra, os povos e tornam as pessoas dispensáveis.
A democracia da Terra é a democracia de toda a vida em interconexão e em participação.
Os princípios das economias do cuidado são fundados no princípio visionário da Sétima Geração da Confederação dos Iroqueses — civilização pré-colombiana e confederação tribal muito poderosa que existiu no nordeste da América do Norte, a mais antiga democracia participativa viva —, onde o princípio orientador de todas as políticas é a consideração e o cuidado das próximas sete gerações.
O princípio manifesta que “em todas as nossas deliberações, devemos considerar o impacto de nossas decisões sobre as próximas sete gerações”.
A ganância e a competição criam conflitos por recursos, guerras por recursos da Terra e guerras que destroem o planeta.
Para evitar o colapso ecológico e a extinção de espécies, precisamos parar a guerra contra a Terra e fazer as pazes com o planeta, trabalhando de acordo com as leis da ecologia, respeitando as fronteiras planetárias e os direitos de todas as espécies e de todos os seres humanos, em harmonia como um todo.
A paz com a Terra será possível através dos cuidados com o planeta, da regeneração e da cura de ciclos interrompidos e de sociedades destroçadas. Não tirar mais do que precisamos é um ato de paz. Cuidar e compartilhar os dons da Terra são o caminho para a paz.
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Vandana Shiva: Manifesto sobre as economias do cuidado e a democracia na Terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU