01 Fevereiro 2023
A Irmã Mary Lembo, togolesa, recolheu os testemunhos de vítimas religiosas de padres em muitos países africanos, onde a questão da violência sexual ainda permanece em grande parte um tabu. Enquanto o papa apresta-se para visitar a RDC, espera “que ele continue a abordar abertamente esses temas que geram conflito".
Em nenhum país africano existe algo similar ao “Relatório Sauvé” publicado na França que permita uma visão precisa das violências sexuais cometidas por padres ou religiosas católicas.
Claro, foram abertos nas dioceses desde 2019 departamentos para as sinalizações, que, porém, tiveram pouco sucesso. Alguns sacerdotes africanos chegaram a dizer que se tratava de um problema puramente “ocidental”.
Mas pouco a pouco as línguas se soltam. A imprensa e as associações começam, muito timidamente, a tratar do assunto. Em junho de 2022, realizou-se em Abidjan (Costa do Marfim) uma conferência internacional sobre violências e abusos sexuais de crianças e mulheres na África, com 1220 participantes.
Irmã Mary Lembo freira togolesa, mas também psicóloga e psicoterapeuta, interessa-se em especial por religiosas vítimas de agressões sexuais ou estupros por padres em diversos países africanos. Em tese defendida na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, recentemente publicada com o título Religieuses abusées en Afrique. Faire la vérité (Salvator, 412 pág., 24 euros), descreve o "silêncio conivente devastador" em torno desses temas.
Irmã Mary Lembo. (Foto: Reprodução | Missionnaires d'Afrique)
Em entrevista ao Le Monde des Religions, diz esperar que o papa que viaja para a República Democrática do Congo (RDC) na terça-feira, 31 de janeiro, leve "apoio e encorajamento" a todas as vítimas de estupro na Igreja.
A reportagem é de Gaëtane de Lansalut, publicada por Le Monde des Religions, 31-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na África, as violências sexuais não são tão documentadas quanto na Europa. O que descobriu em sua investigação?
Minha pesquisa não é quantitativa. Eu queria entender o problema como educadora, formadora e psicoterapeuta a fim de sensibilizar e prevenir. Em primeiro lugar, eu queria entender a dinâmica que leva a situações de abuso entre padres e religiosas em um contexto pastoral.
Nas suas relações ou colaborações podem encontrar-se na sacristia, no bispado, na formação dos catecúmenos, na paróquia, em grupos de oração, em obras sociais...
Entrevistei doze religiosas em quatro países da África Ocidental e um país da África Oriental, sem indicar o seu nome por razões de privacidade. Eu queria saber como elas acabaram numa situação em que passaram o que passaram. Saber o que aconteceu e como. Para pensar em uma prevenção, para educar e formar.
Quanto à particularidade da África, o que dá especificidade à sua investigação?
A peculiaridade nesses países é a familiaridade. Que acontece nos dois sentidos: temos geralmente uma relação muito familiar com o padre e ele conosco. Ele é percebido como um homem de Deus em quem se confia facilmente. Às vezes o chamamos de "pai", às vezes de irmão mais velho, sem estabelecer limites sadios.
Por vezes cria-se até uma dependência financeira, o que reforça o sentimento de respeito que o fiel pode desenvolver em relação a esse padre. Em certos testemunhos que pude colher, a religiosa ou a jovem em formação está em tal situação que se ela não ceder aos avanços do padre terá a impressão de ser ingrata.
Além disso, muitas vezes também há um sentimento de medo, em relação a um homem por ser homem, e em relação a um padre que tem uma posição bastante importante na sociedade, que tem autoridade e poder.
Você fala de "estratagemas" implementados pelos padres abusadores. Em que consistem?
Antes de querer se tornar religiosas, as mulheres que entrevistei dizem ter sentido um "chamado" e ter dito sim a Deus. Ingenuamente, não pensaram que um homem que se diz consagrado a Deus possa tocá-las em suas partes íntimas.
Esses padres agem sobre a vigilância da mulher consagrada, de sua comunidade e até de sua própria família. Antes que a jovem entre no convento, o padre se apresenta como um acompanhante, diz que estará perto para ajudá-la em sua vocação.
Além disso, são feitas distorções cognitivas, na interpretação da palavra de Deus ou dos valores cristãos em favor do agressor. Trata-se, por exemplo, de fazer acreditar à mulher consagrada que o celibato consiste em não se casar, mas que eles - padres - podem ter relações sexuais.
A jovem consagrada muitas vezes entra numa grande confusão. Às vezes, o padre abusador lhe dá a impressão de que ela é "especial, diferente das outras", que ele a escolheu. Isso pode provocar conflitos com o resto da comunidade. O diálogo se rompe e a jovem mulher se isola das outras.
Essas mulheres conseguem manter a fé?
O que acontece certamente também tem consequências espirituais. Essas mulheres estão em dúvida e às vezes em cólera contra Deus. Elas se perguntam: "Como eu pude me consagrar a Deus para servi-lo e ser abusada por um homem de Deus? Deus é realmente bom?” Algumas abandonam a vida religiosa. É o que fizeram duas pessoas que entrevistei, embora tenham continuado católicas.
Elas encontram escuta?
Poder falar sobre a violência que sofreram não é fácil. Algumas fazem psicoterapia ou procuram um apoio psicológico. Às vezes, consultam psicólogos ou psiquiatras cristãos, ou mesmo os padres que as ajudaram a se recuperar do sofrimento por meio de um acompanhamento espiritual. Uma das pessoas que interroguei, assediada e vítima de uma tentativa de estupro, foi ativamente ajudada pela responsável de sua comunidade, que acreditou nela e a apoiou. Mas outras não encontraram quem as ouvisse: algumas até disseram que foram elas que se engraçaram com o padre.
Muitas me dizem hoje: “Eu estava sofrendo porque não era a escolha de vida que fiz. E sofro mais ainda porque aconteceu dentro da Igreja, porque foi feito por pessoas com quem eu contava”. Também o departamento em que você entra para ser acompanhada se fecha depois atrás de você. Se você gritar para protestar, você é levada a entender que é você quem deveria se envergonhar. E essas mulheres continuam a ter vergonha por toda a vida. São eles que se sentem culpadas, e isso não está certo.
Quais são suas recomendações? É preciso criar uma comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja africana, segundo o modelo da França?
Sim, isso seria bom. Mas não seria como a Ciase na França, porque aquela trabalhou em um único país, enquanto a África é um continente. Seria necessário que cada Conferência Episcopal ousasse fazer pesquisas e permitisse às pessoas abusadas falar.
Em minhas pesquisas, fica claro que as mulheres consagradas vivem sob o peso de toda a sociedade, que não facilita a liberação da palavra. Ainda se tem em demasia a tendência a pensar que é a mulher a ser culpada, que foi ela quem colocou o padre naquela situação. Enquanto, na maioria dos casos, as mulheres agiram sob a influência do medo.
Também insisto em dizer que é preciso falar abertamente sobre essas situações para todas as irmãs e também para todas as jovens mulheres, para que sejam avisadas. Além disso, a maior parte das vítimas me diz: “Não era fácil para mim dizer não.” Portanto, recomendo uma formação básica para entender quando e como dizer não a um homem.
Mas também é necessário formar os padres e os seminaristas, para que tenham um comportamento respeitoso em seu empenho e para com as mulheres consagradas. A concepção reducionista da mulher, particularmente na África, faz-nos acreditar que ela não tem voz, que deve aceitar tudo e que se ela cala significa que que ela consente. Não: o consenso deve ser pronunciado, aberta e claramente. A igualdade entre a mulher de Deus e o homem de Deus só pode existir se o não da mulher for respeitado.
Sensibilizar, educar e formar. E também acompanhar, para que essas mulheres encontrem a força de processar seu agressor e a justiça seja feita. O acompanhamento também deve ser feito também no plano clínico. Não encontrei casos de nascimentos, mas de gravidez com abortos sim, financiados e solicitados pelos padres abusadores. Não se pode deixar essas mulheres sozinhas depois de tais decisões.
Como o seu trabalho é recebido no Vaticano? Espera uma reação do papa que vai para o Congo e o Sudão do Sul esta semana?
Fiz minhas pesquisas em uma pontifícia universidade católica e lá não encontrei resistência. Era considerada uma pesquisa como outras. Também recebi apoio e tive permissão para publicar o meu trabalho.
Em geral, a questão dos diversos tipos de abusos e de violências sexuais é cada vez mais considerada como uma prioridade na Igreja. Quanto ao Papa Francisco, fico feliz que ele encontre os povos congolês e sudanês. Espero que leve uma mensagem de apoio e encorajamento para todas as pessoas, particularmente para as mulheres vítimas de abusos e de estupros, e para suas famílias e comunidades.
Minha esperança é que se continue abordando abertamente essas questões que geram conflitos, com o objetivo de respeitar a dignidade humana. A justiça precisa ser feita e que todos assumam suas responsabilidades.
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Religiosas vítimas de violências sexuais na África: “A vergonha pesa sobre elas para toda a vida” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU