31 Janeiro 2023
"Os Yanomami – não somente hoje, ou ontem, mas durante décadas – são vítimas de um Estado que se estruturou para não deixá-los viver em seu território", escrevem Roberto Antônio Liebgott e Ivan Cesar Cima, membros do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Regional Sul em artigo publicado por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 30-01-2023.
Encontro Yanomami em frente à maloca Watoriki, em 2018. Foto: Adriana Huber Azevedo/Cimi Norte 1
No início da década de 1970 – do século passado – os militares brasileiros inventaram e disseminaram mentiras de que a Amazônia Brasileira seria invadida por comunistas e guerrilheiros e que, diante disso, o país deveria se preparar para combatê-los por meio da militarização das fronteiras, especialmente em Roraima e no Amazonas.
Os militares, além de levarem um contingente enorme de soldados à Região Amazônica, promoveram a sua colonização, arregimentando milhares de pessoas para os ofícios de desmatar, plantar pasto, soja e criar bois. Concomitante a isso, o governo ditatorial desencadeou um movimento de construção de estradas, rodovias, financiou obras de hidroelétricas, de expansão da mineração e exploração madeireira.
Quem eram as pessoas que migraram para a Amazônia? Em geral pobres, sem-terras, filhos de pequenos agricultores e tantos homens e mulheres ‘sem eira nem beira’, utilizados como peões de empresários ou especuladores de terras. Foram dezenas de milhares de pessoas que, a pretexto de encontrarem o “eldorado dos sonhos” e ficarem ricas, ocuparam as terras e nelas colocaram cercas. E, para além dos colonos, os militares incentivaram o garimpo, especialmente de ouro e diamantes, em Roraima, Pará, Mato Grosso e Rondônia. Nesse contexto, as invasões de terras e a devastação foram indescritíveis. Houve, por exemplo, no Amazonas, a abertura da BR 174, ligando Manaus, Amazonas, a Boa Vista, Roraima. Durante a sua construção e pavimentação a violência foi tamanha que desencadeou-se um intenso processo de dizimação de mais de 30 comunidades indígenas, dentre elas do povo Waimiri Atroari.
Na década de 1980 os militares consolidaram o plano estratégico de ocupação da Amazônia por meio do Projeto Calha Norte, estruturado nas margens dos Rios Solimões, Rio Negro e Amazonas. Uma das razões para o estabelecimento de pelotões nas fronteiras vinculava-se à ideia de que o Brasil estaria sob ameaça, tanto de agentes externos, como dos próprios indígenas, já que estes, em associação com guerrilheiros da Colômbia, Venezuela, Peru e Bolívia, poderiam formar nações independentes e tomarem conta de todas as riquezas. Ou seja, os povos indígenas foram caracterizados como inimigos a serem combatidos e aniquilados.
No ano de 1985, era do governo Sarney, o Calha Norte assumiu forma de programa de estado e os militares se tornam os agentes de “proteção” da Amazônia. Naquele período, mais de 60 mil garimpeiros invadiram o território Yanomami. Estupros, assassinatos, incêndios, contaminação das águas, malária, tuberculose, fome, miséria e extermínio. Há documentações, relatórios e estudos de que num período, de dois anos, morreram mais de 2.500 indígenas Yanomami. Há nessa história, uma personagem central, a Funai (Fundação Nacional do Índio), presidida na época por militares e depois por nada mais, nada menos do que Romero Jucá. Jucá tornou-se o negociador e agenciador dos garimpeiros, dando-lhes guarida.
Depois de uma intensa repercussão internacional acerca dos massacres e da vulnerabilidade dos Yanomami, em 1992, o governo Collor de Mello decidiu demarcar a Terra Yanomami em área contínua. Seu ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, tornou-se o responsável pela consolidação do procedimento demarcatório.
Naquele contexto foram criadas campanhas e desenvolveram-se programas sanitários de proteção à vida. Os garimpeiros foram sendo expulsos, as pistas de pouso e as infraestruras destruídas, assim como combatidos os donos de postos de combustíveis que, em parceria com os empresários do garimpo forneciam gasolina que abasteciam aviões, dragas, balsas, barcos e outros motores.
No ano de 1993 houve o Massacre do Haximu. Dezenas de Yanomami perderam as vidas depois de ataques dos garimpeiros. A repercussão do fato tomou as páginas dos jornais e novamente os organismos internacionais exigiram medidas de combate ao garimpo em Roraima.
Até o advento do mal fadado governo Bolsonaro, parecia ter havido um refluxo das invasões na Terra Yanomami. Mas as invasões nunca cessaram. Os dados das equipes de saúde, ligadas ao Distrito Sanitário Yanomami, as informações das organizações indígenas, ou da própria Funai e de outros pesquisadores, antropólogos, ambientalistas, indigenistas, missionários e missionárias apontavam e denunciavam que os Yanomami eram vítimas contínuas dos garimpeiros. Ou seja, o Estado, suas forças de segurança, nunca priorizaram ações e medidas de proteção, fiscalização dos territórios e das vidas, muito menos agiu no sentido de promover a responsabilização dos criminosos garimpeiros, dos empresários e das empresas que patrocinam e executam os negócios sujos do ouro, extraído, de forma criminosa, das terras da União. É importante esclarecer que as Terras Indígenas são bens da União, destinados ao usufruto exclusivo dos povos indígenas – previsão nos artigos 231 e 20, XI, da CF/1988.
Bolsonaro, genocida, ao assumir a governança do Brasil, ano de 2019, retomou as práticas anti-indígenas dos anos de 1970 e 1980. Ele promoveu a desterritorialização, a desconstrução dos direitos, a integração ou dizimação dos indígenas, bem como anunciou o novo “eldorado garimpeiro”, agora sob seu comando e controle.
As invasões, neste ambiente, voltaram a ser massivas, não tão somente em Roraima, mas em todas as regiões da Amazônia.
Os indígenas, como se designou na concepção do projeto Calha Norte, são aqueles que devem morrer. Eis, portanto, o genocídio contínuo, cantado em prosa e verso entre milicos e políticos das bases de sustentação do ex-presidente Bolsonaro.
O governo Lula, desde logo, adotou como prioridade, e não poderia ser diferente, a defesa dos Yanomami, desenvolvendo ações para combater a desnutrição e atuando no sentido de reestruturar a assistência em saúde naquele território. Mas faltam, ainda, os anúncios de medidas administrativas, políticas e jurídicas que busquem enfrentar os males do garimpo, dos garimpeiros e dos empresários, todos criminosos, que agem como tentáculos do genocida.
Há a necessidade urgente, nestes tempos de esperanças num novo governo, de que sejam desencadeadas ações que ponham um fim nas invasões, para que o amanhã dos Yanomami não se torne o retrato de hoje.
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Yanomami ontem, hoje e amanhã. Artigo de missionários do Cimi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU