14 Novembro 2022
"A história mostra que a diplomacia do Vaticano só soube dar excelentes provas de si quando conseguiu manter-se numa posição terceira, superior às partes em conflito: não se trata de negar a realidade, isto é, de assumir a defesa de um ou outro contendente. O fato é que, mais simplesmente, só assim se pode esperar - nada é certo - poder desempenhar, se necessário, um papel de facilitador, para que os inimigos, mais cedo ou mais tarde, decidam sentar-se à mesa de negociações", escreve Matteo Matzuzzi, em artigo publicado por Il Foglio, 13-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Renovam-se os apelos para que Francisco condene as desordens no Irã. Depois da polêmica sobre a hesitação sobre a Rússia, volta-se a discutir os “silêncios” do vigário de Cristo – “Oh! As dores da Santa Sé! Muitas vezes não há nada além de gemidos pelas injustiças sofridas. Poder-se-ia gritar mais alto. Outros problemas surgiriam”. (Angelo Roncalli, João XXIII, “La mia vita in oriente”).
Por que o Papa não condena a Rússia e Vladimir Putin? E por que ele não diz nada contra o regime iraniano que se comporta com seu próprio povo como qualquer regime quando se sente ameaçado, reprimido e assassinado? Os silêncios do Pontífice, reais ou presumidos, certamente não são uma questão nova. Basta pensar na vasta literatura sobre a atitude de Pio XII em relação ao nazismo e ao Holocausto, seus silêncios diante do massacre e das chaminés fumegantes dos campos de concentração. “O que se fala dos meus silêncios sobre os alemães?”, perguntou o Papa Pacelli ao então Mons. Angelo Roncalli na audiência que lhe foi concedida em 1 de outubro de 1941.
Pergunta que surpreendeu o futuro João XXIII, tanto que a registrou em seu diário. Na realidade não se sabe, como escreveu Andrea Riccardi em seu La guerra del silenzio, recém publicado pela Laterza, a que Pio XII se referisse especificamente: aos judeus perseguidos? Ou talvez aos poloneses, que há algum tempo se queixavam de uma política demasiado realista da Santa Sé que parecia inerte enquanto Hitler ocupava Varsóvia e destruía ruas e praças? Nunca saberemos, Roncalli não fala nada. O que se percebe é que bem antes da obra "O Vigário" de Rolf Hochhuth, a questão dos silêncios pacellianos circulava na cúria e atormentava o próprio Pontífice, talvez convencido de que uma sua palavra a mais poderia ser considerada por Berlim como uma provocação tal a justificar uma reação desproporcionada.
La guerra del silenzio: Pio XII, il nazismo, gli ebrei
Os sinais existiam, quando os bispos holandeses protestaram contra a ocupação alemã e a punição ordenada por Hitler não foi indolor. São teorias para os historiadores engajados em vasculhar os Arquivos, tentando – quem sabe com que sucesso – lançar luz sobre aquele particular e complexo quinquênio do século XX. Mas o tema do silêncio do Papa, ainda que privado da gravidade daqueles anos, se repete ainda hoje. Não há peças de teatro no meio, mas as redes sociais e a imprensa. Por que o Papa não fala nada?
Desde o final de fevereiro passado, os discursos de Francisco são consultados, lidos e relidos, assim como suas entrevistas – improvisadas ou programadas – estudando para entender se há uma meia palavra de condenação contra a Rússia ou seu presidente.
Bergoglio nunca o fez, embora não haja dúvidas sobre quem seja o agressor do "atormentado povo ucraniano", mesmo que alguns tweets - "os mercenários" apontados como os únicos culpados da guerra na Ucrânia - não sempre deixaram clara a linha do Vaticano. Em todo caso, quando parecia possível o uso de armas nucleares, dirigiu-se em um Angelus ao Presidente da Federação Russa, chamado para parar e evitar o apocalipse. E o pedido de uma palavra de condenação foi dirigido ao Santa Marta ainda mais recentemente, embora com menos ênfase, em relação ao que está acontecendo em Teerã. O Irã está em revolta, os jovens protestam nas ruas, as garotas cortam os cabelos e os véus voam como um desafio contra as autoridades religiosas que controlam tudo. Por que o Papa não fala nada?
A essa pergunta se poderia responder com outra, provocativa: mas por que o Papa deveria dizer alguma coisa? O bispo de Roma, porque tal é o Papa, não é um influenciador. Ele não é obrigado a proferir uma palavra sobre tudo, a dizer o que pensa sobre cada evento que Deus envia à terra. Não é Whoopi Goldberg ou Oprah Winfrey que, às vésperas das eleições de meio de mandato, devem necessariamente informar aos estadunidenses como pretendem votar. O Papa é de fato um chefe de Estado, mas mais ainda é o vigário de Cristo na terra. Suponhamos que Francisco optasse pela denúncia explícita e pública: quais seriam as consequências?
O Politico Europe havia abordado a questão alguns meses após o início da invasão, sublinhando que "um empenho tenaz com a neutralidade é pragmático", pois se baseia "na convicção de que a porta do diálogo assim se mantém aberta". Além disso, e aqui voltamos às dúvidas que assolam a cúria pacelliana, "não está claro o que a Santa Sé poderia conseguir com um tom mais agressivo, dada a intransigência de Putin e a falta de influência sobre a Igreja Ortodoxa Russa, que apoiou com entusiasmo a guerra” desejada pelo Kremlin.
A história mostra que a diplomacia do Vaticano só soube dar excelentes provas de si quando conseguiu manter-se numa posição terceira, superior às partes em conflito: não se trata de negar a realidade, isto é, de assumir a defesa de um ou outro contendente. O fato é que, mais simplesmente, só assim se pode esperar - nada é certo - poder desempenhar, se necessário, um papel de facilitador, para que os inimigos, mais cedo ou mais tarde, decidam sentar-se à mesa de negociações. Sempre foi assim. Basta pensar na última Guerra do Golfo que levou à queda de Saddam Hussein.
João Paulo II opôs-se claramente à intervenção estadunidense e o fez entender com o famoso Angelus de 16 de março de 2003, ao falar de improviso gritou seu "nunca mais a guerra". No entanto, ele nunca citou os Estados Unidos. Ele não condenou explicitamente a ação da força, não mencionou nomes ou sobrenomes. A essência do discurso, no entanto, era evidente, tanto que provocou a reação veemente de grande parte dos intelectuais neoconservadores mais influentes: Richard Neuhaus, fundador da revista First Things, de fato disse que "no que diz respeito à clareza moral sobre a guerra e a paz, deve-se admitir sem reticências que este não foi o melhor momento deste pontificado. Mas não deveríamos ficar muito surpresos. Flannery O'Connor disse que às vezes sofremos mais por causa da Igreja do que pela Igreja. E na realidade não é tanto sofrimento quanto uma questão de decepção e constrangimento”.
João Paulo II, que certamente não pode ser acusado de tendências peronistas ou de simpatias terceiromundistas e marxistas, ativou a diplomacia: escolheu Roger Etchegaray e Pio Laghi, enviando-os um a Bagdá para Saddam Hussein e outro a Washington para George W. Bush. Novamente, a tentativa de facilitar uma mediação que evitasse a guerra. A atenção da Santa Sé era motivada também pelo fato de que no Iraque estava presente - e numerosa - uma das comunidades cristãs mais antigas, que com a guerra teria sofrido.
O envolvimento de fiéis cristãos pode, de fato, ser um dos fatores que decidem a intervenção, mesmo que apenas verbal, do Papa. Bento XVI optou por se expressar sobre o atentado que atingiu uma igreja em Alexandria, no Egito, em 1º de janeiro de 2011. "Diante desta estratégia de violência que tem por objetivo os cristãos e tem consequências para toda a população, rezo pelas vítimas e suas famílias". As reações não foram ternas, a começar pela do Grande Imã de al Azhar, o mesmo Ahmed al Tayyeb hoje considerado uma espécie de farol moderado em um mundo turbulento e revirado pelas tensões. Al Tayyeb falou de "ingerência inaceitável", acrescentando instrumentalmente que não entendia "por que o Papa não pediu a proteção dos muçulmanos quando eram massacrados no Iraque". Al Azhar decidiu interromper o diálogo com a Santa Sé.
No Huffington Post, o pianista Ramin Bahrami apelou ao Papa para que fale uma palavra sobre o Irã. “Observo uma falta de atenção do Santo Padre, que não consigo explicar. Um estranho silêncio nesses longos meses de protesto no Irã”. “Tentei - continua Bahrami - dar-me uma resposta a essa indiferença do Papa Francisco, talvez o Santo Padre tenha medo de detonar uma bomba nas relações entre o islamismo e o cristianismo.
Mas esses senhores que governam no Irã não são depositários de nada, não são nem muçulmanos nem cristãos, não têm a menor crença em nada, por seus interesses cortariam a cabeça de suas mães”. Mais ainda: “Estou surpreso que ele não quis dizer uma palavra de solidariedade para as mulheres, os jovens, o povo iraniano. Estão pagando pela liberdade com suas vidas, não se pode permitir que seja pisoteada de forma tão covarde, incivilizada, desumana. Esses mortos não são menos sagrados do que os mortos no Congo, Síria, Somália, Ucrânia. Não podemos ter dois pesos e duas medidas”.
O fato é que a Santa Sé, e o próprio Papa, estão engajados em um trabalho delicado e paciente de costura entre o Islã e o Cristianismo. Mais: o Papa pressiona para que as duas grandes almas islâmicas encontrem o caminho para a pacificação. Xiitas e sunitas, juntos. Somente assim, pensa Francisco, a "Terceira Guerra Mundial em pedaços" terminará em pelo menos uma parte do mundo e o Oriente Próximo e o Oriente Médio poderão encontrar um mínimo de estabilidade.
O plano, foi visto na recente viagem ao Bahrein, é esse. Utopia? Possível. E se o Papa não intervir para censurar as violências do regime de Teerã - que sempre teve excelentes relações com a Santa Sé, com todos os papas que se sucederam - o fará pela realpolitik, ciente de que suas palavras só alienariam as aberturas xiitas, sem obter nada em troca. O cardeal Michael Czerny, prefeito do dicastério do Serviço de Desenvolvimento Humano Integral, sobre as polêmicas pela não condenação de Putin, dizia há alguns meses que "não é necessário citar nomes, isso só tornaria o diálogo mais difícil". A máxima também se aplica bem ao caso iraniano.
Mas até que ponto o silêncio tem razões justificadas para ser mantido? O caso emblemático e mais atual é o que diz respeito à atitude da Santa Sé em relação à China. Uma situação diferente da iraniana, pois há milhões de fiéis ao Papa na República comunista que durante décadas foram obrigados - e em parte ainda são - a viver quase escondidos, vendo-se em muitos casos privados de seu próprio bispo (desaparecido, preso, deportado) e ameaçados na liberdade de culto. Não é necessário repetir a lista de igrejas desprovidas de cruzes ou diretamente arrasadas, é notícia documentada e apurada. Há quatro anos, após décadas de negociações, Roma e Pequim assinaram um acordo (provisório e secreto) relativo à nomeação de bispos.
Algo mudou desde então. Pouco pela própria admissão dos líderes diplomáticos do Vaticano, mas pouco é sempre melhor que nada. Mas a que preço? Ao preço do silêncio. Enquanto os tanques de Xi Jinping se alinhavam ameaçadoramente nas fronteiras de Hong Kong e os protestos de rua certamente não eram reprimidos com luvas de pelica, Roma ficou em silêncio. Enquanto um cardeal era preso e acabava sendo processado, Roma limitava-se – e não com o Pontífice – a expressar a esperança de que tudo pudesse ser resolvido da melhor maneira e rapidamente. Aquele cardeal é Joseph Zen, de noventa anos, que denunciava o apaziguamento do Vaticano ao regime, obrigando os fiéis que durante anos haviam permanecido leais ao pontífice a reconhecer de alguma forma a autoridade da Associação Patriótica Católica Chinesa, uma emanação do Politburo. Resumindo, o preço é muito alto.
Apenas uma vez Francisco falou algo sobre o que está acontecendo no grande país oriental, e foi a expressão de proximidade com os uigures perseguidos. Foi imediatamente repreendido publicamente pelas autoridades locais com um convite para cuidar das coisas que conhece sem se intrometer em negócios que não lhe dizem respeito. Desde então, nada mais. Realpolitik, pode-se dizer, mesmo que alguém que conhece a China tão bem quanto Lord Christopher Patten, o último governador britânico de Hong Kong, tenha dito à BBC que "o Vaticano é culpado do que outros também se tornaram culpados ao lidar com a China, ou seja, um certo grau de autoilusão. Imaginam obter coisas da China quando a China é a estrela que está obtendo muitas coisas do seu interlocutor”.
Trata-se de questões delicadas e o risco é que, seja qual for o caminho escolhido, se venha a colidir contra obstáculos e acidentes. Se o objetivo de Roma consiste no desejo de abrir um canal diplomático com Pequim, a única coisa a não fazer é culpar a destruição das cruzes das igrejas porque são demasiado "visíveis" ou protestar, publicamente e vigorosamente, pela perseguição dos bispos dissidentes. O silêncio leva implicitamente a aceitar o punho de ferro do que continua sendo, apesar de todos os sofismas diplomáticos, um regime ditatorial que não gosta de críticas ou objeções. Em um quadro complicado pela pretensão da Santa Sé de não ser considerada uma capelania do Ocidente liderada pelos estadunidenses, fica claro como a situação é difícil de resolver.
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O dilema do Papa e a condenação da violência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU