01 Novembro 2022
Eles estão presentes em tudo: da Inteligência Artificial aos eletrodomésticos. Sua escassez obstrui as cadeias produtivas. Para controlar sua tecnologia, EUA, China e outros países mergulharam em corrida que poderá definir sentidos do século XXI.
A reportagem é de Evgeny Morozov, publicada por Le Monde Diplomatique e republicada por Outras Palavras, 27-10-2022. A tradução é de Vitor Costa.
A vida humana contemporânea depende muito de semicondutores, chips muito poderosos e sofisticados encontrados em todos os dispositivos eletrônicos que usamos. Neste século, dominar o projeto, a fabricação e o fornecimento de chips será tão significativo geopoliticamente quanto o petróleo foi no século XX.
À medida em que a crise avança, a “fome de chips” deste ano – a escassez global de semicondutores que comandam dispositivos eletrônicos, computadores, carros e um número cada vez maior de eletrodomésticos – tornou-se um evento estranho, pelo menos geopoliticamente. Em maio, empresas norte-americanas escreveram ao presidente sul-coreano Moon Jae-in, pedindo-lhe que perdoasse o desonrado presidente da Samsung, Lee Jae-yong, atualmente cumprindo uma sentença de 18 meses de prisão por suborno1. Dada a dependência norte-americana de chips, era imperativo que a Samsung continuasse com seu investimento multibilionário planejado em instalações de fabricação destes componentes nos EUA. Com a “soberania de semicondutores” dos EUA em jogo, não houve menção ao Estado de Direito.
A dialética teria encantado os estudiosos da Escola de Frankfurt, mesmo que apenas por expor a burrice interna da sociedade “smart” de hoje. A escassez de chips nos forçou a esperar pelos mais recentes produtos eletrônicos de consumo: sem semicondutores (alguns por apenas US$ 1 por peça), eles não podem funcionar. Carros elétricos, smartphones, geladeiras inteligentes e escovas de dentes desapareceram de repente no buraco negro do capitalismo global, como se uma causa invisível tivesse cancelado o Consumer Electronics Show em Las Vegas.
A crise de hoje não é excepcional. Desta vez, no entanto, ocorreu em meio a uma ansiedade mais ampla sobre a globalização, o declínio da atividade industrial ocidental e a politização de tecnologia avançada, como a Inteligência Artificial, agora um domínio estratégico no impasse EUA/China. Isso explica como uma questão técnica insossa, que dez anos atrás teria pouco impacto fora das indústrias diretamente afetadas, se tornou uma enorme dor de cabeça para os governos.
Tudo tem a ver com a pandemia. Os lockdowns tornaram-se suportáveis graças a um aumento sem precedentes no consumo de serviços digitais, todos exigindo dispositivos, roteadores e servidores dependentes de chips. Também levou os consumidores entediados a comprar eletrodomésticos mais elegantes, aumentando a demanda por multiprocessadores, panelas elétricas de arroz etc.
A pandemia interrompeu (brevemente) as operações nas fábricas de semicondutores. A maioria está na Ásia: Taiwan, Coreia do Sul e China (Wuhan é o lar de um dos principais fabricantes de chips do país, a Yangtze Memory Technologies). Embora a região tenha sido elogiada pelo tratamento inicial da pandemia, a incapacidade de Seul e Taipei de garantir vacinas suficientes resultou em surtos nas fábricas de chips e diminuiu ainda mais a produção.
Seguiu-se uma espécie de diplomacia de chips por vacinas, com Taiwan alavancando agressivamente sua proeza de fabricação de chips para obter vacinas de aliados famintos pelos componentes. O Japão, ansioso para que os fabricantes de chips taiwaneses se instalassem por lá, doou 1,24 milhão de doses da vacina AstraZeneca. Os EUA, inicialmente planejando doar 750 mil doses da vacina da Moderna para Taiwan, triplicaram seu compromisso. Em meados de junho, Taipei deu a sua fábrica de chips mais importante (a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company – TSMC), e à Foxconn, sua outra gigante de tecnologia local, a autoridade para negociar diretamente com a BioNTech da Alemanha a compra de 10 milhões de doses2.
A atual escassez parece mais grave porque foi a indústria automobilística – ainda o motor do crescimento econômico e fonte de esperança para a recuperação pós-Covid – que suportou o peso dos atrasos nos envios e na fabricação. Durante décadas, os fabricantes de automóveis adotaram o just-in-time, o verdadeiro evangelho da globalização. Isso prometia imensas economias de custos em troca de manter estoques baixos. Com cadeias de suprimentos globais funcionando bem, as flutuações na demanda podem ser tratadas em tempo real, sem forçar as montadoras a comprar e armazenar insumos em excesso.
Com a chegada da pandemia, as montadoras reduziram suas projeções de vendas, cancelando ou reduzindo pedidos de chips. Mas não previram que o apetite global por chips continuaria forte ou que a demanda por veículos se recuperaria de forma relativamente rápida. Relutantes em usar o transporte público, os clientes esbanjavam carros novos. Esses carros podem conter entre 1.400 e 3.500 semicondutores, 40% do custo total do carro3.
Em tempos normais, poderia ter sido possível apenas aumentar a produção de chips. No entanto, o fechamento de fábricas por causa da pandemia, combinado com alguns eventos extraordinários tornou isso quase impossível: clima frio no Texas (onde muitos fabricantes de chips dos EUA estão localizados), seca em Taiwan, um incêndio em uma grande fábrica de chips no Japão, o bloqueio do Canal de Suez, os esforços das empresas chinesas para estocar chips antes de serem atingidos pelas sanções dos EUA.
Os fabricantes de automóveis foram pegos de surpresa. Muitos, mesmo os maiores, não têm relações diretas com fabricantes de chips: eles os obtêm por meio de fornecedores de peças automotivas como a Bosch e a Continental. Além disso, à medida que a demanda por semicondutores de todos os tipos aumentou, os fabricantes racionalmente realocaram a capacidade de produção para os chips de computadores e smartphones, muito mais lucrativos.
Por que as montadoras não podem produzir seus próprios chips? Elon Musk está tentando descobrir: a Tesla, que, além de ponderar sobre um plano de pré-pagamento de fabricantes de chips pelos semicondutores de que precisa – outro prego no caixão do dogma just-in-time – considerou comprar uma fábrica de chips. A Volkswagen em breve estará projetando chips para carros autônomos4.
No entanto, projetar é uma coisa, fabricar é outra. A Europa não está satisfeita. “Se um grande bloco como a UE não está em condições de produzir microchips, não me sinto confortável com isso”, disse a então chanceler Angela Merkel em maio. “Se você é uma nação automobilística, não é realmente bom se não puder produzir o componente principal”5. A lógica de Merkel era sólida: a Europa passou de 44% da capacidade global de fabricação em 1990 para apenas 10% hoje. No entanto, é improvável que esse exame de consciência atrasado produza resultados sem um exame muito mais amplo das principais premissas (sobre globalização, comércio, segurança nacional e estratégia industrial) que moldaram a política de semicondutores dos EUA e da UE por décadas.
A fabricação de chips é um processo complexo, que exige várias operações distintas que podem durar meses. Essas operações podem incluir mais de mil etapas, pois a areia – a fonte do silício, ainda o material mais comum em semicondutores – é transformada em circuitos integrados de complexidade quase infinita.
Apesar de toda a complexidade, o princípio subjacente permanece simples. Os chips de hoje são compostos de milhões ou mesmo bilhões de transistores; quanto mais transistores cabem em um chip, maior sua potência. Os transistores permitem o controle do fluxo do circuito elétrico, ligado ou desligado. Essa linguagem binária de 0 e 1 sustenta a computação moderna, fazendo a mediação entre eletricidade e informação6.
Como toda indústria competitiva, a fabricação de chips está sujeita à pressão de ter que “fazer mais com menos”. Para a maioria dos chips, pelo menos os da variedade lógica, isso significa maximizar seu poder de computação e minimizar os custos financeiros e de energia associados. Essa tendência é conhecida como Lei de Moore (em homenagem ao cofundador da Intel, Gordon Moore): se as tendências passadas continuarem, o número de transistores em um chip dobrará a cada ano, com uma redução correspondente no custo do chip e um aumento em seu poder de computação.
Ironicamente, os benefícios “mais com menos” associados à Lei de Moore levaram a indústria de semicondutores a fazer “mais com mais”7. À medida que suas principais empresas vão até os limites da física, elas são forçadas a investir quantias cada vez maiores em equipamentos. O gasto de capital projetado da taiwanesa TSMC para 2021-24 é de US$ 100 bilhões; a Samsung pretende gastar US$ 151 bilhões até 2030. Outros gigantes estão investindo quantias semelhantes. O que é necessário não é apenas dólares, mas cérebros: de acordo com um estudo, acompanhar a Lei de Moore hoje requer 18 vezes mais pesquisadores do que no início dos anos 1970.
Os chips geralmente são agrupados em “nós de tecnologia”, de acordo com a precisão com que são gravados. Um pouco como gerações em uma família, diferentes nós geralmente envolvem diferentes arquiteturas e processos de fabricação. Geralmente, quanto menor o nó, menores, mais rápidos e mais eficientes energeticamente são os transistores. Os chips nos smartphones e tablets mais recentes são do nó de 5 nm (nanômetros). Em chips de nó de 3 nm – ainda sem produção em massa até 2022, no mínimo – os transistores terão apenas 1/20.000 da largura de um fio de cabelo humano. Tais avanços, no entanto, são relevantes apenas para alguns eletrônicos. Exceto pelos chips usados para IA e entretenimento eletrônico, os carros funcionam com semicondutores de nós de tecnologia muito mais antigos.
No passado, uma única empresa – conhecida como fabricante de dispositivos integrados – normalmente orquestrava todo o processo, desde o projeto do chip até a fabricação, teste e embalagem. Esta foi a história da Intel, da Texas Instruments, da IBM e muitos outros.
Tudo isso começou a mudar no final da década de 1980, quando Morris Chang, um engenheiro nascido na China e educado nos EUA com décadas de experiência na Texas Instruments, a gigante de semicondutores sediada nos EUA, fundou a TSMC em Taiwan. Chang percebeu que a fabricação de chips estava se tornando tão intensiva em capital que outro modelo era necessário. Ele imaginou a fabricação de chips como um serviço, pelo qual a TSMC ofereceria excelentes instalações de fabricação para permitir que as empresas de chips se livrassem de suas próprias fábricas e se concentrassem no design.
A grande chance de Chang veio no início de 2010, quando a Apple deu à empresa o contrato para os chips do iPhone. O TSMC sempre foi um navio apertado, com insistência quase paranoica no sigilo no local de trabalho e uma cultura de trabalho stakhanovista; a certa altura, a divisão de P&D da empresa trabalhava 24 horas por dia, em três turnos8.
Hoje, a capitalização de mercado da TSMC, de mais de US$ 600 bilhões – 2,5 vezes a da Intel – a coloca entre as doze empresas mais valiosas do mundo. Tecnologicamente, está vários anos à frente de seus concorrentes mais próximos. Sua mais recente fábrica, que deve entrar em serviço no próximo ano, custou US$ 20 bilhões e contará com uma sala limpa – instalação crucial para a produção de semicondutores – do tamanho de 22 campos de futebol.
É em parte graças ao TSMC que os chips não são mais vistos como componentes de uso geral do tipo take-it-or-leave-it. As necessidades de gigantes da tecnologia como Alphabet e Amazon são tão específicas – e seus recursos são tão vastos – que eles podem se dar ao luxo de especificar e projetar seus próprios chips9. Em poucos anos, as montadoras provavelmente seguirão o mesmo curso para os chips de Inteligência Artificial mais avançados.
A mudança para o design sob medida também significou modelos de negócios construídos em torno da propriedade intelectual. A Arm Holdings, com sede no Reino Unido – de propriedade do Softbank, mas atualmente alvo de uma controversa oferta de aquisição de US$ 40 bilhões pela gigante de chips norte-americana Nvidia – é um exemplo notável. A Arm detém uma impressionante variedade de direitos de propriedade intelectual. A empresa desenvolve soluções abstratas que, uma vez implementadas, permitem melhorar a arquitetura do chip. Os clientes pagam à Arm uma taxa de licença e royalties em troca de instruções sobre como essas regras abstratas devem ser executadas em cada contexto de uso específico.
A partir da década de 1950, os EUA foram o líder indiscutível no campo. O amplo financiamento de pesquisas e a benção do Pentágono garantiram a hegemonia das empresas norte-americanas. Isso começou a mudar na década de 1970, quando empresas japonesas desafiaram a liderança dos EUA, especialmente em chips de memória e sensores. Os fabricantes de chips do Japão embarcaram em ousadas ofertas de aquisição nos EUA, enquanto mantinham seu próprio mercado doméstico fechado para participantes estrangeiros.
Isso não funcionou bem com o governo Reagan, que acabou usando seu poder comercial e geopolítico para neutralizar os concorrentes japoneses10. O governo dos EUA também pressionou por laços mais estreitos entre a indústria e a academia. A ascensão do modelo sem fábricas de fato provou ser benéfica para os EUA, pois deixou os fabricantes de chips japoneses com instalações de produção ociosas (e relativamente caras), enquanto permitia que os gigantes de chips americanos reorientassem seus esforços para o design. O Japão nunca recuperou totalmente sua liderança na fabricação de chips; sua participação nas vendas globais de semicondutores diminuiu de 50% em 1988 para 10% hoje.
O triunfo dos Estados Unidos foi uma vitória de Pirro, uma vez que sua própria participação na capacidade de fabricação global caiu de 37% em 1990 para 12% hoje? Na aparência, não é assim: a indústria norte-americana de semicondutores – representada pela Nvidia, AMD, Broadcom, Qualcomm e até mesmo pela Intel em dificuldades – jogou o jogo da globalização como deveria ser jogado: a fabricação de baixa margem foi terceirizada para Ásia, enquanto o design de alta margem e outras atividades relacionadas à propriedade intelectual permaneceram nos EUA.
Um país que acompanhou de perto a ascensão do TSMC é a China11. Durante a maior parte da década de 1990, as mãos de suas empresas de tecnologia, muitas delas próximas aos militares, foram atadas pelo Acordo Wassenaar, um sucessor do regime multilateral de controle de armas da era da Guerra Fria que controla as transferências de armas convencionais e armas de uso duplo, bens e tecnologias, e restringiu severamente o espaço de manobra da China em semicondutores.
A China precisava de campeões nacionais que se parecessem com grupos independentes e respeitáveis, não apenas atrelados ao regime. Ela encontrou um campeão na Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC), fundada em 2000 por Richard Chang. Como Morris Chang, Richard Chang (sem parentesco) passou anos na Texas Instruments, depois trabalhou para Morris Chang na TSMC. No final da década de 1990, Richard Chang deixou a TSMC para fundar um concorrente chamado Worldwide Semiconductor Manufacturing Corp (WSMC), embora tenha perdido mais tarde o controle da empresa e ela tenha sido vendida.
Irritado, Richard Chang partiu para Xangai, levando 100 engenheiros consigo, para montar a SMIC. Homem profundamente religioso, não era um aliado óbvio do Partido Comunista12. No entanto, não teve nenhum problema em levantar dinheiro de bancos como o Goldman Sachs, que se tornou um dos principais investidores iniciais da SMIC. A saída de Chang não agradou nem ao governo de Taiwan nem à TMSC; anos de litígio o forçaram a deixar a SMIC em 2009.
A SMIC [hoje uma empresa parcialmente estatal] avançou, atraindo grandes investimentos de várias agências e fundos estatais chineses (o mais recente, US$ 2,2 bilhões, foi em maio de 2020). Apesar de todo esse financiamento, ainda fica atrás da TSMC e da Samsung; por enquanto, limita-se a chips no nó de 14 nm. Seus esforços para subir a escada do nó foram prejudicados pelas sanções dos EUA, impedindo-o de obter máquinas de litografia ultravioleta extremas de seu único fornecedor, a empresa holandesa ASML. No entanto, a SMIC afirma ter encontrado uma maneira de contornar isso; suas próprias inovações internas podem ajudá-la a saltar diretamente para a fabricação dos equivalentes aos chips de nó de 7 nm.
O sucesso da SMIC deve-se aos esforços das autoridades chinesas para desenvolver uma indústria doméstica de chips. E esses esforços parecem valer a pena, em parte: a China tem mais fábricas em construção do que qualquer outro país do mundo. Houve mais de 1.000 planos oficiais que prometeram alguma forma de apoio à causa dos semicondutores. O mais importante deles é o Plano Nacional de Circuitos Integrados de 2014, que estabeleceu um fundo de US$ 150 bilhões para apoiar a indústria doméstica de chips, facilitar aquisições estrangeiras e garantir componentes críticos do exterior; em 2019, foi estendido com outros US$ 28,9 bilhões.
Depois, há o compromisso mais amplo do presidente Xi Jinping de gastar até US$ 1,4 trilhão nos próximos seis anos para garantir a liderança da China em tecnologias estratégicas. Liu He, o vice-premier formado em Harvard, foi apontado como o czar de chips da China e encarregado de supervisionar o desenvolvimento de tecnologias de semicondutores de ponta.
Pequim tem muitas medidas para estimular sua indústria de chips13. Eles vão desde forçar empresas de tecnologia estrangeiras a formar joint ventures e compartilhar sua propriedade intelectual com empresas chinesas até pressionar os gigantes de tecnologia existentes na China a adquirir mais de seus chips dos fabricantes iniciantes, ou perder todos os subsídios do Estado.
Por que Pequim está prestando tanta atenção aos semicondutores? Enquanto a China aspirar a ser a fábrica do mundo, ela precisa ter chips suficientes para alimentar todos os eletrônicos que fabricará. Por enquanto, ainda não: só em 2020, importou US$ 350 bilhões em chips – gastando mais com eles do que com petróleo. Desde 2005 detém o duvidoso título de maior importador mundial de semicondutores, o que realça a imensa distância entre a sua produção e o seu consumo.
O mundo dos semicondutores é cruel. Para cada SMIC, há centenas, senão milhares de empresas que quebram. De acordo com uma estimativa do jornal chinês Diário do Povo, o período entre janeiro e outubro do ano passado viu o nascimento de mais de 58.000 empresas de chips – cerca de 200 por dia.
A tentativa da Nvidia de assumir a Arm Holdings causou algum alarme em Pequim. Se a Arm se tornar parte de uma empresa norte-americana, Washington pode pressioná-la a não licenciar sua propriedade intelectual para empresas chinesas. No curto prazo, Pequim pode simplesmente bloquear a fusão Nvidia-Arms, como fez no passado. A longo prazo, no entanto, China, Índia e Rússia estão depositando suas esperanças no RISC-V, uma alternativa de código aberto à tecnologia RISC da Arm. Isso começou como um projeto de código aberto na Universidade da Califórnia, em Berkeley, mas desde então se tornou uma impressionante associação sem fins lucrativos, a RISC-V International. Em novembro de 2019, mudou-se para a Suíça. Isso foi feito para evitar problemas com as regulamentações comerciais dos EUA, dada a forte presença de empresas chinesas em suas fileiras (mais de duas dezenas delas aderiram). ZTE, Huawei e Alibaba também estão ocupados experimentando as tecnologias RISC-V14.
Talvez o aspecto mais divertido da crise dos chips tenha sido observar os políticos norte-americanos questionarem o consenso político das últimas décadas. Falando ao Atlantic Council – um think tank ultraliberal — no final de junho, o principal conselheiro econômico de Joe Biden, Brian Deese, reclamou de um “coma induzido por políticas” e insistiu que “investimento público estratégico para abrigar e desenvolver indústrias campeãs é uma realidade da economia do século XXI”15.
A política dos EUA para microprocessadores foi moldada pelos imperativos duplos de criar empregos e impedir a ascensão da China. Uma vez que Biden prometeu trazer de volta os empregos industriais para os Estados Unidos, poucos políticos poderiam se opor a dar alguma prioridade à indústria de semicondutores; afinal, esses empregos pagam o dobro do salário de um emprego industrial médio nos EUA.
A Lei de Inovação e Concorrência dos EUA, aprovada pelo Senado no início de junho, destina US$ 52 bilhões para restaurar a fabricação de chips dos Estados Unidos à sua antiga glória. Parte desse dinheiro poderia ser usado para atrair a TSMC e a Samsung a seguir em frente com os planos de estabelecer fábricas de chips avançados nos EUA. Mas, embora US$ 52 bilhões possa parecer muito dinheiro – e, na maioria das indústrias, é – isso não é nada comparado aos US$ 450 bilhões que a Coreia do Sul planeja gastar nas próximas décadas. E os benefícios de longo prazo da relocalização de fábricas não são óbvios: um estudo estima que o custo de operação de uma nova fábrica de chips nos EUA ao longo de dez anos será 30% maior do que em Taiwan ou na Coréia do Sul e 50% maior do que em China16.
O governo Biden continuou a linha dura de Trump contra a China, refinando algumas de suas medidas iniciais. Por exemplo, uma ordem executiva assinada por Biden no início de junho proíbe os americanos de investir em 59 das empresas chinesas com supostas ligações com seus militares, incluindo Huawei e SMIC17.
Onde fica a Europa nisso tudo? A atitude atual dos formuladores de políticas europeus se assemelha à de seus pares nos EUA: pânico. Em maio, Thierry Breton, o comissário francês da UE encarregado da política digital, prometeu restaurar a participação de mercado perdida pela Europa na fabricação de chips, garantindo pelo menos 20% da oferta mundial de chips até 2030. A UE, disse ele, tem sido “muito ingênuo, muito aberto”.
Esta é uma maneira educada de dizer que a Europa não foi tão bem-sucedida quanto os EUA em fazer a globalização funcionar para sua própria agenda. Quando se trata de empresas de semicondutores sem fábrica, a Europa detém apenas 3% do mercado. A única empresa europeia entre os 50 maiores fabricantes de chips sem fábrica é a Nordic Semiconductor da Noruega; a única outra a entrar recentemente na lista – a Dialog Semiconductor, com sede no Reino Unido – foi vendida para a japonesa Renesas Electronics em fevereiro.
Os fabricantes de chips mais conhecidos da Europa – NXP (Holanda), Infineon e Bosch Semiconductors (ambas Alemanha), STMicroelectronics (França/Itália) – mantiveram alguma capacidade de fabricação básica, mas também contam com empresas como a TSMC. Eles atendem a uma base de clientes muito específica – principalmente nos setores industrial e automotivo – e são especializados em sensores e semicondutores de energia e radiofrequência. Estes últimos, diferentemente dos chips lógicos, não estão sujeitos à Lei de Moore, e o “encolhimento do nó” é, consequentemente, de menor importância.
Previsivelmente, nenhum dos grandes fabricantes de chips europeus aderiu ao apelo de Breton de investir bilhões para garantir que a Europa possa fabricar chips de 2 nm e 5 nm até 2030. A Intel que, juntamente com a TSMC e a Samsung, foi estimulada a obter ajuda, ofereceu seus serviços, já que cada fábrica recebeu pelo menos 4 bilhões de euros em subsídios do Estado.
Breton está convencido de que, mesmo que a Europa atualmente não tenha mercado para chips de 2 nm, é seu trabalho criar tecnologias que os tornem possíveis. Isso parece um pensamento mágico. A dependência de chips da Europa é um sintoma de um mal-estar muito mais profundo que não pode ser curado com a injeção de fundos. Tendo terceirizado sua estratégia de defesa para o Pentágono e sua estratégia industrial para as montadoras, a Europa perdeu a capacidade de pensar estrategicamente sobre como adquirir seus eletrônicos. Sequer sabem por que isso é algo que vale a pena pensar.
O acúmulo de tecnologia que alimenta as economias europeias deveria ser impermeável à geopolítica: confiar sua construção ao mercado parecia ser o caminho a seguir. Isso mostrou ser, ao fim, uma aposta muito tola. O “Airbus para chips” que tanto excita os tecnocratas europeus certamente voará sob as cores nacionais chinesas.
1 Edward White, ‘US companies lobby South Korea to free jailed Samsung boss’, Financial Times, Londres, 20 /5/2021.
2 Lauly Li and Cheng Ting-Fang, ‘Taiwan probes possible COVID outbreak at TMSC’, Nikkei Asia, 12/7/2021.
3 ‘Semiconductors — the next wave: Opportunities and winning strategies for semiconductor companies’, Deloitte, April 2019.
4 ‘Tesla set to pay for chips in advance in bid to overcome shortage’, Financial Times, 27/5/2021; ‘Volkswagen to design chips for autonomous vehicles, says CEO’, Reuters, 30/4/2021.
5 Christoph Rauwald, ‘Bosch opens German chip factory to help relieve global shortage’, Bloomberg Businessweek, Nova York, 7/6/2021.
6 Os chips diferem em termos de função. Os lógicos e os chips de memória – os primeiros usados para processar informações e os últimos para armazená-las – são os dois tipos principais. Chips analógicos – usados para transformar sinais analógicos como som ou luz em formato digital – optoeletrônicos, sensores e dispositivos discretos compõem o restante.
7 ‘Semiconductors: US industry, global competition, and federal policy’, Congressional Research Service, Washington DC, 26/102020.
8 Yang Jie, Stephanie Yang and Asa Fitch, ‘The world relies on one chip maker in Taiwan, leaving everyone vulnerable’, The Wall Street Journal, Nova York, 19/6/2021.
9 Ian King and Dina Bass, ‘Why Amazon, Google, and Microsoft are designing their own chips’, Bloomberg Businessweek,17/3/2021.
10 Tom Meinderts, ‘The power of section 301: the Reagan tariffs in an age of globalization’, Globalizations, v. 17, n. 4, Abingdon-on-Thames, 2020.
11 Seamus Grimes e Debin Du, ‘China’s emerging role in the global semiconductor value chain’, Telecommunications Policy, Elsevier, 2020.
12 ‘Richard Chang: Taiwan’s silicon invasion’, Bloomberg Businessweek, 9/12/2002.
13 Para uma visão geral da perspectiva dos EUA, consulte Stephen Ezell, ‘Moore’s law under attack: The impact of China’s policy on global semiconductor innovation’, Information Technology & Innovation Foundation, 18 de fevereiro de 2021; e ‘China’s new semiconductor policies: Issues for Congress’, Congressional Research Service, 20 April 2021.
14 Tobias Mann, ‘Is RISC-V China’s semiconductor salvation?’, SDX Central, 6/3/2021, www.sdxcentral.com/.
15 James Politi e Aime Williams, ‘Top Biden aide calls for US to embrace “industrial strategy” ’, Financial Times, 23 June 2021.
16 Antonio Varas, Raj Varadarajan, Jimmy Goodrich e Falan Yinug, ‘Government incentives and US competitiveness in semiconductor manufacturing’, Boston Consulting Group/Semiconductor Industry Association, 16 September 2020.
17 ‘Washington to bar US investors from 59 Chinese companies’, Financial Times, 4/6/2021.
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Semicondutores: a nova guerra global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU