Deus não vai mais à universidade: o futuro do Ensino Superior católico

Foto: Wokandapix | Pixabay

04 Outubro 2022

 

“Spiritus sancti gratia illuminet sensus et corda nostra.” Começa com essa invocação a defesa de doutorado de Jeroen Jans. Em setembro, o sol brilha em Nijmegen. Dentro do edifício de representação da Radboud Universiteit, os 11 membros da comissão se sentam em semicírculo, com as togas pretas bordadas em vermelho. O presidente lê a fórmula latina: invoca a graça do Espírito Santo para que ilumine o juízo e o coração dos comissários. Depois, dá as boas-vindas ao candidato e ao público. Aos 32 anos, flamengo, Jeroen discute uma tese sobre os jovens líderes católicos, protestantes, muçulmanos e ateus, sobre sua visão das relações entre o Estado e as organizações religiosas e humanistas. Ele entrevistou 600 deles nos Flandres e nos Países Baixos, e sua tese foi publicada em meados deste ano na Alemanha (“State without Religion? An Empirical Study among Religious and Humanist Youth in the Netherlands and Flanders” [Estado sem religião? Um estudo empírico entre jovens religiosos e humanistas nos Países Baixos e na Flandres], Münster: Lit Verlag).

 

O comentário é de Marco Ventura, jornalista italiano, em artigo publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 25-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Jeroen, católico, é subsidiado pela Diocese de Hasselt, a capital do Limburgo belga. Ele coloca suas competências a serviço da reorganização dos recursos diocesanos, humanos e materiais, diante daquela que, nos Flandres, assim como nos Países Baixos, é comumente definida como a “implosão” da Igreja. Faltam padres e fiéis. Pedaços de território pastoral são fundidos em unidades cada vez maiores e muitas vezes mais anônimas. Juntam-se duas paróquias, depois cinco, depois dez. As igrejas são vendidas a entes privados. Os padres importados da Índia ou da África, acostumados a um excesso de fiéis, não entendem que sejam tão poucos, e cada vez menos, nas terras de onde partiram os evangelizadores de seus antepassados.

 

A “implosão” é o contexto do estudo de Jeroen, das preocupações dos jovens líderes com a igualdade e a diversidade, sobre o papel dos poderes públicos na proteção das comunidades, sem esmagar os indivíduos, na promoção de valores sem impor ideologias. A discussão se anima. Amigos e colegas de Jeroen, liderados pelo próprio bispo de Hasselt, acompanham atentamente no anfiteatro.

 

A própria instituição que acolhe a discussão de doutorado é testemunha da precariedade da Igreja. A Radboud Universiteit de Nijmegen é uma prestigiosa universidade católica, mas sua identidade católica tem sido objeto de uma grave controvérsia desde 2020. Os comissários que invocam o Espírito Santo na defesa de doutorado de Jeroen, filiados a uma das mais renomadas faculdades de Teologia e Ciências Religiosas da Europa, representam uma instituição da qual não é possível dizer com certeza, hoje, se ainda é católica.

 

A crise foi precedida por anos de disputas sobre atividades clínicas problemáticas para a ética médica católica e de incompreensões sobre a nomeação dos membros do conselho da fundação que governa a universidade e o hospital universitário, a Stichting Katholieke Universiteit Nijmegen. Os candidatos propostos pela Conferência Episcopal foram pouco a pouco considerados de insuficiente profundidade científica e gerencial pela fundação, e os propostos pela fundação foram rejeitados pelos bispos, porque, segundo as informações recebidas dos párocos, careciam de vida cristã.

 

À beira da paralisia, a universidade obteve do Tribunal de Apelação de Amsterdã a ratificação de sua proposta de reduzir a um único membro a cota reservada a uma nomeação de exclusiva competência episcopal. Então, em 19 de outubro de 2020, um decreto da Conferência Episcopal Holandesa oficialmente retirou da Stichting Katholieke Universiteit Nijmegen o predicaat católico, ou seja, o direito de se chamar católica.

 

Liderada pela faculdade de Teologia e Ciências Religiosas, a universidade resiste. A Santa Sé não interveio oficialmente, mas circulam rumores de que o Dicastério para a Educação Católica deu a conhecer seu desacordo em relação à posição dos bispos. A notícia seria corroborada pelo fato de que o Anuário Pontifício continua incluindo a Radboud Universiteit entre as instituições católicas.

 

O cabo de guerra entre bispos, universidade e a própria Santa Sé continua. Em novembro, os bispos são esperados pelo Papa Francisco em Roma. Em 2023, a Universidade de Nijmegen celebrará o centenário de sua catolicíssima fundação, na onda da emancipação da hegemonia protestante e da restauração da hierarquia católica em 1853.

 

Uma transição de época

 

A crise holandesa é específica e peculiar, assim como são específicos e peculiares o passado e o presente do catolicismo de língua holandesa, vanguarda do reformismo nos tempos do catecismo holandês de 1966 e agora sob liderança conservadora, pelo menos segundo os críticos do episcopado. Seria superficial, no entanto, ler o caso unicamente dentro das fronteiras nacionais. De fato, ela exprime uma transição epocal na relação entre catolicismo e cultura, da qual as universidades católicas, em sua extraordinária variedade, são o epicentro.

 

Nijmegen não está sozinha, e não se trata apenas de Nijmegen. Seria igualmente superficial limitar a crise à luta pelo poder, à competição entre autoridades católicas centrais e locais, à concorrência entre Igreja e outras autoridades, estatais ou não. Certamente, essa dimensão é central para os interesses em jogo, para os procedimentos e para os atos com os quais a partida é disputada. Isso não significa que não se possa identificar um significado geral.

 

 

Ora, esse significado está na encruzilhada diante da qual se encontram as universidades católicas europeias e mundiais. Por um lado, há o caminho percorrido pelos bispos holandeses. Se o controle se tornar mais fraco, se a identidade se diluir, impõe-se uma escolha de coerência. A Igreja se retira. Abandona um campo incurável e contagioso. Aperta as fronteiras de sua própria minoria e as consolida. No caso de Nijmegen, se o hospital católico tem uma clínica para a transição de gênero, se quem encarna a instituição não pode oferecer um exemplo cristão, é melhor se retirar, racionalizar as energias, dizer não, afirma em alto e bom som que essa não é mais uma instituição católica.

 

Por outro lado, abre-se a estrada que parece atravessar a universidade. Em sociedades cada vez mais multirreligiosas e ao mesmo tempo cada vez mais secularizadas, é preciso se abrir, se ampliar, é preciso dizer sim. É preciso fazer parte do todo, encontrar a forma de contribuir, correr o risco do contágio para encontrar a cura.

 

No caso da Radboud Universiteit, insiste-se em um caráter católico a ser verificado e repensado. Em setembro de 2021, iniciou-se um diálogo com os vários componentes universitários sobre o significado presente e futuro da identidade católica da instituição, iniciou-se um debate com a Congregação para a Educação Católica em Roma e com o bispo da Diocese de ‘s-Hertogenbosch, competente por Nijmegen. Por fim, buscam-se soluções para uma estrutura jurídica mais adequada, por exemplo com a separação administrativa entre a universidade e o hospital.

 

Um front defensável

 

Por mais matizadas que possam ser as situações, a encruzilhada está sempre ali, diante dos atores. A alternativa entre as duas direções é clara. Ou se recua, mais sólidos e claros, mais ágeis e coerentes, em um front defensável; ou se avança, frágeis e incertos, pesados e confusos, em uma terra de ninguém. A alternativa tem uma dimensão interna à Igreja, que diz respeito à relação entre catolicismo, e ciência, e uma dimensão externa, que diz respeito ao papel dos católicos e de suas instituições no sistema universitário europeu e mundial.

 

Dentro da Igreja, as universidades católicas refletem uma crescente pluralidade e uma crescente fragmentação. Muitas instituições são tentadas pela primeira direção, a coerente identidade da minoria, talvez porque se identifiquem com um movimento católico, com uma ordem religiosa, com uma agenda nacional ou eclesial. Outras são atraídas pela segunda direção, as contraditórias identidades de todos, porque sua história, sua sociedade, seu catolicismo os empurram nessa direção.

 

A encruzilhada é clara, mas os fatores, as trajetórias, as escolhas são nuançados. A identificação de uma universidade católica com um pedaço do catolicismo nem sempre é sinônimo de preferência identitária. Basta pensar nas universidades dos jesuítas, especialmente na América Latina. Qualquer que seja a direção tomada na encruzilhada, além disso, ninguém na Igreja Católica pretende fugir do mundo. Como escreve Patrick Valdrini, 75 anos, ex-reitor do Institut Catholique de Paris, a principal universidade católica francesa, as universidades católicas do mundo têm “o dever de formar as pessoas para a universalidade, a fim de evitar pensamentos e ações separadores nas relações entre sistemas sociais e culturais, e nas relações entre pessoas e comunidades”.

 

Entretanto, desde a ascensão de Joseph Ratzinger ao controle da doutrina e nos 40 anos de sua liderança, a primeira direção da encruzilhada dominou a experiência universitária católica na Europa e no mundo. A predileção ratzingeriana pela recuperação da identidade indispensável à integridade da fé católica teve o resultado paradoxal de uma paisagem universitária católica cada vez mais fragmentada.

 

A Itália é exemplar, nesse sentido. A um século de sua fundação, poucos meses antes do nascimento da Universidade de Nijmegen, a Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão, é, para os próprios bispos, não mais a universidade dos católicos italianos, mas a universidade de uma parte do catolicismo. Desse ponto de vista, a universidade do Pe. Gemelli e Armida Barelli é hoje um ente não diferente do Instituto Universitário Sophia, a universidade do Movimento dos Focolares na zona rural de Valdarno, ou das muitas instituições pequenas ou grandes, em Roma ou em outros lugares, credenciadas ou não no sistema universitário público, que representam este ou aquele movimento ou ordem religiosa.

 

A fragmentação também é geográfica. Muitas dioceses já têm institutos de Teologia e Ciências da Religião que lotam o mapa e multiplicam a oferta. Para a Itália, para a Europa e para o mundo, a própria definição de “universidade católica” tornou-se cada vez mais árdua, a ponto de frustrar tentativas de coordenação como a da Federação Internacional das Universidades Católicas.

 

Além disso, como o caso holandês testemunha, os dicastérios da Cúria Romana, sobre os quais se espera o impacto da recente reforma, custaram a cultivar a riqueza presente também na crescente pluralidade e lutam hoje para governar com eficácia. De modo que a fragmentação das iniciativas é correspondida hoje por uma pulverização da pesquisa, do ensino, da cultura.

 

Dispersas e desintegradas, as personalidades e as ideias sofrem a erosão das chuvas ácidas que caíram do céu do papa alemão, criticado por um lado como o teólogo que sufoca o debate teológico, e do papa argentino, criticado por outros como o pastor que mortifica o rigor intelectual. Fundamental em sua dimensão interna à Igreja, a encruzilhada não é menos fundamental em sua dimensão externa. O sistema de pesquisa e de ensino global, e em particular ocidental, está se tornando cada vez mais seletivo e competitivo, pressupõe uma crescente esquizofrenia entre microespecializações e visões grandiosas, exige muita fé na missão empresarial e nenhuma no transcendente, quantifica tudo e projeta todas as coisas.

 

O desafio para as universidades católicas é enorme, ainda mais quando caem as fronteiras que, pelo menos na Europa ocidental, estruturaram durante muito tempo mentes e espaços: entre universidades públicas e privadas, entre universidades com fins lucrativos e sem fins lucrativos, entre confessionais e não confessionais, entre instituições de tendência ou neutras. Mais uma vez, eis a encruzilhada: retirar-se, abandonar, sair de campo; ou, vice-versa, atacar, ocupar, descer para a arena.

 

 

Sabedoria prática

 

Uma semana depois da defesa de doutorado de Jeroen em Nijmegen, 400 estudiosos das relações entre Estado e Igreja se reuniram em Córdoba para o congresso mundial do International Consortium for Law and Religion Studies. Na sessão inaugural, Sophie van Bijsterveld tomou a palavra. Senadora democrata-cristã durante 12 anos, a holandesa de 62 anos leciona na Radboud Universiteit.

 

Ela co-orientou, junto com Carl Sterkens e Eric Venbrux, a pesquisa de doutorado de Jeroen. Ela também estava lá, de toga e com estilo, durante a discussão. Agora, a poucos passos da mesquita-catedral mais discutida do mundo, ela compartilha com o público sua preocupação com as divisões religiosas de uma sociedade reduzida a “campo de batalha de posições conflitantes que as pessoas abraçam fortemente”.

 

Ela deseja um “discurso alternativo”, que mitigue o fenômeno, uma “sabedoria prática que faça cair a temperatura”. As comunidades religiosas como atores sociais, conclui ela, são cruciais, especialmente em escala local, “onde podem ser vistas por aquilo que fazem e não imaginadas por aquilo em que creem”. Daí sua exortação às próprias comunidades: “Façam-se conhecer melhor, invistam na sociedade”.

 

Encontro em Córdoba

 

O raciocínio, como Sophie van Bijsterveld confirmou mais tarde ao La Lettura, afunda suas raízes na sua experiência como católica holandesa, pioneira dos direitos humanos primeiro na Universidade de Tilburg e agora em Nijmegen. Ela se sente diante da encruzilhada, assim como os vários colegas de universidades católicas que a ouviram e muitos que não estão aqui em Córdoba, mas sentem a mesma inquietação.

 

Para cada um, naturalmente, a encruzilhada se apresenta em termos diferentes. Enquanto na Pázmány Péter de Budapeste a questão envolve a formação de uma classe dominante cúmplice da deriva húngara, o porta-voz da Universidade Católica de Lublin, na Polônia, envia ao La Lettura a longa lista de atividades de apoio aos ucranianos e ressalta que o compromisso é tanto ideal quanto humanitário, porque “a Ucrânia defende os valores europeus, os valores da nossa cultura, que inclui o cristianismo”.

 

Por sua vez, Dimitry Gegenava, 33 anos, vice-reitor da Universidade Católica Sulkhan-Saba Orbeliani de Tbilisi, na Geórgia, explica ao La Lettura como a sua universidade é importante “para uma democracia moderna com um passado soviético”. Com a autorização de seu reitor, o bispo italiano Giuseppe Pasotto, Gegenava afirma que, como católica, sua universidade “promove o diálogo das culturas e das tradições cristãs, mecanismo de desenvolvimento de toda a sociedade”.

 

Com a palavra, o reitor

 

Os mil tons dos contextos parecem borrar os contornos. A potência das histórias individuais parece ser inimiga dos significados gerais. Em vez disso, é preciso voltar à encruzilhada. Usar os detalhes para voar alto e depois olhar em profundidade. Desde 2016, o reitor da Radboud Universiteit, Han van Krieken, testemunhou o precipitar da crise; a partir de 2020, ele dirigiu a resposta. Ele conta ao La Lettura a “surpresa” diante da decisão dos bispos de não aceitar um “compromisso” que parecia razoável, os diversos estados de espírito, a maioria indiferente, o grupo satisfeito por finalmente poder se livrar do controle episcopal, o outro grupo decepcionado, desapontado, e, por fim, aqueles que só então se deram conta da identidade católica da Radboud.

 

O reitor imediatamente se colocou entre aqueles que defendiam a história e os valores da universidade: “Afinal, sempre houve tensões. Por um lado, sempre se defendeu a liberdade acadêmica e, por outro, sempre se cuidou da relação com os bispos”. A prioridade passou a ser então o “diálogo” com os vários interlocutores eclesiásticos e, sobretudo, dentro da universidade: “Esta crise nos dá uma chance. As pessoas estão finalmente refletindo sobre o que significa ser uma universidade católica hoje, parte de uma comunidade mundial”. O reitor de 66 anos, professor de uma faculdade de Medicina cujas práticas são defendidas por ele, embora talvez estejam em contraste com a doutrina da Igreja e, por isso, são seguidas de um modo muito mais atento do que em outros lugares, insiste nisso: “Reconheço e respeito a visão dos bispos, mas estou especialmente preocupado com o diálogo”.

 

A Conferência Episcopal Holandesa explica seu ponto de vista ao La Lettura mediante a secretária-geral, Suzan Daalmans, uma voz impensável na Itália, onde o secretário-geral da Conferência Episcopal sempre foi um bispo. Aos 62 anos, Daalmans esclarece que a decisão dos bispos só veio depois de constatar “a irredutível diferença de visões acerca do modo como a universidade e o hospital deveriam interpretar sua catolicidade”. Os bispos, no entanto, “sempre reconheceram o valor de bons contatos com os funcionários e as instituições da universidade” e, após a decisão, comprometeram-se a prolongar as relações.

 

Sobre o papel de Roma, a secretária-geral ressalta que os bispos holandeses sempre estiveram “em estreito contato” com o Dicastério para a Educação Católica e “pediram e receberam” seu conselho “tanto antes quanto depois” da decisão de retirar o predicaat católico.

 

Os bispos agora “não veem razão” para abordar a questão na iminente visita a Roma, mas estão prontos para falar sobre isso se o dicastério pedir. Sobre o sentido do conflito, segundo Suzan Daalmans, “espera-se que as organizações que desejam se chamar católicas deem forma e substância à catolicidade, e os bispos holandeses, a esse respeito, sempre estiveram abertos ao diálogo”.

 

“Gratias tibi agimus”

 

Quando captadas as duas alternativas da encruzilhada, quando apreciadas em sua diferença, é possível compreender ainda o quanto elas, no fundo, evocam uma à outra, referem-se, o quanto podem ser vistas como as duas almas da mesma exigência, do mesmo esforço. Elas opõem fronts, separam pessoas, mas também podem aproximar, talvez até unir.

 

Ao final da defesa de doutorado de Jeroen, a presidente encerra ainda em latim: “Gratias tibi agimus, omnipotens deus, pro omnibus beneficiis tuis. Qui vivis et regnas per omnia saecula saeculorum”. Os comissários em procissão saem da sala, voltam ao esforço de ser uma universidade católica ou de não o ser mais. Deram graças ao Todo-Poderoso, e só cada um deles sabe com que espírito pensam ter recebido os Seus benefícios e o que realmente acreditam em um Deus que vive e reina pelos séculos dos séculos.

 

Mais tarde, Sophie van Bijsterveld iria fazer as malas para ir a Córdoba, e Jeroen Jans voltaria para Hasselt, para preparar a Igreja do futuro.

 

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