06 Setembro 2022
“O Consistório foi um 'nãosistório'. É um colégio que parece mais uma comissão eleitoral do que um verdadeiro órgão consultivo do Papa, embora muitos tenham dito que a discussão nos grupos foi animada e livre e que ninguém sentiu pressões. Na verdade, há quase um medo de falar abertamente. Espera-se que o Papa leia as intervenções dos cardeais. No entanto, há uma preocupação subjacente sólida: que a própria natureza do sacerdócio está sendo solapada. E há o temor de que o trabalho de recepção do Concílio Vaticano II tenha sofrido um retrocesso, talvez decisivo”, escreve o jornalista italiano Andrea Gagliarducci, em artigo publicado por Monday Vatican, 05-09-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A reforma da Cúria desejada pelo Papa Francisco, mas acima de tudo, a filosofia por trás dela, provavelmente trouxe uma consequência que não estava prevista. A partir dos princípios identificáveis no Praedicate Evangelium, todo o Concílio Vaticano II pode ser questionado. Isso é paradoxal, pois o Papa Francisco quer ser o Papa que põe em prática o Concílio.
A questão gira em torno de um tema central nas discussões dos cardeais: a responsabilidade dos leigos. De acordo com a constituição Praedicate Evangelium, todos, mesmo os leigos, podem receber cargos no governo porque recebem o poder diretamente do Papa. É, portanto, um poder vicário, não um poder dado pela Ordem Sagrada que recebem.
É uma questão polêmica, e foi imediatamente objeto de amplo debate. O bispo Marco Mellino, secretário do Conselho dos Cardeais, em um artigo distribuído a todos os membros do colégio cardinalício em preparação para o Consistório, explicou que esta definição não vai contra o direito canônico, pois foi reformado após o Concílio Vaticano II. Para Mellino, o fato de os leigos poderem cooperar no governo significa que podem participar do governo que os bispos participam por vocação.
Esta interpretação é amplamente contestada. Antes do Consistório, foram divulgadas intervenções sobre o assunto dos cardeais Antonio Rouco Varela, Marc Ouellet e até mesmo Walter Kasper. Todos questionaram que essa decisão de centralizar tudo nas mãos do Papa, em última análise, até a distribuição do poder, estava no espírito do Concílio Vaticano II.
Até o historiador Alberto Melloni havia denunciado a virada anticonciliar do Papa Francisco, que, em vez de delegar, concentra cada vez mais seus poderes em si mesmo. Suponha que a missão canônica seja aquela que dá o poder de governo. Nesse caso, o poder vem apenas do Papa, com todo o respeito às potestas gubernandi fornecidas pela Santa Ordem e ao fato de que a ordenação torna todos os bispos iguais em dignidade, com os mesmos poderes, com a mesma plenitude de poderes.
Não é por acaso que muitas das intervenções durante o Consistório, preparadas e depois não entregues porque não houve um momento real em que fosse possível a reunião de todos, foram justamente nesse sentido.
Como mencionado, foi o Concílio Vaticano II que, pretendendo voltar à natureza sacramental da Igreja, definiu que os poderes sagrados dos bispos, mesmo antes de jurisdicionais, diziam respeito não apenas aos de santificar e ensinar, mas também aos de governar. Foi uma maneira de superar os abusos do segundo milênio da história da Igreja. Também havia visto abadessas com poderes territoriais semelhantes aos dos bispos, alguns destes que nem sequer eram padres ordenados.
Que havia um forte consenso na Igreja sobre o assunto é testemunhado pelo fato de que os votos sobre essas questões, que terminaram na Constituição Apostólica Lumen Gentium, foram principalmente a favor: cerca de 3 mil padres conciliares apoiaram esta leitura, enquanto apenas 300 foram os que votaram contra.
Mas o fato de a nova Constituição retroceder no debate fornece uma nova interpretação e nega algo que brotou da reflexão do Concílio Vaticano II coloca graves problemas para a recepção do próprio Concílio Vaticano II.
Além disso, isso é paradoxal se considerarmos que o Papa Francisco quer vincular tudo à correta recepção do Concílio Vaticano II. De fato, o Papa é particularmente feroz nessas questões, especialmente em relação à liturgia.
A Traditionis Custodes, que anula todas as concessões feitas na celebração do rito antigo, foi justificada pelo Papa como a necessidade de aplicar o Concílio, e com a ênfase de que o Concílio deve ser recebido em todas as partes porque é a vida de a Igreja.
Se esta é a maneira de pensar, o que pensar das consequências da Praedicate Evangelium? A própria Constituição não pode comprometer a recepção do Concílio?
Pode ser fácil argumentar que liturgia e governo são questões muito diferentes. Mas, por mais diferentes que sejam, o princípio subjacente permanece o mesmo. No final, há uma contradição.
Essa contradição, afinal, permeia muitas ações do pontificado do Papa Francisco. Há um Papa impulsivo e um Papa menos impulsivo, como duas faces da mesma moeda, que criam um pontificado fluido e bipolar e, portanto, difícil de interpretar.
Há um Papa que, por um lado, condena todas as formas tradicionalistas e, por outro, diante da evidência de que existem movimentos tradicionais reconhecidos pela Igreja que têm suas razões, aceita e apoia seu trabalho – como aconteceu com o decreto específico feito para a Fraternidade de São Pedro.
Há um Papa que defende o arcebispo Gustavo Zanchetta, sendo que, não obstante, as acusações contra ele são avassaladoras, designando-o para trabalhar no Vaticano e defendendo o princípio da presunção de inocência. No entanto, há também um Papa que pede ao cardeal Becciu que renuncie a todas as suas posições e prerrogativas, condenando-o efetivamente em praça pública antes mesmo de um julgamento.
Há o Papa da sacrossanta tolerância zero contra os abusos, e o Papa que intervém na revisão dos julgamentos do padre Mario Inzoli ou do padre Grassi na Argentina.
Um Papa que aceita um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, que diz que não, os casais homossexuais não podem ser abençoados, e um Papa que imediatamente depois desautoriza indiretamente o documento, pois é fortemente criticado pela mídia.
Há um Papa que argumenta, com razão, que o Sínodo não é um parlamento, e um Papa que se desvincula da ideia de consenso sinodal ao fazer publicar todos os votos nos parágrafos do documento final, e todas as seções, incluindo aquelas não aprovado, distinguindo no resultado entre as visões da maioria e da oposição.
Há um Papa que quer estar próximo da Ucrânia e um Papa que, em todo caso, não se distancia das notícias que vêm das análises superficiais dos jornais.
Há um Papa que se queixa da comunicação da Santa Sé e um Papa que, em vez de ajudá-la, dá várias entrevistas sem passar pelo Departamento de Comunicação.
Diz-se que para os jesuítas não existe o princípio da não-contradição – um jesuíta conhecido, há algum tempo, salientou, citando Dostoiévski – que em teologia, 2 + 2 nem sempre são 4, às vezes poder ser 5.
Este procedimento por tentativa e erro, talvez totalmente de boa fé e com a consciência de uma necessária reforma da Igreja Católica e da Cúria, corre o risco de criar uma ampla inclinação, algo que vai além do descontentamento geral, que também é palpável.
No final, se mesmo um pedacinho do Concílio puder ser questionado, a continuidade na história da Igreja é quebrada. Nesse ponto, até as críticas trazidas pelo arcebispo Lefebvre, em uma posição que mais tarde levou a um cisma ao consagrar quatro bispos sem a aprovação de Roma, poderiam ser bem fundamentadas.
Na época, dizia-se que Lefebvre se preocupava mais com sua batalha pessoal do que com qualquer outra coisa. De fato, tanto João Paulo II quanto o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, fizeram tudo o que podiam para resolver o cisma. É preciso dizer que Bento XVI, apesar das liberalizações sobre o uso do rito antigo, sempre condicionou um possível retorno à comunhão dos lefebvrianos precisamente a um preâmbulo doutrinal que previa a aceitação total do Concílio Vaticano II.
Agora, o Concílio Vaticano II é a diretriz de cada inspeção, cada provisão, mesmo as duras do Papa. No entanto, é profundamente questionado em um de seus fundamentos por uma constituição apostólica escrita “por tentativa e erro”, e com a consciência de que terá que ser substancialmente alterada.
Enquanto isso, o Papa Francisco decidiu reunir seus cardeais para apresentar-lhes um fato consumado. A discussão foi dividida em grupos, como foi dito pode ser o caso de uma possível reforma das Congregações Gerais que antecedem o conclave. É impossível debater em comum, como denunciou o cardeal Walter Brandmüller, uma das vozes mais críticas contra essa tendência.
O Consistório, por fim, foi um “nãosistório”. É um colégio que parece mais uma comissão eleitoral do que um verdadeiro órgão consultivo do Papa, embora muitos tenham dito que a discussão nos grupos foi animada e livre e que ninguém sentiu pressões. Na verdade, há quase um medo de falar abertamente. Espera-se que o Papa leia as intervenções dos cardeais. No entanto, há uma preocupação subjacente sólida: que a própria natureza do sacerdócio está sendo solapada. E há o temor de que o trabalho de recepção do Concílio Vaticano II tenha sofrido um retrocesso, talvez decisivo.
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Papa Francisco e o paradoxo do Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU