Último dia da viagem apostólica do Papa Francisco ao Canadá. Termina a etapa de Quebec e começa a de Iqaluit, no norte, onde está marcado um encontro com os inuits.
A conversa com os jesuítas está marcada para as 9 horas da manhã, mas o Papa entra na sala do edifício do Arcebispo um quarto de hora antes. Esperam por ele 15 jesuítas da Província do Canadá, que inclui o território daquele país e do Haiti.
A Congregação Provincial, planejada há muito tempo, está em andamento, o que explica a ausência do Padre Provincial. Após as primeiras saudações espontâneas após a entrada do Papa, o padre Marc Rizzetto, da comunidade de Quebec, dá as boas-vindas a Francisco por parte dos presentes e dos mais de 200 jesuítas da Província. Menciona especialmente os 45 membros da Congregação Provincial, reunidos em Midland, e os irmãos idosos das enfermarias provinciais de Richelieu e Pickering. "Neste País, que é também uma das maiores províncias da Companhia de Jesus, trabalhamos com alegria e esperança, à imagem de São João de Brébeuf e seus companheiros [1], os Santos Mártires canadenses", começa padre Marc.
“Presentes entre os frágeis, ousados apesar da nossa fragilidade, conscientes da grandeza de cada pessoa e sempre dispostos a partilhar os tesouros da nossa vida interior, somos chamados a ser, ainda hoje, homens para e com os outros, peregrinos”. E conclui: «estamos convosco no barco, remando ao vosso lado, avaliando a direção que dais à Igreja e rezando por vós. Obrigado por ter contribuído com o trabalho de reconciliação com a população indígena”.
A conversa é publicada por Antonio Spadaro, jesuíta, e reproduzida por Civiltà Cattolica, 04-08-2022.
Em seguida, ele oferece um presente ao Papa: uma pintura de uma borboleta, que o Papa admira, até fazendo uma piada: “Vendo esta linda foto, me vem uma dúvida. É tão bonito que poderia ser uma armadilha jesuíta. Não sei se é uma borboleta ou um morcego!" E provoca o riso dos presentes.
Após os agradecimentos, ele continua relembrando suas viagens anteriores ao país. "É a terceira vez que venho ao Canadá. A primeira vez foi na década de 1970. Tive que fazer minha Terceira Provação na Espanha, mas como já havia sido nomeado Mestre de Noviços, visitei alguns noviciados. Fui para a Colômbia e o México. No Canadá não havia noviços, na verdade, mas o Padre Geral me pediu para vir visitar o Pe. Michel Ledrus [2]. Então fui vê-lo em Saint Jérôme. Padre Ledrus foi um grande mestre espiritual. Essa foi a primeira viagem ao Canadá para mim.
A segunda vez foi em junho de 2008, para o Congresso Eucarístico Internacional, que aconteceu aqui em Quebec. Participei com uma reflexão sobre o tema "A Eucaristia edifica a Igreja, sacramento de salvação". Esta é a minha terceira viagem ao seu país. Muito obrigado pelas boas vindas. Uma palavra que você disse me chamou a atenção, Marc: “fragilidade”. Tantas vezes ouvimos que os jesuítas são o exército da Igreja, um exército poderoso… pura fantasia! Nunca devemos pensar em nossa própria auto-suficiência. Acredito que a verdadeira força de um jesuíta é, desde o início, a consciência da própria fragilidade. É o Senhor que nos dá força. Bem, e agora, como no futebol, bola no meio e brinquemos com as perguntas!
Papa Francisco com os jesuítas canadenses (Foto: Vatican Media)
Santo Padre, estamos num processo de reconciliação que não terminou. Estamos a caminho. Quais são as consolações de sua peregrinação?
Há cinco anos recebi o Primeiro-Ministro do seu país, que é também o atual Primeiro-Ministro. Naquela reunião ele me pediu para fazer algo relacionado aos indígenas e aos internatos. Os bispos também me falaram sobre isso. A opinião de todos era que algo tinha que ser feito, mas também que tinha que ser bem preparado. E assim os bispos prepararam bem, durante anos, uma ação que tornou possível esta minha visita. Passamos de uma fase em que parecia que as coisas dependiam basicamente dos bispos das áreas afetadas, para a plena adesão do episcopado.
Como se vê, o mais importante é precisamente o fato de que o episcopado concordou, aceitou o desafio e foi em frente. O leste do Canadá foi um exemplo de episcopado unido. E quando um episcopado está unido, pode enfrentar bem os desafios. Sou testemunha do que vi. Por isso, quero sublinhar isto: se tudo correr bem, não é por causa da minha visita. Eu sou apenas a cereja do bolo. São os bispos que tudo fizeram com sua unidade.
Além disso, é bom ressaltar com humildade que o lado indígena é realmente capaz de lidar bem com a questão, e é capaz de se comprometer. Em suma, estes são os milagres que podem acontecer quando a Igreja está unida. E vi familiaridade entre os bispos e os indígenas.
Claro que não adianta esconder, há quem trabalhe contra a cura e a reconciliação, tanto na sociedade como na Igreja. Ainda esta noite eu vi um pequeno grupo tradicionalista protestando, dizendo que a igreja é outra coisa... Mas isto faz parte das coisas.
Só sei que um dos piores inimigos da unidade da Igreja e dos episcopados é a ideologia. Então vamos continuar com este processo em andamento. Gosto do lema da viagem, que o diz claramente: Marcher ensemble. Caminhar, mas juntos. Você conhece o ditado: “se quer ir rápido vá sozinho, se quer ir seguro vá acompanhado”.
Você fala de peregrinação, reconciliação e escuta. Tudo isso configura sua visão sinodal da Igreja? É isso que você quer dizer?
Olha, me incomoda que o adjetivo "sinodal" seja usado como se fosse a receita de última hora da Igreja. Quando se diz "Igreja sinodal" a expressão é redundante: a Igreja é sinodal ou não é Igreja. É por isso que chegamos a um Sínodo sobre a sinodalidade, para reafirmá-la. Claro, podemos dizer que a Igreja Ocidental perdeu sua tradição sinodal. A Igreja do Oriente preservou-o. Certamente podemos discutir formas de viver a sinodalidade.
Paulo VI criou o Secretariado do Sínodo dos Bispos porque queria avançar nesta questão. Sínodo após sínodo, o progresso foi feito, timidamente, melhorando, compreendendo melhor, amadurecendo. Em 2001 participei do Sínodo dos Bispos. Substituí o Cardeal Egan que, devido à tragédia das Torres Gêmeas, teve que retornar à sua diocese em Nova York. Lembro-me de que as opiniões foram coletadas e enviadas à Secretaria-Geral. Tive que recolher o material e colocá-lo em votação. O Secretário do Sínodo veio me ver, leu o material e me disse para retirar esta ou aquela coisa. Havia coisas que ele não considerava apropriadas e as censurava. Houve, em suma, uma pré-seleção do material. Eles não tinham entendido o que era um Sínodo.
Ao final do último Sínodo, no levantamento sobre os temas a serem tratados no próximo, os dois primeiros foram o sacerdócio e a sinodalidade. Percebi que tínhamos que refletir sobre a teologia da sinodalidade para dar um passo decisivo.
Parece-me essencial reiterar, como faço muitas vezes, que o Sínodo não é uma reunião política ou uma comissão de decisões parlamentares. É a expressão da Igreja, onde o protagonista é o Espírito Santo. Se não há Espírito Santo, também não há sínodo. Pode haver democracia, parlamento, debate, mas não há "sínodo". Se você quiser ler o melhor livro de teologia do sínodo, releia os Atos dos Apóstolos. Ali se vê claramente que o protagonista é o Espírito Santo. Isso é experimentado no sínodo: a ação do Espírito. A dinâmica do discernimento ocorre.
Uma experiência, por exemplo, que às vezes você vai rápido com uma ideia, você briga, e então acontece algo que une as coisas, que as harmoniza criativamente. É por isso que gosto de deixar claro que o sínodo não é um voto, um confronto dialético entre uma maioria e uma minoria. O risco é também o de perder a visão global, o sentido das coisas. É o que acontece quando os temas do Sínodo são reduzidos a uma questão particular.
O sínodo sobre a família, por exemplo. Diz-se que foi organizado para dar comunhão aos divorciados e recasados. Mas na Exortação pós-sinodal sobre este tema há apenas uma nota, porque todo o resto são reflexões sobre o tema da família, como o catecumenato familiar. Portanto, há muita riqueza: não podemos nos trancar no funil de um único tópico. Repito: se a Igreja é tal, então é sinodal. É assim desde o início.
Papa Francisco com os jesuítas canadenses (Foto: Vatican Media)
Os comentários dos jornalistas sobre sua viagem e suas palavras me parecem essencialmente muito positivas. No entanto, uma pergunta que os jornalistas fizeram é: por que o Papa está se desculpando em nome dos cristãos, mas não da Igreja como instituição? O que você poderia responder?
Sim, eu já ouvi. Olha, eu realmente não entendo essa dificuldade. Não estou falando em meu nome ou em nome de uma ideologia ou de um partido. Sou bispo e falo em nome da Igreja, não em meu próprio nome. Falo em nome da Igreja, embora não o torne explícito. Na verdade, eu não tenho que deixar isso explícito porque é óbvio que eu faço. Ao contrário, eu diria: devo explicar que é meu pensamento pessoal quando não falo em nome da Igreja. Nesse momento eu tenho que dizer.
Trabalho na mídia da Igreja. É importante neste campo colaborar, criar redes, inclusive com os bispos?
Claro que sim! Acima de tudo, é importante que o diálogo seja ampliado. O diálogo nunca é demais entre os profissionais da mídia e, claro, também com os bispos. A troca, o confronto e o diálogo são essenciais para a comunicação. Falando da mídia, uma coisa me ocorre. Já vi algumas pessoas se perguntarem por que não tive um encontro específico com vítimas de abuso sexual durante esta viagem. Para falar a verdade, recebi várias cartas sobre isso antes da viagem. Respondi a essas cartas e expliquei que havia dois tipos de problemas. A primeira foi tempo, agenda. A segunda, mas para mim importante, era que eu queria destacar um tema forte nesta viagem, o dos povos indígenas, para que ficasse bem claro. Muitas pessoas me responderam dizendo que entendiam que não era uma exclusão. Em outros contextos, como a visita à Irlanda, os encontros foram possíveis e o tema emergiu com clareza.
Falando em abuso. Eu trabalho em direito canônico. Você fez muitas mudanças. Alguns o chamam de Papa das mudanças. Você também fez mudanças em nível penal, precisamente em relação aos abusos, e elas foram benéficas para a Igreja. Eu gostaria de saber como você vê as coisas se desenvolvendo até agora e se você prevê mais mudanças no futuro.
Sim, é certo. Constatou-se que mudanças precisavam ser feitas, e elas foram feitas. A lei não pode ser guardada na geladeira. A lei acompanha a vida e a vida continua. Como a moralidade: é aperfeiçoada. Antes a escravidão era legal, agora não é. A Igreja hoje diz que até a posse de armas atômicas é imoral, não apenas seu uso. Antes, isso não era dito. A vida moral progride ao longo da mesma linha orgânica. É a linha de São Vicente de Lérins: ita étiam christianae religionis dogma sequátur has decet propéctuum leges, ut annis scilicet consolidétur, dilatétur tempore, sublimetur aetate ("Mesmo o dogma da religião cristã deve seguir estas leis. consolida com os anos, desenvolve-se ao longo do tempo, aprofunda-se com a idade”). São Vicente de Lérins compara o desenvolvimento biológico do homem com a transmissão de uma idade para outra do depositum fidei, que cresce e se consolida com o passar do tempo. A compreensão do homem muda com o tempo, e a consciência do homem se aprofunda. A visão da doutrina da Igreja como um monólito que deve ser defendido sem nuances está errada. Por isso é importante respeitar a tradição, a tradição autêntica.
Alguém disse uma vez que a tradição é a memória viva dos crentes. O tradicionalismo, por outro lado, é a vida morta de nossos crentes. Tradição é a vida daqueles que nos antecederam e isso continua. O tradicionalismo é sua memória morta. Da raiz ao fruto, enfim: esse é o caminho. A origem deve ser tomada como referência, não uma experiência histórica específica tomada como modelo perpétuo, como se fosse necessário parar nela. "Ontem foi feito assim" torna-se "sempre foi feito assim". Mas isso é paganismo de pensamento! E o que eu disse também se aplica às questões jurídicas, ao direito.
Eu sou um jesuíta haitiano. Vivemos um processo de reconciliação nacional, mas a esperança está se perdendo. Levando em conta o que estamos vivendo no Canadá, o que podemos dizer à Igreja haitiana para nos dar esperança? E como jesuítas, o que podemos fazer?
O Haiti vive atualmente uma situação crítica, uma provação, como se não fosse possível encontrar o caminho certo. Eu não acho que as organizações internacionais tenham entendido como fazer isso. Sinto-me muito próximo do Haiti, também porque sou constantemente informado da situação por alguns padres amigos meus. Tenho medo de cair em um poço de desespero. Como podemos ajudar o Haiti a crescer em esperança? Se há algo que podemos fazer como Igreja, certamente é rezar e fazer penitência... Mas devemos nos perguntar como podemos ajudar. O Haiti é um povo nobre. De qualquer forma, posso simplesmente dizer que estou ciente do que está acontecendo.
Gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre a liturgia e a unidade da Igreja. Sou estudante de liturgia e gostaria de saber qual a importância deste estudo na formação. Refiro-me também ao nosso trabalho pastoral como jesuítas.
Quando há conflito, a liturgia é sempre maltratada. Na América Latina, há trinta anos, ocorreram monstruosas deformações litúrgicas. Então eles caíram no lado oposto com a embriaguez "indietra" (para trás) do antigo. Uma divisão foi estabelecida na Igreja. Minha ação neste campo procurou seguir a linha traçada por João Paulo II e Bento XVI, que permitiram o rito antigo e solicitaram uma verificação posterior. A última verificação revelou a necessidade de disciplinar a questão e, sobretudo, evitar que ela se torne, digamos, uma questão de "moda" e continue sendo uma questão pastoral. Virão os estudos que afinarão a reflexão sobre o tema, o que é importante: a liturgia é o louvor público do povo de Deus!
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Uma hora de conversa se passou e a pessoa encarregada de organizar a viagem apostólica nos diz discretamente que devemos partir. O Papa agradeceu o encontro, o presente recebido e a proximidade que sentiu dos jesuítas. Em seguida, convidou todos a rezar juntos uma Ave Maria, ao final da qual deu uma bênção. Para finalizar, ele propôs uma foto de todos juntos.
1.- Jean de Brébeuf (1593 -1649) foi um padre jesuíta francês, um dos oito mártires canadense-americanos proclamados santo pelo Papa Pio XI em 1930. Em 1625 viajou para o Canadá com outros missionários da Companhia de Jesus. No ano seguinte ele parou no território dos furões, com quem viveu por muito tempo. Ele foi morto por uma tribo de iroqueses em 1649.
2.- Michel Ledrus (Gossellies, Bélgica, 1899 – Roma, 1983) ensinou Missiologia em Lovaina e Filosofia Indiana na Pontifícia Universidade Gregoriana. Em Calcutá publicou a revista mensal The New Review. Em 1939, voltou a Roma e ensinou Teologia Missionária e Teologia Espiritual na Gregoriana. Ele era um "distinto professor de doutrina e vida", afirmou o Card. Carlo Maria Martini.