O metaverso não é nem um problema, nem uma solução - embora possa fazer parte de ambos. A questão principal é o próprio significado da liturgia para a vida da Igreja, a íntima relação entre o modo como celebramos (liturgia), o modo como concebemos a Deus (teologia) e o modo como nos relacionamos com Ele e como irmãos e irmãs no caminho de fé (eclesiologia).
A opinião é de Moisés Sbardelotto, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, professor da PUC Minas, coordenador do Grupo de Reflexão sobre Comunicação (Grecom) da CNBB e membro pesquisador do Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect/PUC Minas).
Foi bastante divulgada nos últimos dias a celebração de uma “primeira missa no metaverso” transmitida por uma rede de TV de inspiração católica brasileira, que teria inaugurado também o primeiro santuário católico nesse ambiente digital.
O fato circulou amplamente nos ambientes eclesiais e também fora deles, gerando discussões diversas sobre o fenômeno religioso e a prática litúrgica em ambientes não convencionais, levantando inúmeras perguntas.
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Não quero aqui questionar a validade da missa transmitida, nem menosprezar a experiência religiosa das pessoas que dela participaram no metaverso. Em outro texto, já refleti sobre alguns aspectos da prática religiosa em ambientes digitais, particularmente no período da pandemia, como a relação entre corpo e comunicação; presença e comunhão; e participação e comunidade, reafirmando que o digital “possibilita novas formas de encontro e de relação, inclusive com o sagrado. E, por isso, transforma a própria experiência e vivência da fé”.
De modo particular, entretanto, a principal questão em jogo no anúncio dessa primeira “missa metaversal” parece ser as explicações e justificativas pastorais oferecidas. A partir delas, torna-se candente a pergunta: qual a necessidade pastoral da celebração de uma missa no metaverso? Ou ainda: a partir de quais critérios é possível avaliar essa decisão?
Sem querer dar respostas prontas a perguntas tão complexas, pretendo aqui apenas oferecer algumas reflexões “em construção” e provocações à reflexão eclesial e religiosa, de modo geral.
Do ponto de vista pastoral, parece haver uma certa afobação e deslumbramento diante das possibilidades oferecidas por algumas experiências digitais. Como já disse em outra oportunidade, o metaverso ainda não existe, ao menos do modo como vem sendo anunciado, como uma “internet encarnada” ou uma “internet reinventada”. O que já temos hoje é no máximo um Second Life levemente aprimorado. O próprio Facebook, por exemplo, prevê a existência efetiva de um metaverso somente daqui a 10-15 anos, quando a infraestrutura tecnológica necessária estará suficientemente desenvolvida. Mark Zuckerberg, fundador da empresa, que não por acaso passou a se chamar Meta, afirmou que “o metaverso será uma grande parte do próximo capítulo da indústria de tecnologia”. Portanto, ainda estamos nos capítulos iniciais dessa história, sem saber exatamente o que virá pela frente.
Entretanto, o presbítero que presidiu a celebração transmitida no metaverso, por exemplo, apresentou esse ambiente digital como uma “nova realidade no futuro das redes sociais”, ressaltando “a capacidade de ter tudo isto aqui [apontando para o ambiente litúrgico] em 3D, em terceira dimensão”. Talvez passou-lhe despercebido que o próprio ambiente litúrgico em que ele se encontrava oferecia a capacidade de ter “tudo aquilo ali” em muito mais do que três dimensões, em uma realidade já presente agora e que se “re-nova” sacramentalmente a cada celebração.
Como já dizia Bento XVI na Caritas in veritate, “o desenvolvimento tecnológico pode induzir à ideia de autossuficiência da própria técnica, quando o homem, interrogando-se apenas sobre o ‘como’, deixa de considerar os muitos ‘porquês’ pelos quais é impelido a agir” (n. 70). Certas abordagens pastorais ao metaverso parecem se encaminhar, infelizmente, no sentido de tais apropriações acríticas, ao se preocuparem apenas com aspectos práticos e tecnicistas do “como fazer”, sem atentar para os “porquês” de determinadas escolhas pastorais, isto é, as questões de fundo de ordem litúrgica, teológica e eclesiológica.
Isso apenas denuncia o gigantesco abismo existente entre a Igreja e a cultura contemporânea, e não o contrário, como pretendem alguns. Na busca de serem os “primeiros modernos”, certos setores eclesiais apenas explicitam o seu anacronismo e o seu fetichismo tecnológico. Assim, as decisões pastorais acabam sendo condicionadas pelo próprio paradigma tecnocrático denunciado por Francisco: se é tecnologicamente possível fazer, deve ser feito. “Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína e o espaço para a criatividade alternativa” (Laudato si’, n. 108), inclusive do ponto de vista litúrgico-pastoral.
Outros promotores da missa transmitida no metaverso, por sua vez, afirmaram que se tratou de oferecer um “lugar de encontro, pois as pessoas se sentem muito sozinhas em casa” e, por meio do metaverso, “você se sente próximo um do outro”. Do ponto de vista litúrgico, parece haver aqui um certo “ab-uso” da celebração eucarística, que acaba perdendo a sua dimensão de “fonte e cume de toda a vida cristã” (Lumen gentium, n. 11), para se restringir a um mero “evento psico-socioterapêutico”.
Porém, haveria inúmeras outras experiências religiosas cristãs - não necessariamente litúrgicas - que poderiam servir de “projeto-piloto” para uma aproximação eclesial não apenas ao metaverso como tal, mas principalmente em relação às pessoas solitárias ou com outras necessidades, por meio dos ambientes digitais. Se a única linguagem que a Igreja reconhece como válida ou considera apropriada para se aproximar e se encontrar com a sociedade contemporânea é o rito religioso, particularmente a missa, temos muito a repensar do ponto de vista pastoral.
Na sua recente carta apostólica Desiderio desideravi, sobre a formação litúrgica do Povo de Deus, o Papa Francisco pede explicitamente que a beleza do celebrar cristão não seja “deturpada por uma compreensão superficial e redutora do seu valor ou, ainda pior, por uma instrumentalização dele a serviço de uma visão ideológica qualquer, seja ela qual for” (DD 16).
Outras pessoas envolvidas com a iniciativa da “missa metaversal” disseram se tratar ainda de uma forma de “aproximar o público jovem” da Igreja. Entretanto, na capela em São José do Rio Preto onde estava sendo gravada a missa transmitida pelo metaverso, estavam reunidas principalmente senhoras idosas, a maioria já viúvas, como o próprio presbítero que preside a celebração reconhece ao longo da missa. Como, então, o metaverso, por si só, poderia fazer alguma diferença? O mero fato de estar nesse ambiente digital promoveria uma aproximação automática do público jovem a uma celebração eucarística? Dentre as inúmeras opções de experiências disponíveis no metaverso, o que especificamente levaria os jovens a optarem por participar de um rito religioso desse tipo? E, mais, o que esses jovens encontrariam nessa aproximação?
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Sem dúvida, do ponto de vista eclesial, as formações comunitárias que emergem em rede podem explicitar “outra forma de ser Igreja”, seja pelo reconhecimento de uma insuficiência das experiências comunitárias eclesiais existentes diante das novas demandas contemporâneas (principalmente juvenis), seja pela inexistência de ambientes comunitários eclesiais capazes de acolher e integrar as “periféricas geográficas e existenciais” das culturas de hoje. A internet, de modo geral, constitui um vasto multiverso de ambientes digitais potencializadores e facilitadores de redes humanas e relações sociais, que complexificam ainda mais o pluriverso das redes sociais que compõem a trama de uma dada sociedade humana e da própria Igreja.
Contudo, pelo que se pôde ver pelas imagens disponibilizadas dessa “missa metaversal”, o que ocorreu foi uma reunião de “robôs” ou “astronautas”, pela forma como os avatares aparecem na tela, com seus trajes em estilo espacial e seus capacetes. É esse nível de relação humana, de experiência comunitária e de celebração sagrada que queremos propor ao público jovem ou às pessoas que se sentem sozinhas?
Pelo contrário, não existe comunidade humana formada por “números”, “avatares” ou meros “agregados de indivíduos” (cf. Francisco, Mensagem para o 53° Dia Mundial das Comunicações Sociais, 2019). A experiência comunitária não cai do céu, nem é criação espontânea, nem é resultado automático de mediações tecnológicas. Toda comunidade humana é constituída por relações entre pessoas, que têm histórias, olhares, expectativas, sofrimentos; em suma, um “rosto” (cf. Francisco, Mensagem para o 56° Dia Mundial das Comunicações Sociais, 2022).
Portanto, para que as práticas católicas no metaverso possam ser promotoras de uma experiência comum de pertença, de reciprocidade, de solidariedade, de “comum-unidade”, é preciso levar em conta não apenas as potencialidades oferecidas em cada ambiente ou plataforma digital, mas também e sobretudo “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” (Gaudium et spes, n. 1) de cada pessoa interconectada e a concretude de sua vida, para que seja possível construir relações humanas e sociais verdadeiras, apesar das distâncias e das diferenças, como um só corpo.
Na Desiderio desideravi (n. 51), Francisco é bastante claro em relação a essa dimensão da “comum-unidade”, inclusive corporal, da comunidade que celebra junto como um só corpo:
“... reunir-se, caminhar em procissão, sentar-se, ficar de pé, de joelhos, cantar, ficar em silêncio, aclamar, olhar, escutar. São muitos os modos com os quais a assembleia, como uma só pessoa (Ne 8,1), participa da celebração. Fazer todos juntos o mesmo gesto, falar todos juntos a uma só voz transmite aos indivíduos a força da assembleia inteira. É uma uniformidade que não só não mortifica, mas que, ao contrário, educa os fiéis individuais a descobrirem a unicidade autêntica da própria personalidade não em atitudes individualistas, mas na consciência de ser um só corpo”.
No atual estágio de desenvolvimento do metaverso, não alcançamos ainda esse grau de “presença e interação corporais” nos ambientes digitais. Podemos experimentar formas diversas de presença, mas não com a mesma profundidade do gesto tão humano de “reunir-se no mesmo lugar e na mesma hora para comer do mesmo pão e beber do mesmo cálice”. No entanto, é esse gesto - tão simples e tão complexo ao mesmo tempo - que “dá forma” à Igreja.
O metaverso, portanto, não é nem um problema, nem uma solução - embora possa fazer parte de ambos. A questão principal é o próprio significado da liturgia para a vida da Igreja, a íntima relação entre o modo como celebramos (liturgia), o modo como concebemos a Deus (teologia) e o modo como nos relacionamos com Ele e como irmãos e irmãs no caminho de fé (eclesiologia). Ou seja, que experiência comunitária promovemos e que Deus anunciamos com as liturgias que celebramos, seja no metaverso ou não?
Afinal, “uma celebração que não evangeliza não é autêntica, assim como não é autêntico um anúncio que não leva ao encontro com o Ressuscitado na celebração: e ambos, sem o testemunho da caridade, são como um bronze que soa ou um címbalo que retine” (DD 37).